O Império do Medo

Entrevista com Michael Moore

Por Serge Kaganski

Les Inrockuptiles, nº 359

 

   Herói popular, agitador, documentalista engraçado, cineasta eficaz, Michael Moore tornou-se em pouco tempo o nosso amigo americano. Descoberto em 1989 com o cáustico "Roger and Me", impõe-se hoje, depois de três documentários, uma ficção, alguns livros e uma série para televisão, como o mais célebre crítico da América dominante. É graças a pessoas como Michael Moore que a América não nos faz desesperar completamente.  O seu novo barril de pólvora, BOWLING FOR COLUMBINE, vinga-nos de todos os filmes insípidos que Hollywood persiste em despejar constantemente sobre todos os ecrãs do mundo com objectivos anestéticos ou de propaganda. 

 

   No início, BOWLING FOR COLUMBINE tinha como tema um fait divers. O resultado é bem mais alargado. Como é que o projecto evoluiu?

Michael Moore - O filme demorou três anos a fazer. Era um verdadeiro puzzle que era preciso juntar. Um acontecimento como o 11 de Setembro tornou-se, como é óbvio, numa peça suplementar neste puzzle. Nós, os americanos, somos tanto senhores como vítimas de uma violência extrema. A questão que me coloco ao longo de todo o filme é: "Porquê?". Mas é bom que um filme evolua ao longo da sua feitura. Você é espectador: se eu o levar para uma viagem de questionamento e descoberta será mais interessante e excitante se participar plenamente e a viagem for imprevisível. É melhor assim do que estar tudo programado à partida. Não é muito excitante ver um filme em que o realizador respondeu a todas as questões e sabe onde vai. Pelo contrário, imagine um filme em que o realizador não conhece as respostas, ou em que as respostas que há são más e ele aceita o desafio de encontrar outras. Por exemplo, eu achava que os canadianos não andavam aos tiros porque não tinham armas. Fui ao Canadá e descobri que tinham tantas armas como na América. Era então preciso encontrar outras respostas. E é isso que  amamos no cinema: as incertezas, as viragens, as surpresas...! Não gostamos dos filmes em que adivinhamos a cena a seguir. Mesmo que a maioria dos filmes seja assim.

 

   O filme aborda muitos temas. Como é que fez a triagem e arranjou um assunto central - a paranóia e a violência da sociedade americana?

   Foi muito difícil. Nos meus outros filmes os alvos são muito fáceis de identificar: a General Motors, a Nike... Neste, o alvo somos nós, os americanos. É o público americano que vai ver o filme. A base do meu objectivo é a razão da violência e do número de assassínios. Não as armas em si. Somos nós. Há um problema no nosso comportamento colectivo, na nossa mentalidade. É um adversário bem mais difícil de circunscrever, e isso fez com que este fosse um filme mais difícil de fazer.

 

   Não acha que se regulamentassem a venda de armas como nos países da Europa, a violência e a taxa de criminalidade baixariam consideravelmente, independentemente da mentalidade dos americanos?

   Não. Haveria talvez menos mortos, mas o decréscimo não seria significativo. E sobretudo, a mentalidade dos americanos continuaria a ser a mesma, uma mentalidade que lhes diz que é normal ser-se violento com outra pessoa para resolver um conflito, que é normal que o Estado exerça violência sobre os pobres. Se regulamentássemos as armas, as pessoas não deixariam de morrer por causa da violência. A prioridade é corrigir a nossa forma de pensar e agir. Veja o exemplo dos suíços: há uma arma por lar porque não há exército. E quantos assassínios há na Suíça por ano? Setenta, 80 no máximo. Taxa que é muito baixa comparada aos 11200 assassínios anuais nos Estados Unidos. Porquê?  Simplesmente, os suíços não são loucos a puxar o gatilho. Nem os franceses.

 

   Em França, não temos armas.

   Mas se quisesse realmente ter uma, poderia. Além disso, têm mais armas em circulação agora do que no passado e a vossa taxa de assassínios subiu um pouco. Digo-lhe uma coisa: assim que começarem a romper a vossa rede de segurança social, assim que descurarem os pobres, que comecarem a acusar os vossos imigrantes, que comecarem a agir como nós fazemos há anos nos Estados Unidos, vão começar a parecer-se connosco. Mas tenham cuidado. A ética francesa diz: "se alguém adoece, se alguém perde o trabalho, há uma responsabilidade colectiva de ajudar essa pessoa". A ética americana, por seu lado, diz: "Fuck you! Cada um por si!". E é esta forma de pensar, esta mentalidade que deve mudar absolutamente.

 

   No filme diz que é membro da NRA (National Rifle Association). É verdade ou era um estratagema para conseguir a entrevista com Charlton Heston?

   Não, é verdade. Tornei-me membro na adolescência. E sou membro para toda a vida mesmo não usando armas e mesmo que me oponha fortemente ao porte de armas. Depois de Columbine, pensei candidatar-me contra Charlton Heston, ganhar e depois dissolver a organização. Depois, mudei de programa: fiz um filme. Mas no início a NRA era uma espécie de organização desportiva. Só mais tarde é que se tornou numa organização de extrema direita.

 

   Apesar da, ou graças à, sua carga crítica, o seu filme pode ser considerado como muito patriótico. É na realidade mais patriótico do que Bush porque se preocupa mais com o interesse geral do que com interesses particulares.

   Sem dúvida! Estou totalmente de acordo com essa noção. Acho que podemos e devemos fazer melhor. Acho que nós, os americanos, merecemos melhor. Há muitos aspectos positivos nos americanos, então por que não corrigir e melhorar o que não está bem?

 

   Como é que o público americano olha para si? Como um traidor?

   Oh não! Como alguém que gosta profundamente do seu país, como um cidadão normal. Não me colocam nem na extrema esquerda nem nas margens da intelligentia. O meu livro foi o mais vendido na categoria da "não-ficção", este ano, nos Estados Unidos. Desde o 11 de Setembro, desde que Bush está na Casa Branca, o número 1 de vendas chama-se "Stupid White Men". Por isso tenho esperança. Não estou isolado.

 

   No entanto, a imagem da América no estrangeiro continua a ser de uma sociedade revanchista, maioritariamente unida apoiando Bush.

   Essa imagem é falsa. Donde é que vem? Quem a criou e quem veicula? Você viu por acaso este ano na televisão o autor número 1 nos Estados Unidos? Porque é que os meios de comunicação social franceses nunca me mostram na televisão? Porque é que quando 7000 pessoas fazem fila numa livraria quando dou uma conferência de imprensa não vê esses americanos na sua televisão? Os que vê são só aqueles que agitam uma pequena bandeira à frente de Bush.

 

   Também lemos artigos de pessoas como Noam Chomski, mas esses americanos parecem uma minoria.

   Compreendo o que diz, mas não é verdade. O que é verdade é que é difícil exprimir uma opinião contrária à política externa americana, podemos ser acusados de traição. Por exemplo, hoje é mais difícil para mim aparecer na televisão americana. Há sete meses que o meu livro é um best-seller e nunca fui convidado para uma única emissão numa grande cadeia de televisão.

 

   Quando vemos os telejornais que vêem os americanos, chegamos à conclusão que eles não têm as ferramentas necessárias para pensar de outra forma...

   É verdade. Mas por outro lado, têm uma taxa de audiência de uma fraqueza histórica. As pessoas estão fartas dessas notícias onde a violência é erguida como espectáculo. No fundo, todos temos vontade de acreditar que o homem é bom. Cada dia, os meios de comunicação de massas dizem-lhes para não confiarem em ninguém, que as pessoas são más, que é preciso fechar a porta à chave, votar nos conservadores que vão protegê-las e defendê-las. Graças a eles, vai haver mais armas, mais polícia... Tudo isso está ligado de forma a que os conservadores nunca abandonem o poder. Mantém-se a população no medo. O fascismo triunfa quando a população é atormentada pelo medo, porque as pessoas estão angustiadas e precisam de um chefe. É assim que estamos neste momento nos Estados Unidos.

 

   Podemos compara o estado actual dos Estados Unidos ao maccarthismo?

   Completamente. O meu próximo documentário vai prolongar a reflexão que comecei em Columbine. Vou dissecar a forma como Bush se serve do 11 de Setembro no seu próprio interesse. Resumindo, a sua politica é: "Dêem-nos mais poder! Larguem as vossas liberdades públicas! Vamos bombardear o Afeganistão, vamos bombardear o Iraque". Mas estou optimista porque a maioria das pessoas não apoia Bush. A maioria não votou nele, ele não se tornou presidente pela vontade do povo. Ainda estou chocado com a eleição viciada com a ajuda do irmão (governador da Flórida) e do pai e vou chateá-lo até à minha morte.

 

   De acordo com a sua opinião, uma administração democrata é melhor?

   É mais ou menos igual. Digamos que os democratas são menos directos, mais dissimulados nas suas práticas devassas. Salvam a aparência, são aparentemente mais afáveis, mais tolerantes, mas isso é só à superfície. Não sabemos como reagiria Clinton se fosse Presidente no 11 de Setembro. Tenho quase a certeza que teria feito como Bush.

 

   Diz que não pertence à intelligentsia de esquerda, mas relaciona-se com essas pessoas?

   Claro. Fiz campanha para os Verdes, admiro Noam Chomsky e os intelectuais ou universitários do género. Não sou de todo anti-intelectual, mas cada um é útil no seu lugar. Eu não faço parte dos círculos intelectuais e tento chegar a um público mais lato.

 

   É um bom entrevistador. Não tem medo de apanhar de surpresa os seus interlocutores?

   A relação de força nunca é a meu favor. As pessoas que abano são pessoas que detêm o poder, que estão à cabeça de multinacionais, que controlam os meios de comunicação social... Eu estou sozinho com a minha câmara. Quando os assalto de surpresa, uso apenas os meios para tornar o diálogo um pouco mais igual. Charlton Heston, da NRA, é o presidente da maior e mais poderosa organização nos Estados Unidos. A K-Mart é a segunda cadeia de supermercados, é uma empresa enorme. Por isso não tenha pena deles.

 

   O que é que aconteceu com Charlton Heston depois da entrevista? Tentou recuperar a cassete, censurar o filme, processá-lo?

   Logo depois de o ter filmado a entrar em casa, os portões foram fechados, estávamos fechados na propriedade. Mas tinha tido o cuidado de deixar um dos meus rapazes lá fora. Peguei na cassete e dei-lha e disse-lhe para se pôr a mexer. Quando viram isso, desistiram e abriram os portões. Mas, durante um momento, pensámos mesmo que nos iam partir a cara.

 

   Os seus filmes são radicais mas obedecem, na forma,  aos princípios clássicos do espectáculo de massa. Acha que isso é uma contradição?

   Não. Acho que é uma contradição maior quando as obras radicais tocam 300 pessoas que já estão convencidas. Um discurso radical não quer mudar a sociedade?  O facto de eu conseguir chegar às massas é uma verdadeira vitória para todas as pessoas de esquerda.

 

   É cineasta. Tem modelos, influências estéticas maiores?

   Em primeiro lugar Stanley Kubrick. Admiro-o em tudo: no estilo, nos temas, na independência face a Hollywood... Ele era audaz, tentava sempre coisas novas, estava sempre à frente de seu tempo, tinha uma visão forte do estado do mundo. A Laranja Mecânica é sem dúvida o filme que mais me marcou e inspirou. Táxi Driver também não anda longe disso.

 

   A Laranja Mecânica e Táxi Driver são filmes que falam da relação entre a violência, a sociedade e a política, como Columbine...

   A violência é um assunto que me interessa há muito tempo. Cresci na época dos levantamentos raciais perto de Detroit, depois a Guerra do Vietname. Aí fui obrigado a pensar na questão: "E se for recrutado?". Não queria de todo ir matar vietnamitas. Este filme é sem dúvida o cumprimento de 30 anos de reflexão.

 

   A segurança era o tema mais importante da nossa campanha presidencial. Le Pen fez 17 por cento com este tema a que os grandes candidatos voltaram todos.

   Eles sabem que é humana a tendência a ter medo do que não se conhece, do que é diferente. Se manipulamos as pessoas sobre estes temas, podemos juntar muitas vozes. Hitler não fez um golpe de Estado, foi eleito. As pessoas sentem falta de um chefe, de um protector, de um pai.

 

   Quando os europeus criticam os americanos fica contente ou tem um reflexo patriótico?

   Gostaria que essas críticas fossem mais severas e mais numerosas. Nunca as encarei como anti-americanismo. As pessoas muito críticas podem amar o rock, o jazz, os jeans, os filmes de Scorsese... E acho que o americano médio também sabe fazer essa distinção. O Governo pode fazer-nos crer que o mundo inteiro nos odeia. Mas as últimas sondagens mostram que a maioria dos americanos não apoiará a intervenção no Iraque se os países aliados não a apoiarem. É por isso aflitivo ver Blair a apoiar Bush, Chirac a hesitar. Digo aos europeus: "Então malta estamos a contar convosco! Não nos deixem! Sem vocês, Bush não mexerá uma palha".

 

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