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História das Minhas Tristezas

              

Facsimile da capa da obra de Abelardo intitulada "História das minhas Tristezas"

            (Primeira carta endereçada do Mosteiro de Saint-Gildas (Bretanha) a um amigo cujo nome não é revelado)

            Muitas vezes o exemplo tem mais poder que a palavra para excitar ou para acalmar as paixões humanas. Também, após ter-vos feito ouvir uma voz consoladora, quero retratar aos vossos olhos o quadro das minhas tristezas. Possam elas vos consolar completamente! Comparando as minhas tristezas e as vossas, reconhecereis que todas as provações não são nada ou que são pouca coisa, e tereis menos pesar a suportá-las.

            Nasci numa casinha em Palais, situado à entrada da Bretanha, a cerca de oito milhas de Nantes. Devo ao sol natal e à virtude do sangue que corre nas minhas veias  a ligeireza do meu carácter, recebi da natureza uma grande aptidão para a ciência e a literatura.

 

            O meu pai, antes de tomar a hábito de soldado, recebeu alguns ensinamentos de letras, e mais tarde dedicou-se a elas com uma tal paixão, que quis dar a todos os seus filhos uma educação sábia ante de os formar no ofício das armas. Eu era o mais velho dos filhos e como tal, o meu pai tinha uma grande ternura por mim e quis proporcionar-me uma boa instrução nos estudos. Do meu lado, à medida que ia avançando nos meus estudos com mais rapidez, mais me apegava com ardor. Enfim, eles tiveram para mim tanto charme que, renunciando à glória militar e deixando aos meus irmãos a herança paternal e o meu direito de primogénito, abandonei a corte de Mars para me refugiar no Seio de Minerva. 

            Preferindo a dialéctica e o seu arsenal a todos os outros ramos da filosofia, troquei as armas  da guerra contra as da lógica, e os trofeus das batalhas  contra os enredos das discussões. Pus-me a percorrer as províncias, sempre disputando; e por todo o lado onde aprendia que esta arte é uma honra, aí corria, levado por um grande entusiasmo.

            Cheguei por fim a Paris, onde a dialéctica estava já florescente, e segui as lições de Guilherme de Champeaux, que era considerado a título justo, o mestre mais hábil neste ensinamento. Fui primeiro benvindo; mas não tardei a tornar-me muito incómodo, pois apagava-me a refutar as suas ideias, argumentava contra ele e voltando sempre à carga, tinhas por vezes o erro de de ter vantagem. Esta temeridade excitava, de entre os meus condiscípulos que eram vistos como os mais notáveis uma inveja tão grande, que parecia mais longe deles e pela minha juventude e pela data recente dos meus estudos. 

Guilherme de Champeaux

             Tal foi  o começo das minha tristezas  que ainda não acabaram: a minha reputação aumentava, a inveja acendeu-se. Enfim, presumindo do meu espírito para além das força da minha idade, muito jovem ainda ousei pensar em ser eu mesmo chefe de escola, e desde ali marquei os olhos no sítio onde construiria uma escola rival. Era Melun, vila importante na altura, e residência real. Guilherme de Champeaux suspeitou o meu desenho, e pôs secretamente em uso todos os meios que tinha em seu poder para mos tirar, antes que abandonasse a escola para o sítio que tinha escolhido. Ma como havia invejosos no meio dos poderosos do país, vim com o seu concurso à cumprir os meus desejos, e a sua vontade manifesta conquistaram-me uma simpatia quase geral.  Desde as minhas primeiras lições, a  minha reputação como dialecto tomou proporções tais, que o renome dos meus antigos condiscípulos e a de Champeaux foram não tarda abafados. Este sucesso aumentando ainda a minha confiança, aproximava-me de Paris cada vez mais depressa, e transportava a minha escola a Corbeil para ter o inimigo sob a mão e dar-lhe mais rudes lições. 

            Mas, pouco tempo depois, o excesso de trabalho fez-me cair  numa doença prolongada; faltava-me o ar do meu país natal. Isolado, por assim dizer, da França, durante vários anos, estava vivamente arrependido de todos os que sentiam gosto pela dialéctica.

            Poucos anos tinham passado, e estava já curado da minha doença depois de todo este tempo, logo que o meu ilustre mestre, Guilherme, arquidiácono de Paris, deixara o seu antigo hábito, e entrara na ordem dos clérigos regulares, com a esperança, diziam, de obter, a favor das suas grandes aparências de piedade, um avanço rápido na carreira das dignidades eclesiásticas, o que não tardara a produzir-se, pois deram-lhe o Évêché de Châlons. A sua nova tomada do hábito não o fez abandonar o séjour de Paris, nem o gosto que ele tinha pela filosofia. E dentro do mosteiro onde ele se tinha retirado por espírito de religião, ele reabriu logo um curso de ensinamento público.

            Voltei ao pé dele para estudar a retórica. Entre outras lutas de controvérsias que tivemos, refutava duma maneira tão vitoriosa a sua argumentação  sobre os Universais, que o forçava a renunciar ao seu sistema. Na primeira fase do seu ensinamento, os Universais são a essência dos indivíduos do mesmo tipo, de tal modo que que esses indivíduos não diferem de modo algum na sua essência, mas unicamente na infinita variedade dos seus elementos acidentais. Na segunda fase, os Universais apresentam-se não mais como constituindo a essência dos indivíduos, mas como formando a sua identidade, porque em todos esses indivíduos, diferentes aliás, reencontram-se sem diferença. Como esta questão  que toca o Universais é uma das mais importantes da dialéctica e tão importante que Porfírio, escrevendo nos seus preliminares, sobre os Universais, não ousou tomar a resolução, dizendo: isto é muito grave; Champeaux, que tinha sido obrigado então a modificar primeiro o seu pensamento e depois a retratá-lo, viu o seu curso cair num tal descrédito, que lhe permitiram sob pena, dar as suas lições de dialéctica, como se esta ciência como um todo consistisse na questão dos Universais.

            Esta vitória deu tanta força e autoridade à minha escola, que os discípulos mais fervorosos de Guilherme, o seus seguidores mais tenazes e até os meus adversários mais violentos o abandonaram para acorrer às minhas lições. O professor que, na escola de Paris, tinha sucedido ao meu mestre, veio oferecer-me o seu lugar e se render ao número dos meus auditores, onde tínhamos sido testemunhas um e o outro dos belos dias de Champeaux.

Enseignement  
Abelardo a ensinar

            Eu reinava sem partilhar o domínio da dialéctica. Dizer-vos a inveja que dissecava Guilherme, a amargura que fermentava na sua alma, não é coisa fácil. Não podendo suster as fervilhações do seu ressentimento, ele tentou afastar-me mais uma vez pela palavra; e como não tinha coragem para agir abertamente contra mim, ele destituiu, sobre uma acusação infame, aquele que me tinha cedido o seu lugar, e pôs outro no seu lugar para me ter em cheque. Então, voltando a Melun, estabeleci de novo a minha escola, e quanto mais estava visivelmente em mira das suas perseguições, mais consideração ganhava segundo as palavras do poeta:

            «Toda a grandeza atrai inveja; é contra os cumes elevados que chocam os ventos.»

            Pouco tempo depois, vendo que a sinceridade do seu ardor religioso era fortemente suspeito da maior parte dos seus discípulos, e que murmuravam  em voz alta sobre a sua conversão, pois ele não tinha  deixado um momento Paris, ele transportou-se, a ele, à sua pequena confraria e à sua escola, numa campanha a alguma distância da capital. Não tardou, voltei de Melun a Paris, esperando que ele me deixasse finalmente em paz. Mas vendo que ele tinha feito ocupar o meu lugar por um rival, estabeleci-me fora da vila, sobre a montanha de Santa Genovéva, como para defrontar o meu usurpador.

            A esta nova, Guilherme, perdendo toda a postura, voltou a Paris, e trouxe a sua confraria e o que ele tinha ainda de discípulos no seu antigo lugar, como para desembaraçar-se do seu general que ali tinha deixado. Em vez de o servir como ele contava, ele perdeu-o. Pois antes este desgraçado ainda tinha ao menos alguns discípulos, por causa da sua leitura, tipo de exercício no qual ele tinha uma reputação de hábil. À chegada do mestre, a sua escola ficou completamente deserta, e foi obrigado a fechá-la. Pouco tempo depois, desesperado sem qualquer glória, converteu-se ele também à vida monástica. Depois da volta do nosso mestre a Paris, a disputas escolásticas que os  meus discípulos sustinham contra Champeaux e os seus alunos, os sucessos que a minha escola reportava pelas suas hostilidades, e a parte que me revinha, são factos conhecidos de todos vós. De qualquer modo, direi arduamente, e com mais modéstia que Ajax;

            «Se perguntais qual foi a saída deste combate, não fui de modo algum vencido pelo meu inimigo.»

            Quando não o disser, a coisa fala dela mesma e o evento o fará assim conhecido.

            Sobre estes entrefactos, Lúcia, a minha mãe querida, apressou-me a ir a Bretanha; Bérenger, o meu pai, tinha tomado o hábito, e ele preparava-se a imitar o seu exemplo. Depois da cerimónia, voltei a França, principalmente na intenção de estudar a teologia, que o mesmo Guilherme de Champeaux ensinava então com muito carisma na sua escola de Châlons. Ele tinha tido como mestre nesta ciência Anselmo de Laon, desde muito tempo visto como o maior teólogo deste tempo.

            Eu ia então ouvir Anselmo. Este velho devia a sua grande reputação mais à rotina que ao seu génio. Se fosseis bater à sua porta e consultá-lo sobre qualquer dificuldade, as vossas dúvidas aumentavam e voltáveis com mais incerteza que antes. Admirável aos olhos dum auditório, ele era nulo em presença dum adversário. Ele tinha uma maravilhosa abundância  de linguagem, mas sobre estas belas palavras o sentido era vazio e pobre de razão. Logo que ele acendia o seu fogo ele enchia a sua casa duma fumaça, e não a aclarava nada. A sua árvore toda em folhagem cerrada, apresentava de longe um aspecto imponente, mas quando vínhamos a examiná-la de mais perto, encontrávamo-la estéril. Aproximei-me para recolher do seu fruto; reconheci que era o figo maldito pelo Senhor, onde o velho ao qual Lucain compara Pompeu nos seus versos:

            «O ombro de um grande nome estava sozinho ao início, como um monte alto num campo fértil.»

            Uma vez desabusado, não fiquei muito tempo sob o seu ombro.  Não assistia mais do que raramente  às suas lições, e esta inexactidão feria os principais discípulos de Anselmo como uma marca de desprezo por um tal doutor. Eles o envenenaram surdamente contra mim, e as suas pérfidas sugestões fizeram-me um inimigo.

            Um dia, após uma aula de controvérsias, aconteceu que falávamos entre alunos; e, um deles tendo-me perguntado insinuosamente o que pensava da leitura dos livros santos, eu, que ainda não tinha estudado que a Física, respondi que era a mais saudosa das leituras, pois esclarecia-nos sobre a bem da nossa alma, mas que estava extremamente espantado de ver que pessoas estudadas não se contentassem nada, para explicar da Bíblia, do texto mesmo e da Glosa, e que eles tinham ainda necessidade de uma outra ajuda. O riso foi quase geral. Perguntavam-me se sentia a força e a audácia de engendrar um tal ideia. Respondi que estava pronto, a fazer a prova. Gritando e rindo ainda mais: «Certo, diziam eles, consentimos de todo o coração. 

            - Então! disse eu, que procurem e encontrem uma passagem difícil da Escritura com uma só glosa  e susterei o desafio.» Eles acordaram-se  a escolher a mais obscura profecia de Ezequiel. Tomando então o livro, convidei-os logo a vir ouvir na manhã seguinte  o meu comentário. Então, dando conselhos a um homem que não os queria , diziam-me que esta acção era grave  e que não era necessário abordá-la precipitadamente, que devia tomar mais tempo e meditar a min ha interpretação. Espicaçado ao vivo, respondi friamente que habitualmente não procedia pela demora do meu trabalho, ma pela virtude do meu espírito; e adicionei que renunciava à prova ou que eles viessem ouvir a minha explicação na manhã seguinte.

           É preciso confessar que a minha primeira lição reuniu poucos auditores, pois parecia ridículo a todo o mundo ver um jovem homem, que não tinha nunca aberto o livros santos, abordá-los tão descontraidamente. 

            No entanto, todos os que me ouviam ficaram tão encantados com este primeiro discurso, que lhe fizeram um grande elogio, e apressaram-me a dar seguimento ao meu comentário seguindo o mesmo método.

            O assunto fez barulho. Os que não tinham assistido à minha primeira lição acorreram à segunda e à terceira, e todos se mostravam igualmente apressados em transcrever a minhas explicações, a começar pelas do primeiro curso.

            Um tal triunfo acendera no coração do velho Anselmo a inveja e o ódio. Desde à muito de olho em mim, começou a dar-me preocupações com as minhas lições de teologia, como fizera Guilherme de Champeaux com a filosofia.

            Havia na escola deste patriarca dois discípulos que pareciam distinguir-se dos outros. Alebéric de Reims e Loculphe de Lombardie. Quanto mais estavam em êxtase perante o seu próprio génio, mais eles me enxuvalhavam. À força de insinuações sórdidas, eles conseguiram perturbar o espírito do velho. Ele foi tão alarmado, que me defendeu sem razão e bruscamente de continuar na sua escola o comentário que havia começado, alegando para desculpa que, se viesse a por qualquer opinião errónea, toda a a responsabilidade cairia sobre ele, por causa da minha inexperiência na matéria. A esta novidade, todos os que frequentavam a escola foram penetrados de indignação. Jamais a inveja se tinha desmascarado com tal impudor, jamais vingança havia parecido tão odiosa; mas as calúnias de Anselmo o seu rancor invejoso se converteram em minha honra e as suas perseguições não fizeram que levantar o meu renome.

            Poucos dias depois, voltei a Paris para me instalar no lugar que me tinha sido oferecido, e que me destinaram  desde à muito tempo, na escola que tinha sido expulso. Durante vários anos aí fiquei possessor sem estar preocupado; e aí, desde a abertura dos cursos, retomando os comentários de Ezequielm que tinha começado a Laon, dediquei-me a acabá-los.

            Eles foram tão bem acolhidos pelos leitores, que a opinião pública fazia desde logo caminhar de frente o teólogo com o filósofo. Também, o entusiasmo excitado pelos meus cursos multiplicou prodigiosamente o número dos meus auditores, tinha então o dinheiro e a glória.

            Mas a prosperidade enche sempre os buracos, a segurança neste mundo enerva o vigor da alma.

            Crendo-me neste momento o único filósofo sobre a terra, não crendo mais nada do futuro, começava a largar o brio às  minhas paixões, eu que tinha sempre vivido na maior continência; e quanto mais avançava no caminho  da filosofia e da ciência sagrada, mais me afastava, pela impureza da minha vida, e dos filósofos e dos santos: pois é certo que os filósofos, e com mais forte razão os santos, quero dizer aos que aplicam o seu coração às exortações da Escritura devemos sobretudo a sua grandeza à sua castidade.

             Estava então consumido pelo orgulho e pela febre da luxúria, quando a graça divina veio-me curar, por mal meu, destas duas doenças, a luxúria primeiro, depois o orgulho: da luxúria privando-me dos meios da satisfazer, e do orgulho, que me vinha justamente da minha ciência segundo a palavra do Apóstolo - «A ciência enche o coração» - e humilhando-me pela destruição deste famoso livro que estava tão orgulhoso e que foi queimado.

            Eu quero contar-vos esta dupla história na ordem que os eventos se seguiram. Os factos instruir-vos-ão melhor da verdade que todos os barulhos que vos chegaram pelo rumor público.

            Não podendo me submeter a pôr o pé em falso para não ser gozado, privado aliás pela assiduidade às minhas lições do comércio e da frequentação das mulheres nobres, estava também quase sem relação com as da burguesia, quando a fortuna prevenindo todos os meus votos para me trair, encontrou uma ocasião mais favorável, que devia me dar frutos desta virtude sublime, e pela humilhação, trazer ao amor a Deus o orgulho que tinha reconhecido nos benfeitos da sua graça.

            Existia a Paris uma jovem rapariga chamada Heloísa. Ela era sobrinha dum cristão chamado Fulberto, que, na sua ternura por ela, nada negligenciava para lhe dar uma educação o mais completa e o mais brilhante. A sua beleza e o entendimento do seu saber rendia-a superior a todo o seu sexo. Esta qualidade tão rara nas mulheres adicionava ainda mais atractivos à sua graça, também o seu nome era já reparado no reino.

            Vendo-a como par de toda as seduções que de ordinário atraem os amantes, sonhava com uma ligação galante, e acreditei poder  consegui-lo facilmente. O meu nome era tão grande então, a graças da juventude e a proporção e ligeireza das minhas formas, davam-me sobre os outros homens uma superioridade tão pouco duvidosa, que podia oferecer indistintamente  a minha homenagem a toda as mulheres: cada uma dela nada tinha a temer.

            Persuadia-me então que a jovem rapariga consentiria sem excitar aos meus desejos. Os recursos do seu espírito e o seu gosto pelo estudo redobravam ainda as minhas esperanças. Mesmo separados, poderíamos estar juntos por meio de troca de cartas: a pena é mais ardilosa que a palavra, e assim se perpetuarão entretenimentos deliciosos.

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Heloísa

            Todo inflamado de amor por esta jovem rapariga, não procurava mais que a ocasião de me aproximar, de a familiarizar  comigo por investidas frequentes, e de a levar assim mais facilmente a ceder. Para aí chegar, empreguei perto do seu tio Fulberto a intervenção de alguns dos seus amigos. Eles convenceram-no a tomar-me em sua casa, que era vizinha da minha escola, moderando uma pensão que fixara ele mesmo o preço, alegava por motivo que os afazeres domésticos perturbavam os meus estudos. Fulberto era muito avarento, e atento a facilitar os progressos da sua sobrinha na carreira das belas letras. Referindo estas duas paixões, obtive o seu consentimento: o velho seduzido não pôde resistir à esperança de ver a sua sobrinha aproveitar da minha presença para a sua instrução. Ele expressou-me solicitações sobre este assunto. Enfim, ele mostrou-se tão amável que não ousei me elogiar, pois ele mesmo me serviu os meus desejos. Ele confiara inteiramente Heloísa ao meu cuidado, com a prece de me consagrar a instruí-la todos os instantes que não estava na escola, autorizando-me a vela a toda a hora do dia e da noite, e se  encontrasse negligente, para a castigar severamente.

            Se eu admirava a ingenuidade do tio, por outro lado pensando em mim, não fiquei menos espantado que se ele confiasse uma pequena cria a um lobo faminto.

            Pondo Heloísa ao meu cuidado, para a ensinar e mesmo para o punir, que fez ele de contrário senão dar-me licença aos meus desejos e de me oferecer ocasiões de triunfar, mesmo que Heloísa não partilhasse os meus sentimento? De facto, se a carícias eram impotentes, não tinha a ameaças  e os socos para a fazer ceder? Mas duas coisas afastavam  do espírito de Fulberto  toda a suspeita injuriosa, a ternura filial da sua sobrinha, e a minha antiga reputação de continência. Para dizer tudo numa palavra, nós fomos reunidos primeiro pelo mesmo tecto, depois pelo coração. Sob o pretexto de estudar estávamos todos inteiros para o amor. Longe de todos os olhares, o nosso amor aumentava. Os livros eram abertos, mas havia mais palavras de amor, de lições de sabedoria, mais beijos que filosofia e a mãos voltavam mais frequentemente ao seio de Heloísa que aos nossos livros; o amor reflectia-se nos nossos olhos mais vezes que a leitura os dirigia sobre as páginas dos autores. Para melhor afastar  a suspeita até lhe batia... socos dado pelo amor e não pela cólera, pela ternura e não pelo ódio. Que vos direi? No nosso  ardor, passámos por todos os degraus do amor; nenhum refinamento foi esquecido. Estas alegrias tão novas para nós, nós prolongavamos-las com delícia, e nós não  nos deixávamos nunca. O prazer dominava-me de tal maneira que não podia mais dar-me à filosofia, nem dar os cuidados à minha escola. Era para mim uma chatice mortal de lá ir ou de lá ficar; era também uma fadiga, pois todas as minhas noites eram para o amor, e as dos dias para o leitura e para o estudo. Eu fazia as minhas lições com abandono e tédio e o meu espírito não tinha mais inspiração, limitava-me a repetir  as minhas antigas lições, e acontecia-me  de compor versos, eram canções de amor e não axiomas de filosofia. Destes versos, a maior parte, como vocês sabem, tornaram-se populares, e são ainda cantados em muitos países, pelos que se encontram sob o charme do mesmo sentimento. 

             
             Abelardo e Heloísa em casa do tio Fulberto

            Mas podemos apenas fazer uma ideia da tristeza dos meus discípulos quando se aperceberam da preocupação, melhor dizendo, da desordem do meu espírito. Uma paixão assim visível não podia ficar muito tempo ignorada. Ninguém talvez se enganava, excepto aquele cuja honra estava particularmente comprometida, quero dizer o tio de Heloísa. A crónica escandalosa tinha-o prevenido muitas vezes da nossas intrigas; ele não lhe punha fé, pois ele tinha pela sua sobrinha uma afeição sem conta, e ele conhecia, já o disse, a minha reputação passada e nós não acreditamos facilmente na infâmia dos que nos são queridos, e numa ternura profunda ele não saberia ter lugar para a suspeita. Também, Santo Jerónimo, escreve na sua carta a Sibiano:

            «Nós somos quase sempre os últimos a conhecer as afrontas da nossa casa, e ignoramos as vivências das nossas crianças e do nossos esposos, quando os vizinhos se riem em alto tom. Ma o que aprendemos pelos outros, acabamos sempre por o saber, e o que bate nos olhos de todos dificilmente fica escondido de um só.»

            Vários meses tinham passado, quando Fulberto soube tudo. Oh! como foi amarga a dor que ele ressentiu com esta descoberta! Como foi rasgante também a separação dos amantes! Que vergonha, que confusão para mim, de qual coração partido gemia sob a aflição de Heloísa! e que tempestade de desespero elevava na minha alma o pensamento da minha própria desonra! No choque terrível que nos batia, cada um de nós esquecia-se dele mesmo para sofrer pelo outro; cada um de nós deplorava um só infortúnio, e não era a ciência.

            Mas a separação dos corpos só fazia unir mais os nossos corações. O nosso amor, privado das suas alegrias, irritava-se demais. A ela uma vez içada, o escândalo já não nos retinha, e nós não ressentíamos os sentimentos da vergonha diante o charme irresistível da paixão. Aconteceu-nos o que a mitologia conta de Marte e de Vénus, quando eles foram surpreendidos. Pouco tempo depois Heloísa sentiu que era mãe e na sua alegria, ela escreveu-mo na hora para me consultar sobre as medidas que era preciso tomar a este assunto. Uma noite durante a ausência de Fulberto, assim que nós estávamos convencidos, levei-a furtivamente e fi-la passar para Bretanha, onde ficou em casa da minha irmã, até ao dia em que deu à luz um filho que chamou de Astrolábio.

            Esta fuga deixou Fulberto como um louco. Ninguém pode saber a tempestade de fúria que fervilhou nele. Para exprimir a sua vergonha, era preciso os aprovar ele mesmo. Ma que fazer contra mim? Que embuscadas me tecer?... Ele não o sabia. Se me matava, ou se me ferisse somente, ele temia antes de tudo que a sua sobrinha querida não fosse vítima da vingança dos meus na Bretanha. Se aproveitar de mim e me reduzir em câmara privada, era coisa impraticável, pois eu tinha-me cuidadosamente em guarda contra qualquer surpresa, convencido que o tio era homem para toda a atitude, se era o mais forte ou se ele se achava ser. Enfim, tocado de compaixão pelo excesso da sua dor, e acusando-me a mim mesmo do roubo que lhe fez o meu amor como a última das traições, iria encontrar Fulberto, supliquei-lhe, prometi-lhe todas as reparações que ele exigiria. Afirmava que a minha conduta não surpreenderia ninguém  de todos os que  tinham provado do amor e que se lembrariam com violência em que abismo os maiores homens  tinham sido precipitados pelas mulheres desde o começo do mundo. E para melhor o apaziguar ainda ofereci-lhe uma satisfação que ultrapassava todas as suas esperanças, em propondo-lhe de me casar com aquela que tinha seduzido, ma todavia que o meu casamento fosse  mantido em segredo, de modo a não perturbar a minha reputação. Ele consentiu; ele deu-me a sua palavra e a dos seus amigos  e a dos seus beijos de reconciliação que solicitei; mas era para melhor me trair.

            Iria o mais cedo possível em Bretanha, afim de trazer a minha amante e fazê-la minha mulher. Mas longe de aprovar o meu projecto ele reprovou-o inteiramente, e fez valorizar, para me dissuadir, duas razões principais: o pesar e a desonra às quais eu me ia expor. Ela jurava que o seu tio não tinha perdoado e não perdoaria nunca: ela tinha razão, o seguimento o provou. Ela perguntou-me qual a vantagem e honra podíamos tirar dum casamento que ruiria a minha glória degradando-nos um ao outro? Que expiação o mundo não teria direito de exigir dela se ela lhe retirasse  o seu mais  espectacular sábio? Ela punha sob os meus olhos as maledicências que sofreríamos neste casamento, o prejuízo que devia causar à Igreja, as lágrimas que custaria à filosofia. O quanto não seria inconveniente e deplorável ver um homem que a natureza criou para o mundo inteiro, servir uma mulher e curvar-se sobre este jogo infame? Ela repuxava energicamente esta união que seria, dizia ela, a perda do meu renome e a ruína do meu futuro. Ela representava-me à vez as dificuldades que seguiriam o nosso casamento, dificuldades que o Apóstolo nos exorta a evitar quando ele diz:

            «Estás tu livre de mulher? Não procures mulher. Se tu te casares, não pecaste; se a virgem se casa, ela não pecará; no entanto eles serão submissos às tribulações da carne; e quero poupar-vos.» E mais baixo:

            «Desejo que fiqueis sem inquietude.»

            Que se eu não me rendesse nem ao conselho do Apóstolo, nem à exortações dos santos, que consideram o casamento como um jogo acablante, ao menos, dizia ela, devia consultar os filósofos, e tomar em consideração o que tinha sido escrito seja por eles, seja para eles; método à qual os santos eles mesmos recorrem frequentemente para nossa reprimenda. Testemunho esta passagem de São Jerónimo, onde ele lembra que Teofrasto, depois de ter retratado em detalhe os aborrecimentos insuportáveis do estado conjugal, e suas perpétuas inquietudes, provara  pelos argumentos mais evidentes, que o sábio não deve casar-se; pois ele acaba ele mesmo  os conselhos da filosofia por esta conclusão:

            «Qual é o cristão que não seria confundido de encontrar um a tal argumentação em Teofrasto?»

            Na mesma obra, o santo sita ainda o exemplo de Cícero, que, vendo-se solicitado por Hírcio a casar com a sua irmã depois da repudiação de Terentia, recusou-se formalmente, dizendo que lhe era impossível de dar igualmente os seus cuidados a uma mulher e à filosofia. Ele não diz «dar os seus cuidados», ele acrescenta igualmente, não querendo nada que possa fazer obstáculo ao estudo da filosofia.

            Esquecendo um instante os entraves  que uma mulher traria aos vossos estudos de filosofia; e sonhando com a situação que vos coloca uma aliança legítima. Que relação pode aí haver entre as escolas e o traquejo duma casa, entre as  escrivaninhas e os berços, os livros ou tabuinhas e as rocas, os estiletes ou penas e os fusos? Será ele um homem enfim que, aplicado às meditações filosóficas ou religiosas, possa suportar os choros de um recém nascido, as canções das amas que o consolam,  o vai-e-vém dos valetes e seguintes que compõem a casa? Poderemos nós jamais sofrer a sujidade contínua das crianças com pouca idade? Os ricos fazem-no bem, diríeis vós. Sim, sem dúvida, pois eles têm no seus palácios ou nas suas vastas moradas apartamentos reservados; o dinheiro não custa nada à sua opulência, e eles não levam em conta as preocupações de cada dia. Mas a condição dos filósofos não é a mesma que a dos ricos, e os que procuram a fortuna, cuja vida está ligada aos assuntos mundanos, não estuda nem a Escritura  nem a filosofia. Também, vejamos nós  os filósofos célebres de outros tempos, cheios de desprezo pelo mundo  e fugindo do século e que o deixavam sem os prazeres e só se dedicavam ao seio das letras e da filosofia.

            Um dos dois, o maior, Sêneca , diz nas suas epístolas a Lucílio: «A filosofia requer outra coisa que as diversões. È preciso tudo sacrificar tudo por um estudo ao qual todo o nosso tempo inteiro não chegaria. É quase  a mesma coisa de renunciar  à filosofia ou de lhe impor tempo de arreio pois toda a interrupção faz perder o fruto. Seja em guarda contra os assuntos: não se trata de os desembaraçar, mas de os afastar.» O que os monges, verdadeiramente dignos deste nome, aceitam em vista do amor de Deus, os filósofos distintos praticaram-no pelo amor à filosofia. De facto, em todos os povos do mundo, pagãos, judeus ou cristãos, alguns homens sempre se encontraram, elevando-se acima do vulgar, pela vez onde a severidade dos costumes e separando-se do povo por uma continência ou uma austeridade singular.

            Tais foram na mais alta antiguidade, entre os judeus, entre os Nazarenos, que se consagravam ao serviço do Senhor, conforme a lei, e os filhos dos profetas, e os seguidores de Elias e de Eliseu, que o Antigo Testamento, de acordo com o  testemunho de São Jerónimo, representa-nos como monges. - Mais tarde, estas três classes de filósofos que José, no seu livro XVIII, distingue sob o nome de Parisienses, Saduceus e Essêncios.- Entre nós os monges, que vivem em comum à imitação dos Apóstolos, ou que tomam por modelo a vida primitiva e solitária de São João. - Enfim, entre os pagãos, os que os chamaram filósofos: pois eles traziam menos ainda o nome  de sabedoria ou  de filosofia à percepção da ciência que à santidade da vida, assim que nós aprendíamos a etimologia desta palavra e o testemunho mesmo dos santos. Tal é, entre outros, aquele de Santo Agostinho no seu livro III da Cidade de Deus, onde ele estabelece a distinção das classes filosóficas: «A escola itálica, diz ele, teve como fundador Pitágoras de Samos, que passa por ter dado o seu nome à filosofia. Antes dele qualificávamos de sábios o homens que pareciam transportá-lo obre os outros por um estilo de vida diga de elogios; mas, interrogado um dia sobre a sua profissão, ele respondeu que era filósofo, quer dizer sabedor ou amigo da sabedoria, parecendo que não podíamos sem orgulho fazer profissão de ser-se sábio.»

            Nesta expressão «os que pareciam avantajar-se sobre os outros por uma vida  digna de elogios», fica claramente demonstrado que os sábios entre os pagãos, quer dizer os filósofos, eram assim denominados por causa da sus conduta mais que em virtude de uma ciência profunda. Quanto à sua continência e à sobriedade das suas vidas, não procurarei mais em juntar aqui  provas, terei ar de fazer a lição a Minerva ela mesma. Mas se os laicos e os pagãos viveram assim, mesmo que eles fossem livres de toda a espécie de votos religiosos, vós que sois clero e revestidos do canónico, ousaríeis preferir as volúptias vergonhosas ao vosso ministério sagrado, precipitar-vos neste Caribe devorante, e, bravando toda a vergonha, prolongar-vos para todo o sempre no abismo das impurezas? Se fazeis pouco caso dos deveres do clero, mantenham ao menos a dignidade do filósofo. Se os escrúpulos religiosos são completamente ignorados, que o sentimento da decência sirva de travão ao impudor. Lembrai-vos que Sócrates foi casado  e por qual ultrajoso acidente ele expiara primeiro esta taxa imprimida à filosofia, a fim de o seu exemplo servir para render os homens mais prudentes. Este trecho não escapou a  São Jerónimo no seu livro primeiro contra Joviniano, onde fala de Sócrates: 

            «Um dia, fazendo face à tempestade de injúrias que Xantia fazia cair sobre ele de um estádio superior, ele sentiu-se banhado duma água fétida. Para toda resposta, ele diz em se enxugando a testa: «Eu sabia bem que este trovão traria chuva».

            Enfim, falando em seu nome, ele representava-me como era perigoso para mim traze-la a Paris, acrescentando que o título de amante seria à vez infinitamente mais caro para ela e mais honroso para mim que o de esposa; ela queria conservar-me simplesmente por um favor da minha ternura, e não me tomar pelos laços, e ela acrescentava que as separações momentâneas   penderiam sobre as nossas aproximações mais charme, quanto mais raras. Depois, vendo que todos estes esforços para me convencer e me dissuadir vinham quebrar-se contra a minha estupidez, e não podendo se resumir a levar de fronte a minha vontade, ela terminara assim nos soluços e nas lágrimas:

            Nós recomendámos então à minha irmã o nosso filho, e voltámos secretamente a Paris. Alguns dias mais tarde, depois de ter passado uma noite a celebrar vigílias numa igreja, ao nascer do dia, recebemos  benção nupcial em presença do tio de Heloísa e de vários de seus amigos e dos nossos. 

            Depois nós nos retirámos separadamente e no maior mistério, e não nos vimos mais que apenas às escondidas e muito raramente de modo a deixar ignorar o nosso casamento. 

            Mas Fulberto e os membros da sua família  procurando limpar a afronta que tinham tido, começaram a divulgar a nossa união e a violar contra mim o juramento. Heloísa, ao contrário, protestava altamente contra estas alegações, e jurava que nada era tão falso. Desesperado por esta conduta, Fulberto acusou a sua sobrinha de maus tratos; informado desta situação, decidi  enviá-la  à abadia das monjas de Argenteuil onde ela tinha sido educada e instruída  na sua primeira juventude. Fiz-lhe tomar também, com excepção do véuos hábitos de religião que estavam em harmonia com a vida monástica. 

            A esta novidade, o seu tio ou os seus parentes ou aliados pensaram que eu os tinha tomado por parvos, e que tinha posto Heloísa no convento para me desembaraçar dela. Cheios de indignação, eles conspiraram contra mim e resolveram me punir. Na noite um dos meus servidores, corrompido a preço de ouro, introduziu-os num quarto retirado da minha residência, onde eu repousava, e me livraram  durante o meu sono à mais vergonhosa das vinganças. Vingança tão bárbara, e que o mundo acolheu a notícia com estupefacção: separaram de mim as partes do meu corpo  com as quais cometi o pecado do qual eles se culpavam. Mas o homem pôs-se um fuga, dois dentre eles, que conseguiram prender, foram privados dos olhos e dos órgãos da geração. Um deles era este mesmo servidor preso à minha pessoa, e que a cupididade tinha puxado à traição.

 
A castração de Abelardo

            Na manhã seguinte, toda a vila estava reunida em volta da minha casa. Seria-me difícil  ou mesmo impossível de  exprimir o espanto e  a estupidez geral, os gritos e as lamentações que me cansavam, enfim todos os sinais de desespero que deitaram a perturbação e o embaralhamento no meu espírito. Os clérigos sobretudo, e particularmente os meus discípulos martirizavam-me com as suas queixas e as suas lamentações insuportáveis  de modo que a sua compaixão era bem mais cruel para mim que a minha ferida sangrando e mutilado, só sentia a minha confusão e sofria bem mais da minha vergonha que da minha dor: tristes pensamentos apresentavam-se no meu espírito: de qual glória eu me alegrava ainda à pouco, e com que facilidade um só momento o havia destruído! O julgamento de Deus era justo, e fora punido na parte  do meu corpo que tinha pecado. As represálias de Fulberto eram legítimas, ele tinha-me dado traição por traição. Que triunfo entre os meus inimigos, e como eles viriam esta justa balança entre o erro e o castigo! Que inconsolável dor a pancada que me bateu ia deitar na alma dos meus pais e do meus amigos. O meu acidente, contado por todo o lado, ia ocupar o mundo inteiro de uma vergonha. Onde passar agora? Como aparecer em público? Ia ser apontado com o dedo por todo o mundo, desdenhado por todas as línguas, e vir a ser por todos um curioso espectáculo.

            Uma coisa contribuía ainda a me aterrar: segundo a carta mortal da lei, os eunucos são de tal modo abominados perante Deu, que os homens reduzidos a este estado pela imputação são rejeitados do seio da Igreja como fétidos e imundos, e que os próprios animais, quando eles são assim mutilados, são rejeitados do sacrifício.

            «Todo o animal impotente não será oferecido ao Senhor.»

            «O eunuco não entrará na Igreja.»

             Confuso e envergonhado de mim mesmo, foi, confesso, o sentimento da minha penosa desgraça, em vez de uma vocação sincera, que me puxou para o ombro do tio, depois que todavia Heloísa, seguindo as minhas ordens, com uma inteira abnegação, tomou o véu e entrou para o convento. Revestimos então os dois ao mesmo tempo o hábito religioso, eu na abadia de São Dionísio, ela na de Argenteuil da qual já falei.

 

 
Heloísa toma o véu monástico

             Uma multidão de pessoas quiseram submeter a sua juventude ao jugo da regra monástica, assustando-a com a perspectiva de um insuportável  suplício; todos os esforços foram em vão, ela não respondeu que gemendo, entre as lágrimas e os  soluços, deixando escapar esta queixa de Cornélia: 

            «Ó nobre esposo! o meu leito fatal não devia te ter recebido! A minha fortuna tinha ela o direito sobre uma mente tão alta?  Que demónio, que furor me impelia nos teus braços, se eu devia causar a tua tristeza? Agora vais ser vingado, mas o meu coração vai à frente do sacrifício.»

            Ao pronunciar estas palavras, ela avançou para o altar, recebeu das mãos do bispo o véu benzido, e fez publicamente o sermão da profissão monástica.

            Apenas estava convalescendo da minha ferida, que os clérigos acorreram em multidão onde eu estava, começaram a cansar o nosso abade de suplícios contínuos, com vista a obter as minhas lições, solicitando-me também de me consagrar doravante, pelo amor de Deus só, ao estudo, que, até aqui, não tinha ido para mim , que um instrumento de glória e de fortuna.

            «Eu  não devia perder de vista, diziam eles, que o Senhor, reclamando-me o talento que ele me tinha dotado; pois que até agora eu não me tinha ocupado que dos ricos, deveria doravante dar instrução aos pobres; do acidente do qual fui vítima era preciso reconhecer a mão de Deus, que queria, confrontando-me com seduções da cadeira e da vida tumultuosa do século, dedicar-me sem distração ao estudo das letras, e fazer de mim o  verdadeiro filósofo de Deus, mais ainda que o do mundo.»

            Ora, esta abadia de onde me retirei estava desonrada por todas as desordens da vida mundana que ali levavam. O abade, ele mesmo, tinha ainda obre os seus monges uma outra superioridade na dissolução e na infâmia notória das suas morais. Tendo feito muita vezes, tanto em particular , violentas saídas contra o escândalo dos seus comportamentos, senti-me odioso e insuportável a todos. Se bem que encantados pela instâncias repetidas dos meus discípulos, eles satisfizeram com pressa a ocasião de e livrarem de mim. Apressado pelas solicitações incessantes do estudantes e as intervenções  do abade e do irmãos, retirei-me num priorado para retomar os meus hábitos de ensinamento. A afluência dos meus discípulos foi tão grande, que o local não chegava para os alojar, nem a terra a alimentá-los. Aqui, tomando o objecto da teologia pelo  objecto principal do meus cuidados, assim que reclamava as conveniências do meu hábito, não repudiei mais inteiramente as artes seculares, quer dizer as letras profanas, à quais eu me tinha exercitado bastante, e que perguntavam sobretudo nas minhas lições; mas fiz uma espécie anzol para os meus auditores, a fim de lhes atirar por um ante gosto filosófico obre o verdadeiro terreno da teologia segundo o método atribuído pela história eclesiástica ao maior dos filósofos cristãos: Origène. E como o Senhor parecia não me ter menos favorecido pela inteligência da santas Escrituras que por aquelas dos livros profanos, os auditores atraídos pelos meus dois cursos multiplicaram-se ao ponto das outras escolas  ficarem vazias, o que aumentava contra mim a inveja dos meus rivais. Eles trabalhavam todos para me denegrir; mas dois sobretudo aproveitavam da minha ausência para me oporem constantemente que nada era mais contrário ao objectivo da vida monástica que deter-se no estudo dos livros profanos, e que era também muita presunção, a mim, de me apoderar da cadeira das verdades religiosas sem o curso de um teólogo. O que eles queriam  era fazer-me interditar todo o exercício de professorado e eles puxavam sem cessar e sem relaxar a fim de chegar ao objectivo deles, bispos, arcebispos, abades, numa palavra todas  as pessoas tendo nome dentro da hierarquia eclesiástica.

            Ora, aconteceu que me aplicava primeiro a discutir o princípio fundamental da nossa fé por analogias da razão humana, e que eu compunha sobre a Unidade e a Trindade em Deus um tratado ao uso dos meus discípulos, que pedia sobre este assunto razões humanas e filosóficas, e às quais eram precisas ideias inteligíveis em vez de discursos. Eles diziam que é inútil falar por não  ser compreendido, que não podemos crer que no que compreendemos, e que é ridículo ver um homem pregar aos

            Isto após ter esfolheado o livro em todos os sentidos, não encontrando nada que eles ousassem produzir contra mim na audiência,  adiaram para o fim do concílio esta condenação à qual eles ansiavam com tanta impaciência. Do meu lado, empregava todos os dias  que precederam as audiências do concílio a desenvolver publicamente a fé católica no sentido dos meus escritos, e todos os meus auditores agrupavam-se num sentimento de admiração sem reserva pelos meus comentários e o seu epírito.

            O povo e o clérigo, vendo o que se passava, começaram a dizer: «Eis agora que ele fala diante de todo o mundo, e ninguém lhe responde. E o concílio, que no diziam reunidos principalmente contra ele, tira no fim. Os juízes teriam eles reconhecido que o erro está do lado deles que do dele?»

            Estes rumores atiçavam sem cessar mais e mais o furor dos meus rivais. Um dia Alberico, esperando fazer-me cair numa cilada, veio encontrar-me com alguns dos seus alunos. Depois de algumas palavras amáveis, disse-me que tinha  reparado no meu livro certa passagem que o espantou: Deus, tendo criado Deus, e Deus não sendo que um, como  poderia negar que Deus se criou a ele mesmo? «Se vós quereis, respondi-lhe eu logo, é uma tese que vou suster racionalmente. – Em tal assunto, retomou ele, não temos em conta a razão humana nem dos nossos sentimentos, não reconhecemos as palavras da autoridade. – Virai, disse-lhe eu, a folha do livro, e encontrarei a autoridade.» Nós tínhamos justamente sob a mão a minha obra que ele tinha trazido com ele. Eu reportava-me à passagem que conhecia, e que lhe tinha escapado, porque ele não queria ver dentro do meu livro que o que me pudesse incomodar. E a vontade de Deus fez que eu encontrasse primeiro o que queria; era a citação tirada de santo Agostinho, sobre a Trindade (livro I):

            «O que supõe a Deus a potência de se ser criado ele mesmo engana-se tanto que não é assim nem aos olhos de Deus, nem mesmo de nenhuma criatura espiritual ou corporal. Não há nada, de facto, que se crie a ele mesmo.»

            À leitura destas palavras, os discípulos de Alberico, que estavam presentes coraram de estupefacção. Quanto a ele, retratando-se do seu meio: «É preciso, diz ele, compreender bem.- Mas, repliquei, não é uma opinião nova, aliás isto não toca em nada na questão do momento, pois são palavras que vós quereis e não um sentido.» Adicionei que se ele queria  apelar à interpretação e à razão, estava pronto a demonstrar-lhe pelas suas próprias palavras, que tinha caído na heresia dos que pretendem que o Pai é ao mesmo tempo o Filho de Si mesmo. Estas palavras deixaram-no furioso, ele foi-se embora, jurando que nem as minhas razões nem a autoridade me salvariam desta causa: e sob isto ele saiu.

               «Vós sabeis tudo, Meus Senhores, aqui presentes, que o saber universal deste homem e o esplendor do seu génio nos diversos assuntos que abraçou, fizeram-lhe numerosos e fiéis adeptos; ele fez empalidecer a glória dos nossos mestres e dos seus, e que a sua vinha, se assim me posso exprimir, estendeu os seus ramos de um mar ao outro. Se vós o  julgais sem o entenderdes, o que eu não acho, uma condenação, seria ela justa, seria mal acolhida por todo o mundo, defensores se elevarão, guardai a dúvida, sobretudo porque não vimos nada nesta escrita que fira abertamente os ortodoxos. Diríamos, segundo a palavra de São Jerónimo, que a força evidente atrai  os invejosos, assim como os cimos atiram o pó. Temei então que uma conduta violenta em relação a este homem não tenha outro efeito que aumentar o seu renome, e que a consciência pública não fortalecesse antes a paixão invejosa dos júris que o erros culpados de o condenar; pois um falso falatório é rapidamente abafado, diz ainda este mesmo doutor, e o segundo período da vida faz jus do primeiro. Mas se quereis proceder regularmente contra ele, que estes dogmas onde o seu livro seja discutido em plena assembleia; que o interrogue-mos, que ele responda livremente, e que assim, confundido ou abjurado voluntariamente a seus erros, ele seja reduzido ao silêncio. Sigamos ao menos o espírito deste proteto de São Nicodemos, que querendo salvar Nosso Senhor, gritava:  «Desde quando a nossa lei julga  um homem sem o ter entendido, e sem que se tenha verificado o que ele fez.»

            A estas palavras, os meus rivais interromperam-no todos ao mesmo tempo e começaram a gritar: “«Ô, o sábio conselho de querer englobar-nos na luta contra a infatigável retórica de um homem em que os argumentos e os sofismos triunfarão no mundo inteiro!» Mas era certamente mais difícil ainda lutar contra Cristo ele mesmo, e portanto Santo Nicodème convidava os Juizes a ouvi-lo, segundo a fórmula da lei.

Godofredo, não podendo trazer os espíritos à razão, quis experimentar um outro meio para pôr um freio a todos estes ódios e declarara que em matéria de tal gravidade o pequeno número de pessoas presentes não chegavam, e que a causa reclamava uma discussão mais aprofundada. A sua opinião era então que esperando a decisão definitiva remeteram-me entre as mãos do meu abade, para  me reconduzir à minha abadia, isto é, ao mosteiro de São Dionísio;  aí convocaríamos de seguida um maior número de doutores esclarecidos, que conforme os estatutos, após um exame mais maduro sobre a decisão que era preciso tomar. 

Esta última moção foi aprovada pelo legado e por todos os outros. Alguns instantes depois, o legado erguia-se para ir celebrar a missa antes de entrar no concílio, e foi-me transmitida pelo bispo Godofredo a autorização que me fora acordada de voltar ao meu mosteiro para aí esperar o resultado da medida que tinham parado.

Então os meus inimigos, crendo que tudo estava perdido se este caso se decidisse fora da sua diocese, quer dizer num local onde eles não poderiam sentar-se como juízes, e pouco confiante numa outra justiça que a deles, persuadiram o arcebispo que seria perigoso deixar-me escapar assim. E logo, correndo a encontrar o legado eles lhe fizeram alterar a sentença, e o levaram, a bom grado, apesar de tudo, a condenar o meu livro sem exame, a queimá-lo  imediatamente diante de todos, e a punir-me com uma reclusão perpétua num mosteiro afastado. Eles diziam que a condenação do meu livro era certamente bem motivada pela audácia que tinha tido de o ler publicamente  e de o ter dado a copiar a várias pessoas, sem ter obtido a permissão do papa nem a da Igreja; e que seria um grande exemplo dado à fé cristã, se, pelo meu exemplo, prevenissem no futuro uma tal presunção.  Como o legado não possuía toda a instrução desejada, ele deixava-se guiar pelo arcebispo, que, ele mesmo, não se inspirava que dos conselhos dos meus rivais. O bispo de Chartres, pressentindo as suas maquinações, instrui-me em demora, e me exortou fortemente a opor a esta prova tanta doçura que os meus inimigos deploravam visivelmente  de violência. Esta violência, tão manifesta, dizia ele, incomodaria aos seus projectos e me serviria a mim mesmo. Quanto à  reclusão  num mosteiro, não era preciso me atemorizar, sabendo que o legado, que não agia que por consenso, não faltaria, logo após a ua partida, de me dar inteiramente a minha liberdade. Foi assim que juntando as suas lágrimas à minhas, ele me consolou o melhor que pode.

Chamado ao concílio, rendi-me logo na altura, e aí, em debate nem discursos, forçaram-me a deitar ao fogo das minhas próprias mãos o livro em questão, e vi-o queimar. O silêncio geral não parecia dever ser interrompido, quando um dos meus adversários murmurava timidamente que se tinha apercebido no meu livro que Deus Pai é um só todo poderoso. O legado ao ouvi-lo, gritou: «Isso não é possível: uma criança não cairia num tão grande erro, pois a fé comum tem em profecia que há três Todo-Poderosos.» Ao que um certo Terrières, doutor nas escolas, replicou ironicamente pelas palavra de Santo Atanásio: «E talvez não existam três Todo-Poderosos, mas um só Todo-Poderoso.» O seu bispo querendo dá-lo como culpado de elevar a sua voz contra a majestade; mas Terrières, elevando-se com audácia, gritou, emprestando as palavras de Daniel: «Assim, filhos insensatos de Israel, não conhecendo a verdade, condenaram o filho de Israel. Voltai sobre o vosso julgamento, e julgai o juizado ele mesmo, vós que o estabeleceste nas suas funções pelo ensinamento da fé e para a correcção do erro: quando ele devia julgar, condenou-se pela sua própria boca, a inocência do acusado foi conhecida hoje pela misericórdia divina: Livrai-o como noutro tempo Deus livrou Susana  dos seus falsos acusadores.»

Então o arcebispo, elevando-se e mudando um pouco a fórmula, segundo a exigência do momento, confirmara assim a opinião do legado: «Certamente, meu Senhor,  o Pai é Todo-Poderoso, o Filho é Todo-Poderoso, o Espírito Santo é Todo-Poderoso. Quem se afasta deste dogma está evidentemente  fora dos votos católicos, e não merece ser ouvido pelo público. Agora, se o consentis, é de bem que o nosso irmão exponha a sua fé em presença de todos, afim que possamos, se convier aprová-lo, ou desaprová-lo e a reescrever.» E como me elevei para confessar e expor a minha crença, com a intenção de traduzir como o entendiam os meus sentimentos  e os meus pensamentos, os meus adversários disseram que não precisava de outra coisa que recitar o símbolo de Atanásio, o que a primeira criança poderia fazer tão bem como eu. E de modo a que me fosse impossível de pretextar de ignorância, eles fizeram-me trazer o texto escrito, para o ler, como se o tenor não me fosse familiar. Li, no meio de suspiros, de soluços e de lágrimas, como pude. Dado em seguida como culpado e convicto ao abade de São Medardo, que estava presente, fui arrastado para o seu claustro como para uma prisão, e  o concílio foi logo dissolvido. O abade e os monges do seu mosteiro, persuadidos  que iria ficar,receberam-me com a maior alegria e trataram-me com todo o tipo de intenções para me consolar; mas os seus esforços eram inúteis.

Deus, que julga os corações direitos, qual era então o fiel que me devorava? Qual era o amargor do meu coração, pois fui suficientemente cego para me revoltar contra os teus julgamentos, tão furioso para te acusar, repetindo frequentemente esta queixa de Santo António:«Jesus, meu salvador, onde estáveis?» Febre da dor, tormenta do desespero, pude tudo sentir então; hoje não o posso

Este acto de crueldade e injustiça, uma vez conhecido, levantou de toda a parte tais reprovações, que cada membro do concílio delegou a responsabilidade dos erros nos outros. Os meus próprios rivais defendiam-se de ter determinado  esta injustiça pelos seus conselhos, e o legado deplorava a animosidade que o clérigo de França tinha deplorado neste assunto. Guiado pelo repente, este prelado, que tinha tido momentaneamente a mão foçada sacrificando-me ao ódio dos meus inimigos, tirou-me alguns dias depois deste mosteiro estranho para me enviar para o meu, onde reencontrei em quase todos os irmãs antigos inimigos, disse mais alto que a depravação do seu género de vida e os seus

Após alguns meses a sorte ofereceu-lhes a ocasião de me perder. Um dia, lendo, caí numa passagem de Beda, na sua exposição dos Actos dos Apóstolos, onde este autor assegura que Dionísio, o Areopagita foi bispo de Corinto e não de Atenas. Esta opinião contrariava vivamente nos monges de Saint-Denis, que se vangloriavam  que o seu fundador Dionísio, cujos feitos e gestos provam que ele era bispo de Atenas, e este mesmo Areopagita. Tendo feito esta descoberta, comuniquei brincando, a alguns dos  irmãos que me escutavam, o testemunho de Beda, que nos tinha oposto.

Transportados de indignação, eles contestaram que Beda era um impostor, e que eles tinham como maior verdade o testemunho de Hilduíno, o abade deles, que tinha percorrido muito tempo a Grécia para esclarecer este ponto e, depois de ter reconhecido a exactidão tinha por fim levado toda a espécie de dúvida sobre este assunto na vida de Saint-Denis - o Areopagita que o escreveu.

Apressado em seguida com uma insistência importuna de exprimir a minha opinião sobre esta contradição entre Beda e Hilduíno, respondi que a autoridade de Beda, cujos escritos são seguidos por todas as Igrejas latinas, pareciam-me preferíveis.

Então, não resistindo mais ao sentimento de horror que me inspirava a sua malvadez, desesperado dos rigores da minha sorte, crendo que o universo inteiro conspirava contra mim, aproveitei a piedade de alguns irmãos e com a ajuda de um pequeno número de discípulos meus, pude fugir secretamente durante a noite e refugiei-me numa terra do Conde Teobaldo, situado na vizinhança, e na qual ocupei anteriormente uma casinha. O Conde ele mesmo era-me um pouco conhecido: ele  tinha sabido dos meus infortúnios e compartilhava plenamente. Aqui, permaneci primeiro no Castelo de Provins, numa pequena casa de monges de Troyes, cujo prior tinha tido comigo antigas relações, e me tinha amado muito. Ele recebeu-me com alegria e me rodeou de cuidados essenciais.

Ora, aconteceu um dia que o nosso abade

Um outro o sucedeu,  e o bispo de Melun, fez-lhe em meu nome o mesmo pedido que tinha endereçado ao seu predecessor. Mas ele não parecia dever consentir prontamente. Empreguei o intermédio de alguns amigos para apresentar o meu pedido ao Rei no seu concelho, e obtive o que queria. Estevão de Garlande,então oficial servidor do Rei, fez vir o abade e o seu comité e perguntou-lhes porque queriam, retendo-me apesar de mim, expondo-se a um escândalo inevitável e sem a menor utilidade, pois a maneira deles viverem e a minha nunca se poderiam entender. Ora, eu sabia que o concelho do rei entendia que este mosteiro, cujas desordens eram públicas, devia ao menos comprá-las por uma maior submissão ao rei e contribuições maiores: o que me tinha feito esperar que obtivesse se dificuldade o consentimento do rei e dos seus conselheiros. A minha espera não foi enganosa. 

Ao menos para que o nosso mosteiro não lhe escapasse a honra que ele pretendia tirar do meu nome, permitiram-me retirar-me numa casa à minha escolha , na condição que não me poria sob a dependência de nenhuma abadia. Estas convenções foram reguladas de um lado ao outro, em presença do rei e dos seus ministros. Em definitivo, retirei-me num solitário do território de Troyes, que me era já conhecido, e algumas pessoas  deram-me um pouco de terra, construí primeiro, com o consentimento do bispo da Diocese, uma espécie de oratório formado com canas e restolho, que dediquei à Santíssima Trindade. Aqui, escondido com um dos meus amigos, pude verdadeiramente exclamar-me ao senhor:

«Eis que me afastei pela fuga, e vim a parar na solidão.»

A minha retirada , ao ser conhecida, ocorreram discípulos de todas as partes abandonando vilas e castelos para habitar um campo deserto, construíram-se cabanas para suprir as suas vastas moradas, renunciando aos meios delicados, para viver unicamente de pão grosseiro e ervas selvagens, substituindo as camas fofas pela palha, as suas mesas por bancos de relva. Quase que acreditávamos verdadeiramente que se tinham proposto a seguir o exemplo dos primeiros filósofos, sobre os quais São Jerónimo, no seu  livro II contra Joviniano exprime-se nestes termos: 

«Os Santos são como as janelas por onde os vícios se introduzem na alma. A metrópole e a cidade do espírito não podem ser tomadas como o exército inimigo não passou pela portas. Se alguém tem prazer em ver os jogos do circo, as lutas dos atletas, as formas das mulheres, o brilho das pedras preciosas e das vestes, se ele é seduzido por semelhantes quadros, a liberdade da sua alma encontra-se presa pelas janelas dos seus olhos, e então, cumpre-se esta palavra do profeta: “A morte entrou pelas nossas janelas.” Então logo que, semelhante a um exército, o cortejo dos problemas penetrou por estas portas até à cidadela da nossa alma, onde estará a liberdade? E a sua força, e o pensamento de Deus, onde estarão eles? Quando pensamos sobretudo que a sensibilidade se retracta mesmo dos prazeres passados, recolhe as recordações das paixões, força a alma a subir de novo os seus efeitos e a cumprir pelo pensamento actos imaginários.»  

Tais são as razões que persuadem  a tantos filósofos de deixar as grandes vilas, e os seus deliciosos jardins onde e encontravam reunidos as fontes que raiavam do sol, a folhagem das árvores, a ramagem dos pássaros, o espelho da fonte e murmúrio dos riachos, enfim tudo o que pode encantar os olhos e os ouvidos: eles não quiseram ficar no meio do luxo e da profusão das grandezas, de mais que o vigor das suas almas não foram enervadas, e que a sua pureza não foi limpa. E, de facto, é inútil ver frequentemente as coisas pelas quais podemos nos encontrar seduzidos, e de se expor à tentação das que são difíceis de se passar. Eis porque os Pitagóricos, evitando tudo o que podia seduzir os seus sentidos, viviam ordinariamente na solidão e nos desertos. Platão ele mesmo, o rico Platão, no qual Diogénia penetrou um dia o seu leito sumptuoso sob os seus pés todos sujos de lama, Platão, digo, afim de poder se dedicar inteiramente à Filosofia, escolheu para sua academia, bem longe da vila, uma casa de campo não somente deserto, mas ainda pestilenta, com o objectivo de queimar os elos da paixão pelas ameaça contínuas da doença, e de não deixar aproximar dos seus discípulos outras alegrias que aquela que eles podiam encontrar no estudo. Tal foi, dizem, o género de vida que levavam os filho dos profetas dos Eliseus.

«Os filhos dos Profetas, que o Antigo Testamento nos apresenta como monges, construíam pequenas cabanas ao longo do Rio Jordão, e abandonavam as vilas e a sociedade dos homens, para irem viver de grãos de cevada e ervas selvagens.» 

              Da mesma forma, os meus discípulos, elevando pequenas cabanas nas margens do Arduzão, pareciam mais eremitas que estudantes.

             Quanto maior a afluência dos meus alunos, e maiores as privações que se impunham pelo amor aos meus princípios era penoso, mais os meus rivais aí viam a glória para mim e a vergonha para eles. Depois de ter tudo feito  para me chatear, eles não podiam  se consolar de ver tudo concorrer para a minha vantagem: e, segundo a palavra de São Jerónimo, apesar de me ter afastado das vilas, dos assuntos públicos, dos processos da multidão, a vontade como também diz Quintelínio, veio-me relançar no retiro. Queixando-se do fundo dos seus corações, os meus inimigos diziam gemendo: Eis que todo o mundo se foi atrás dele, e ele saiu glorioso da nossa perseguição. Querendo obscurecer o brilho do seu nome, não fizemos mais que aumentar  a sua glória. Vede: os estudantes, que nas vilas têm sob a mão tudo o que lhes é necessário, desdenharam todos os benefícios da sociedade; eles correram a procurar as privações da solidão ,e condenam-se voluntariamente à miséria.

                Então, foi sobretudo o excesso da minha pobreza que me determinou a abrir de novo uma escola, pois não tinha a força para laborar a terra, e corava de mendigar. Recorrendo à arte que tinha cultivado, para substituir o trabalho da minhas mãos, fui obrigado a fazer ofício da minha língua. Do lado deles, os meus discípulos favoreciam deles mesmos a tudo o que me era necessário, para o alimento, o vestuário, a cultura dos campos ou a construção, de modo a que nenhum cuidado doméstico me viesse distrair do estudo. Mas como o nosso oratório não podia conter que uma fraca parte dos meus alunos, eles encontraram-se na necessidade de o aumentar e eles o reconstruíram de uma maneira mais sólida em pedra e em madeira. Este oratório tinha primeiro sido fundado em nome da Santíssima Trindade, e mais tarde ele lhe tinha também sido dedicado; no entanto, como para aí vim fugitivo, e que no meio do meu profundo desespero aí encontrei algumas consolações, graças à bondade divina, dei-lhe o nome de Paráclito. 

                Esta novidade foi acolhida com um grande espanto, e muitos discordaram com violência contra este nome, sob pretexto que não permitido consagrar especialmente uma Igreja ao Espírito Santo, tanto como a Deus Pai, mas que era preciso, conforme o costume antigo, dedicá-la seja ao único Filho, seja a toda a Trindade. Os seus erros que os puxavam  a atacar-me provinham do que eles não viam a distinção que existe entre o Espírito do Paráclito e o Paráclito. De facto, a Trindade ela mesma, e cada pessoa da Trindade, denominada Deus e protectora, pode muito bem ser invocada pelo nome de Paráclito, quer dizer de Consolador, segundo a palavra do Apóstolo: Deus bendito, e o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias, o Deus de toda a consolação, que nos consola em todas as tribulações; e também segundo o que é verdade: Ele vos dará um outro Consolador.

                Não importa qual a Igreja é igualmente consagrada ao nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, e qual é a possessão indivisa dos três. O que impede de doar a casa do Senhor ao Pai ou ao Espírito Santo, assim como ao Filho? Quem ousaria afastar do vestíbulo o nome daquele a quem pertence a demora? Ou também, que em consequência, na celebração das missas, é especialmente ao Pai que se oferecem as orações e a elevação da hóstia, não parece que o altar pertence sobretudo àquele em vista do qual  principalmente a oração e o sacrifício se concretizem? Não é mais justo dizer que o altar pertence àquele ao qual elevam do que o que é elevado? Encontrar-se-á alguém para ousar suster que é antes o altar da cruz de Jesus ou do seu Sepulcro, de São Miguel, de São João, de São Pedro, ou de qualquer outro santo, que não são nem as vítimas nem os seres aos quais se ofertam os sacrifícios e as homenagens. Talvez, diríamos, que não é preciso dedicar a Deus o Pai nem igrejas nem altares, porque não conhecemos dele nenhum feito  que possa justificar em sua honra uma solenidade especial; mas esta razão, que tenderia a privar a Trinidade de todo o privilégio, não tira nada aos direitos do Espírito Santo, atendendo a que a vinda do Espírito Santo lhe constitua a solenidade do Pentecostes, do mesmo que a vinda do Filho lhe assegura a Festa da Natividade. D

              Estava escondido de corpo, neste lugar, mas o meu renome percorria o Universo, e o enchia da minha palavra, como a este personagem poético  que dão o nome de Eco, que faz muito barulho, mas soa oco. Os meus velhos inimigos, não tendo mais por eles mesmos crédito suficiente, suscitaram contra mim alguns novos apóstolos nos quais o mundo tinha fé. Um dos dois vangloriava de ter ressuscitado a vida dos clérigos regulares, o outro a dos monges. Estes homens, nas predicações que eles semeavam através do mundo, acusavam-me se pudor, conseguiram a levantar momentaneamente contra  mim o desprezo de certas potências eclesiásticas e seculares: eles debitaram  tanto sobre a minha fé como obre o meu tipo de vida das fábulas tão monstruosas que eles retiraram de mim os principais dos meus amigos, e o que me conservavam um pouco da sua antiga atenção não ousaram mais ma testemunhar. Deus é minha  testemunha que nunca convocava uma assembleia de  eclesiásticos sem pensar que a minha condenação estava em jogo. Todo tremendo na espera de qualquer golpe, esperava de um momento para o outro a ser arrastado como um herético, ou um impuro pelos concílios ou pelas sinagogas. E, se é permitido comparar a pulga ao leão e a formiga ao elefante, os meus rivais perseguiam-me com um ódio implacável. tal como os heréticos de outros tempos depositavam contra Santo Anastásio. Várias vezes, Deus sabe-lo, caía num tal desespero que sonhava em deixar os países cristãos para passar aos infiéis, e comprar por um qualquer tributo o direito de viver em paz e cristianamente no meio dos inimigos de Cristo. Persuadia-me que os pagãos me fariam um melhor acolhimento, que a minha condenação os afastaria de crer que eu fosse cristão e lhes fazer assim esperar de me converter mais facilmente à sua idolatria.

                No momento em que, envolto sem descanso por tais inquietudes, não via mais outro recurso que ir buscar de entre os inimigos do meu cristão uma fuga nos braços do Cristo, querendo satisfazer uma ocasião de me afastar um pouco das emboscadas que me rodeavam, caía entre as mãos dos cristãos e monges mil vezes piores e cruéis que os pagãos. Havia na Bretanha, no bispado de Vannes, a abadia de Saint-Gildas de Ruys, que pela morte do pastor, havia ficado sem chefe. A escolha unânime dos monges, rectificado pelo senhor do país, chamou-me para este lugar, e foi fácil obter o consentimento do abade e dos irmãos do meu mosteiro. Assim, a inveja dos Franceses me exilava no Ocidente, como a dos Romanos que renegaram São Jerónimo para o Oriente, pois tomo Deus como testemunha, jamais aceitaria a oferta que me faziam, se não fosse para escapar, não importa como, às mágoas de que estava acablado.


Catedral St. Pierre de Vannes

           Era um país bárbaro cuja  língua era-me desconhecida, e os monges não dissimulavam a sua vida vergonhosa e a moral dissolvida no meio  duma população brutal e selvagem. Assim, semelhante a um homem, que, em vista de um véu elevado sobre ele, se lança de terror ao fundo de um precipício onde se quebrará para retardar  um instante esta morte que o ameaçava, enlaçava-me  de um perigo noutro; e aqui, sobre a vista do oceano aos véus temerosos, a terra faltando à minha fuga, repetia frequentemente  nas minhas orações: «Das extremidades da terra, gritei por vós, Senhor, pois o meu coração torturado está na angústia.» Que tormentos invadiam o meu coração, quando pensava nos desesperos que ameaçavam o meu corpo e a minha alma. Mas! porquê ter aceite governar estes monges indisciplinados? Se tentasse traze-los à vida regular que tinham feito voto de ter, era-me impossível de viver: tinha a certeza, que se, ao contrário, não fizesse todos os meus esforços para levar esta minha missão até ao fim, corria o risco da condenação eterna. 


Tentaram envenenar Abelardo

            Não é tudo. O Senhor do país exercia desde à muito tempo sobre o mosteiro um poder sem limites e, aproveitando-se da desordem que reinava no mosteiro para usurpar a propriedade de todas as terras dominais da abadia, ele fazia pesar sobre os monges especulações mais pesadas que as que os judeus tributários eram acusados. Os monges obedeciam-lhe para as suas necessidades jornalísticas, pois a comunidade não possuía nada que eu pudesse lhes distribuir, e cada um tomava sobre o seu próprio património para se sustentar, eles e as suas mulheres, com os seus filhos e as suas filhas. Não contentes de me atormentar, eles faziam ainda mão bassa sobre tudo o que podiam levar, a fim de comprometer a minha administração, e de me forçar assim a relaxar a disciplina, seja a retirar-me  de vez. Toda a ordem era igualmente sem lei nem regra. E ninguém em minha volta  para me vir em auxílio! Estava reduzido a uma solidão completa. Fora disto, o senhor e os seus  satélites não cessavam de me oprimir, os irmãos montavam-me ciladas.  Parecia que a palavra do apóstolo fora escrita especialmente para mim: «Fora os combates, dentro as crenças.» - Considerava gemendo que  inútil e miserável vida eu levava, o quanto era estéril para mim como para os outros, quando fora tão útil antes para os meus discípulos, e agora tinha-os abandonado pelos monges, não podia nem nos monges nem nos meus discípulos produzir nenhum  fruto; todas as minhas investidas, todos os meus esforços eram impotentes e merecia que me tivessem dito estas palavras: «Este homem começou a construir e não acabou.» Estava profundamente desesperado à lembrança das tormentas às quais fui exposto. As minhas primeiras provações não eram mais nada aos meus olhos e gemendo em mim mesmo, repetia muitas vezes: este castigo é justo, pois abandonei o Paráclito, quer dizer o Consolador,  e precipitei-me na desolação para evitar as ameaças, e procurei o perigo. O que mais me afligia, era que depois de ter abandonado o meu oratório, não podia tomar as medidas necessárias para fazer celebrar convenientemente o ofício divino, pois a extrema pobreza do sítio podia apenas fornecer o entretém deum só orador.  

            Mas o verdadeiro Paráclito trouxe ele mesmo uma consolação a esta dor, e ele veio ao seu oratório como convinha. Eis, de facto, o que aconteceu. O abade de São Dionísio veio a reclamar como uma anexa de outros tempos submissa à jurisdição do seu mosteiro a abadia de Argenteuil, onde a minha Heloísa, desde à muito tempo minha irmã em Jesus Cristo em vez de minha esposa, tinha tomado o hábito religioso. Quando o obteve  expulsou violentamente a congregação das freiras no qual o nosso irmão era o prior. Vendo-os dispersos de todos os lados pela axílio, compreendi  que o Senhor me oferecia uma oportunidade para retomar o meu oratório. Aí me dirigi  e convidei Heloísa com  as monjas da mesma congregação que ficavam apegadas à sua pessoa a vir  tomar posse. Quando elas chegaram , fiz-lhes doação inteira do oratório e das suas dependências, doação com o consentimento do bispo da diocese, do Papa Inocêncio II  lhes confirmou por privilégio a posse perpétua, a ela e às que lhe sucederiam. Elas viveram alguns tempos na miséria e quase abandonadas. Mas a divina providência, à qual elas imploraram devotamente não tardara a consolá-las. O Senhor, verdadeiro Paráclito, teve piedade e em seu favor a população em redor, os animou de boas imagens. Num só ano os bens da terra multiplicaram-se, ceio eu (só Deus o pode saber), que cem não o teriam feito por mim, se tivesse ficado no seu lugar.  Talvez porque o sexo da mulheres é mais fraco que o nosso, mas a sua agilidade amolece mais facilmente os corações, tal como os homens com a sua virtude tão agradável a Deus. Ora, o  Senhor na sua bondade pela nossa querida irmã, que dirigia a comunidade, lhe acordou encontrar graça perante os olhos de todo o mundo. Os bispos a tratavam como uma filha, os abades como uma irmã, os leigos como sua mãe, e todos admiravam igualmente a sua fervente piedade, a sua calma e a sua  incomparável paciência em todas as coisas. Ela deixava-se ver raramente, e mantinha-se fechada na sua cela para se dedicar inteiramente às suas meditações e orações, mas todas as pessoas de fora solicitavam com ardor a sua presença e as piosas instruções do seu entretém.

            Todos os seus vizinhos queixavam-se de eu não fazer tudo o que podia nem tudo o que devia para as ajudar, qundo pela minhas predicações a coisa era-me tão fácil. Eu começava então a fazer-lhe visitas mais frequentes, a fim de lhes ser útil duma maneira ou de outra. Mas, apesar de tudo, não pude evitar o mau pensamento e a inveja, e apesar do espírito puro que dirigia os meus passos, os meus inimigos com a sua maldade, fizeram as conjunturas mais infames. Víamos bem, diziam eles, que estava ainda dominado pela atracção de certos prazeres carnais, pois que agora não poderia suportar a ausência da mulher que tinha tanto amado. Lembrei-me então das queixas de São Jerónimo, na sua carta a Asella, sobre os falsos amigos: «Fazem-me, diz ele, um crime do meu sexo, e ninguém o pensaria se Paulo não tivesse ido comigo a Jerusalém.» E aliás: «Antes de conhecer  a casa de são Paulo, era sobre mim em toda a vila um concerto de falatório; com opinião de tudo era digno do soberano pontificado. Mas eu sei que através do bom e do mau renome podemos chegar ao reino dos céus.» Considerando que um tão grande homem sofreu os mesmos ultrajes da calúnias, encontrava  nesta proximidade uma grande consolação. Oh! Dizia-me, se os meus inimigos encontrassem em mim um tal assunto para as suas suspeitas, como as suas acusações me tinham brevemente acabado! Mas hoje que a divina providência me pôs ao abrigo da suspeita como é possível que a suspeita persista? E que significa a escandalosa acusação que estou a ser objecto? A mutilação da qual fui vítima, afasta de uma tal maneira a ideia de uma monstruosidade deste género, que é um hábito invariavelmente adoptado pelos quais querem guardar as mulheres, de não deixar aproximar delas que eunucos. Assim o conta a História Santa sobre Éster e outras mulheres do Rei Assuérus. Nós lemos que este poderoso ministrodarainha Candace, é o intendente de todas as suas riquezas,o mesmo que o apóstolo Filipe a converteu  e baptizou,sob a conduta do anjo, era eunuco. Se Tais homens sempre ocuparam perto das mulheres modestas e honestas, postos tão elevados e íntimos, é porque uma suspeita desta natureza nunca os poderia atingir. É também nesta intenção de se suster completamente, que o maior dos filósofos cristãos, Origénio, tendo-se consagrado ao ensinamento religioso das mulheres, atentou sobre ele próprio, o testemunho do livro VI da História Eclesiástica. Na minha posição estimava ainda que a divina misericórdia me tivesse tratado com menos rigor, pois a acção de Origénio foi considerada má acção e digna de blasfémia severa, enquanto que uma mão estrangeira era a única culpada do meu estado, e me afrontou. As minhas dores tinham sido menores, pois elas tinham sido repentinas e mais curtas; surpreendido no meu sono, a execução sangrenta me encontrou quase insensível. Mas se eu não sofri fisicamente tanto como ele, os atentados à minha reputação causaram-me um mais duro suplício que a ablação dos meus orgãos. Pois,assim que ele escreveu, um bom renome vale mais que uma grande riqueza. Santo Agostinho diz, num sermão sobre a vida e os costumes do clero: «Aquele que se fia na sua consciência e negligencia a sua reputação é cruel para ele mesmo.» E mais alto: «Procuremos fazer o bem, diz ele, não somente perante Deus, mas perante os homens.» «É demais para o testemunho da nossa consciência, mas importa que a nossa reputação seja pura e sem manchas. A consciência e a reputação são duas coisas: a consciência é relativa em si mesma, a reputação ao próximo.» 

            Mas a malícia dos meus inimigos não teria afastado o Cristo nem os seus membros, quer dizer os profetas, o apóstolos, os santos Padres, se eles viveram no mesmo tempo, pois eles os tinham visto, o corpo intacto, englobar-se principalmente de mulheres, e viver com elas numa tão grande familiaridade! Santo Agostinho no seu livro sobre A Obra dos Monges, prova que as mulheres eram as companhias tão inseparáveis de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos Apóstolos, que elas os acompanhavam mesmo nas predicações. No cortejo dos fiéis, víamos várias mulheres fornecidas dos bens do mundo, que entretiam em volta deles a abundância, para que não lhes faltasse nenhuma das coisas necessárias nesta vida. Qualquer um seria tentado a pensar que os Apóstolos não permitiam às suas santas mulheres de partilhar os seus exercícios  de piedade, e de segui-los para todo o lado onde eles pregavam o Evangelho, pode assegurar-se lendo a Escritura que os Apóstolos não fizeram mais que imitar o exemplo mesmo do Salvador. De facto, está escrito no Evangelho: «Desde então ele ia pelas cidades e vilas, anunciando o reino de Deus, e com ele os seus doze Apóstolos e algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos imundos e de enfermidades, Maria Madalena, Joana, esposa de Cusa, o intendente de Heródes, Susana, e muitos outros que empregavam a sua própria fortuna para as suas necessidades.» Por outro lado, Leão IX, refutando a carta de Parménio sobre o gosto pela vida monástica: «Nós professamos absolutamente, diz ele, que não é permitido a um bispo, a um padre, a um diácono, a um sub-diácono, de se dispensar por causa de religião, dos cuidados que ele deve à sua esposa, que lhe seja permitido possuí-la, mas também deve lhe fornecer o alimento e o vestuário.» Assim viveram os Santos Apóstolos, e lê-mos em São Paulo: «Não temos nós o direito de levar para todo o lado connosco uma mulher que seria nossa irmã, como Céfas e os irmãos de Jesus?» Reparai bem que ele não diz: «Não temos nós o direito de possuir, mas de levar connosco uma mulher quer seria nossa irmã?» Pois eles podiam assim satisfazer os desejos das suas mulheres com o produto das predicações, sem que ele deva jamais existir entre eles ligações carnais.

            O Parisiense que diz ele mesmo a propósito do Senhor: «Se este era profeta, ele saberia bem quem é aquela que o toca, e que é uma mulher de má vida»; o Parisiense podia sem dúvida, na ordem dos julgamentos humanos, formar sobre o Senhor conjecturas vergonhosas mais naturalmente, do que fizeram sobre mi; e todos os que viam a mãe do Cristo recomendada a um jovem homem e os profetas vivendo sobre o mesmo tecto e na intimidade das mulheres, podiam conceber suspeitas mais bem estabelecidas sobre as semelhanças verdadeiras. Que diriam ainda os meus difamadores, se tivessem visto Malchu, este monge  de que fala São Jerónimo, vivendo com a sua esposa na mesma casa? Como eles teriam impiedosamente condenado este tipo de vida que o santo doutor fala nestes termos: «Havia aí, diz ele, um velho chamado Malchus, nascido no sítio mesmo, e a sua velha mulher vivendo com ele, os dois cheios de zelo pela religião, e tão assíduos à Igreja, que os tinham confundido por Zacarias e Elizabete do Evangelho, se João pudesse ter estado no meio deles.» Porquê então a calúnia não se ataca ela aos santos padres, que, na História, ela mesma sob os nossos olhos, estabeleceram frequentemente e entreteram os mosteiros de mulheres? Ao exemplo de sete diáconos pelos quais os apóstolos se fizeram substituir perto dos religiosos em todos os cuidados do aprovisionamento e do serviço? De facto, o sexo fraco não pode passar sem o apoio do sexo forte. O apóstolo também declara que o homem deve sempre guiar a mulher, e que ele é, por assim dizer, a sua cabeça. E em sinal desta verdade, ele ordena que a mulher tenha sempre a cabeça tapada com um véu. Eis porque eu não sou mediocremente espantado de ver que o hábito se tenha depois muito tempo conservado nos conventos de fazer dirigir as mulheres pelas abadessas, como os monges pelos abade e de impor a mesma regra tão bem às mulheres como aos homens, logo que esta regra abraça os deveres que a maior parte não pode de nenhuma maneira estar cheio pelas mulheres, que elas sejam superioras ou subordinadas. Quase por todo o lado a ordem natural é invertida, e nó queremos as abadessas e as freiras dominar o padres o quais o povo por eu lado assumiu, com uma facilidade tão grande a induzir o clérigo em maus desejos, que elas são investidas de um poder mais estendido, e que elas exerçam obre ele uma autoridade mais déspota.

            O poeta satírico tinha em vista este inconveniente quando ele diz: «Nada é mais insuportável que uma mulher opulenta.»

            Depois de longas reflexões tinha resolvido tomar conta da minhas irmãs do Paráclito, o quanto me seria possível, e de prever a todas as suas necessidades; para aumentar ainda a sua submissão e o seu respeito, queria também vigiá-las pela minha presença corporal  Perseguido presentemente pelos meus filhos com mais violência que tinha tido outros tempos pelos meus irmãos, iria para longe das tempestades refugiar-me com elas como num porto tranquilo para aí encontrar um pouco de repouso; pois eu não podia nada sobre os monges, aqui ao menos trabalhava à minha vontade com mais eficácia que o seu socorro era mais necessário à sua fraqueza.

            Mas Satanás, semeou tantos obstáculos em minha volta, que não encontrei nenhum abrigo para me repousar, nem memo para viver. Errante e fugitivo, parece que levo para todo o lado a maldição de Caín. Repito-o: fora dos combates, dentro das crenças, eternizando a minha agonia. Bem mais, dentro como fora é um inferno de crenças renascentes em cessar, de crenças  e de combates ao mesmo tempo. As perseguições dos meus filhos contra mim são cem vezes mais infatigáveis e mais temerosas que a do meus inimigos. Pois os meus filhos estão sempre aqui , e eu sou sempre alerta com as suas emboscadas. Ao menos vejo vir o ataque dos meus inimigos e a arma que quer a minha vida, e eu saio do mosteiro; mas logo que eu esteja protegido com os meu filhos, quer dizer com os monges que me são confiados como a um pai na minha qualidade de abade, tenho de lutar sem cessar contra as suas rugas e a sua violência. Quantas vezes não tentaram eles me envenenar, como fizeram a São Benedito! A mesma causa que o forçou a abandonar a sua tropa perversa podia autorizar-me a seguir o seu exemplo. Pois expor-se a um perigo certo, é talvez tentar Deus em vez de o amar; é talvez um verdadeiro suicídio. Todavia contentava-me em empregar toda a vigilância que podia para me preservar das ciladas desta natureza, não confiava que em mim mesmo na escolha dos meus alimentos e da minha bebida. Então eles tentaram livrar-se de mim no altar, durante o santo sacrifício, pondo um produto venenoso no cálice.   Um outro dia, tinha ido a Nantes visitar o Conde que estava doente, fiquei alojado em casa de um dos meus irmãos da religião, eles quiseram envenenar-me pela mão do servidor da minha suite, persuadidos sem dúvida que na casa do meu irmão estaria menos atento a uma tal manobra. Mas o céu quis que eu não tocasse nos alimentos que me tinham sido preparados, e um monge que tinha trazido comigo da abadia, comendo por ignorância, morrera na mesma hora. O irmão servidor que tinha executado a sentença, apavorado,  pelo testemunho da sua consciência e pela prova resultando do feito mesmo, fugiu de imediato.

 

 
Nantes

            Desde então, não podendo ninguém  duvidar do seus desejos criminosos, comecei a tomar abertamente todas as precauções possíveis contra as suas emboscadas: ausentava-me frequentemente do mosteiro, e passava os dias nas obediência no meio de um pequeno número de irmãos. Mas se eles soubessem que eu iria passar em qualquer sítio, eles apostavam, sobre os caminhos  para me matarem, salteadores preço de ouro.

            Através de todas estas tormentas, um acidente veio a surpreender-me: caí um dia do meu cavalo, e a mão do Senhor bateu-me rudemente, pois parti as vértebras do pescoço; esta queda abateu-me e enfraqueceu-me mais que a minha primeira desgraça.

                Por vezes tentava reprimir pela interdição a sua insubordinação, e forçava alguns dos que temia mais a prometer-me sob a fé da sua palavra ou de um sermão público que eles se retirassem para sempre do Mosteiro, e que não me incomodariam mais no que quer que fosse. Ma eles violaram abertamente e sem pudor a palavra dada e os seus sermões jurados. Enfim,a autoridade do Papa Inocêncio, pelo orgão do seu próprio legado expressamente enviado, os contradisse, em presença do conde e dos bispos, a renovar as suas promessas. Nada os pôde conter. E ultimamente, após a expulsão dos que me tinham parecido os mais perigosos, tendo voltado à abadia, e confiando-me ao resto dos irmãos que me inspiravam menos desconfiança, encontrei-os  ainda piores que os outros. Não se tratava já de veneno; era o ferro que eles aguçavam contra o meu seio, quando consegui escapar-lhes, com grande pena ao mesmo tempo e sob a protecção do grande do país.

            Os mesmos perigo me ameaçavam ainda. Todos os dias vejo uma nuvem elevada sobre a minha cabeça, e que não me deixa mesmo respirar à mesa: parecido a este homem que colocava a alegria suprema no poder e nos tesouros de Deys-le-Tyran, e que, à vista de uma espada suspensa sobre  sua cabeça por um fio, aprendeu de qual felicidade são acompanhadas as grandezas deste mundo. É aqui o suplício que passo a cada instante, eu, pobre monge,  tornei-me mais miserável tornando-me mais rico, a fim de pelo meu exemplo também os homens ambiciosos ponham um freio aos seus desejos.

            Óh meu tão querido irmão  em Jesus Cristo, Óh meu velho companheiro, meu amigo íntimo, vê-de como desde o berço, o infortúnio me acompanha! Evoquei  estas tristes lembranças em prol da vossa aflição e da injustiça que vos tocou: que elas cheguem para vos tranquilizar! Como disse no começo da minha carta, comparem as vossas provações às minhas; vós jurareis que as vossas não são nada ou que são pouca coisa em comparação e vós conseguireis suportá-las com mais paciência, encontrado-as mais ligeiras. Tomai sempre por consolação o que o Senhor predisse aos seus membros, tocando os membros do demónio: «Se me perseguiram, eles vos perseguirão também. Se o mundo vos odeia, sabei que antes de vós provei o ódio do mundo. Se tivésseis sido do mundo, o mundo teria amado o que lhe pertencia.» «E todos os , diz o Apóstolo, que querem piosamente viver em Jesus Cristo, sofrerão a perseguição.» E aliás: «Não procuro agradar aos homens. Se agradaria ainda aos homens, não seria ervidor do Cristo.» E o Psalmista: «Os , diz ele, que agradam aos homens foram confundidos, pois Deus rejeitou-os.»

                São Jerónimo também, que parece principalmente ter-me legado a herança da calúnia e do ódio, diz na sua carta a Népotianus: «Se agradava ainda aos homens, não seria servidor do Cristo.» Ele parou de agradar aos homens, e tornou-se servidor de Jesus Cristo. O mesmo, escrevendo a Assela, sobre os falsos amigos: «Dou graças ao meu Salvador de ser digno do ódio do mundo.» E ao monge Hésidoro: «É um erro, meu irmão, é um erro crer que o cristão possa jamais evitar a perseguição. O nosso inimigo, como um leão rugindo, ronda à nossa volta e procura devorar-nos. Será isto paz? O ladrão está em embuscada e rouba os ricos.»

                Encorajados por estas informações e por estes exemplos, saibamos então suportar as provações com mais confiança, do que são de injustas. Não duvidemos mais que elas não sirvam, senão aos nossos méritos, ao menos a algumas expiações. E pois que uma divina ordem preside a todas as coisas, que cada fiel no momento da provação seja ao menos consolado por este pensamento que a bondade soberana de Deus não permite que nada se cumpra fora da sua Lei de providência e que todos os que chegam contrariamente à justiça, ele se encarrega de os trazer a bom fim. Eis o porquê de ser sábio lhe dever dizer em toda a ocasião: «Seja feita a vossa vontade!» Que grande consolação ainda os que amam o Senhor podem encontrar na autoridade Apostólica que diz: «Nós sabemos que tudo concorre para o bem dos que amam o Senhor.» Esta verdade penetrava os sábios dos sábios, quando ele dizia nos meus provérbios: «O justo não será consternado o que for que lhe aconteça.» Assim demonstra evidentemente que estes e afastam  dos direitos santos que se irritam contra o sofrimento, em ignorar portanto que lhe é dispensada pela mão de Deus, homens submissos a eles mesmos em vez da vontade divina, que diz: «Seja feita a vossa vontade!», mas cujo coração secretamente revolta-se e prefere à vontade de Deus a própria vontade.

                Adeus. 

       

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt