"Aristóteles e os Seres Vivos"

André Bonnard, Civilização Grega, vol. III, pp. 149-177.

 

Excertos

Toda a imensa obra de Aristóteles, por mais díspares que possam ser as direcções que explora, os domínios que descobre, testemunha essa ardente vontade de conhecer e de dar a conhecer, que é o primeiro dom de todo o sábio, ao mesmo tempo que a sua realização primeira. Assim, em Aristóteles, a lógica e a biologia, a metafísica e a moral, a psicologia e a teologia só aparentemente são conquistas díspares. Aristóteles liga-as numa síntese tão bela, que cada parte não só está no seu justo lugar no todo, como, bem compreendida, ocupa, por si só, lugar no todo.

Aristóteles encontrou no estudo das espécies animais grandes alegrias. Ele próprio explicou a razão principal do seu entusiasmo por uma tal pesquisa. « Na verdade, alguns destes seres não oferecem aspecto agradável; mas o conhecimento do plano da natureza , neles, reserva aos que podem apreender as causas, aos sábios de raça, alegrias inexprimíveis... Em todas as partes da natureza há maravilhas: diz-se que Heraclito, a uns visitantes estrangeiros que encontrando-o a aquecer-se ao lume da sua cozinha hesitavam a entrar, fez esta observação : «Entrai, também há deuses na cozinha.» Do mesmo modo, entremos sem repugnância no estudo de cada espécie animal: em cada um há natureza e beleza. Não é o acaso, mas a finalidade que reina nas obras da natureza, e em alto grau; ora a finalidade que rege a constituição ou a produção de um ser é precisamente o que dá lugar à beleza.

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«E se alguém achasse desprezível o estudo dos outros animais, teria também de desprezar-se a si mesmo, porque não é sem o temor de uma grande repugnância que se pode apreender aquilo de que se compõe o género Homem, sangue, carne, ossos, veias, e outras partes como estas.»

Guiado pelo entusiasmo, pelo ardente interesse que dedica aos seres da natureza, arrebatado pela amizade quase fraterna que tem pelos animais e pela natureza animal do homem, Aristóteles empreendeu uma imensa tarefa: recensear to dos os seres vivos, mostrar na sua constituição uma finalidade imanente e classificá-los numa escala de ascensão até ao Homem.

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Era impossível realizar esta gigantesca tarefa sem passos em falso. Em milhares de observações, Aristóteles faz algumas dezenas de erros, alguns  por vezes surpreendentes...  O que não é de estranhar se pensarmos que avança como explorador por um continente imenso e quase totalmente desconhecido – o mundo vivo.

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Alguns erros de Aristóteles

  • A mulher tem menos dentes que o homem;

  • O homem apenas tem oito pares de costelas, à excepção dos Lígures, que têm sete;

  • Há três ossos no crânio masculino e um só, que seria circular, no da mulher;

  • O cérebro é frio;

  • O homem tem um só pulmão;

Em geral, Aristóteles conhece muito menos bem o homem que os animais. É certo que não dissecou seres humanos, à parte alguns embriões, ao passo que dissecou os animais de meia centena de espécies. (Vê-se, a propósito da toupeira, que Aristóteles retirou a pele espessa que recobre o lugar normal do olho para descobrir as sua partes essenciais: pupila, círculo irisado, branco, canal que liga o olho ao encéfalo.)

Mas acontece-lhe também corrigir-se de uma obra para outra. Assim, depois de ter afirmado, em Pesquisas sobre os Animais, fazendo fé numa informação de Heródoto não verificada, que o crocodilo não tem língua, torna a este assunto nas Partes dos Animais para declarar que, afinal, tem  língua e explica, baseando-se noutro erro de Heródoto, como foi possível o erro.

Eis agora outra rectificação mais importante, referente à fecundação dos peixes ovíparos. Aristóteles sustentara nas Pesquisas sobre os Animais estranhas teorias a este respeito, reproduzindo, de resto, a opinião corrente unânime.

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«É mais difícil ver a maneira como se unem os peixes ovíparos, e isso fez julgar a várias pessoas que as fêmeas dos peixes se fecundavam engolindo o licor ( a leituga) lançado pelo macho. Há que convir com um facto muitas vezes testemunhado. Quando o tempo de acasalamento chega, a fêmea segue o macho, engole o licor que ele lança e, batendo-lhe no ventre com a boca, torna a saída desse licor mais pronta e mais abundante: mas depois da desova, os machos seguem as fêmeas por sua vez e engolem os seus ovos; só nascem peixes do que escapa.

«Daqui veio a ideia, nas costas da Fenícia, de se servirem reciprocamente dos machos e das fêmeas para os apanharem a uns e a outros. Apresentam-se aos mugens (sargos) fêmeas mugens machos; elas reúnem-se em volta deles e os pescadores apanham-nas.

«Estas observações, muitas vezes repetidas, fizeram nascer sobre a fecundação dos peixes o sistema que expus. Mas deveria ter-se notado que nada há ali de particular nos peixes. Os quadrúpedes machos e fêmeas distilam na estação dos amores qualquer coisa de líquido, farejam as partes genitais um do outro.

«E há mais. Para tornar fecunda uma perdiz, basta que ela se encontre sob o vento: muitas vezes bastou mesmo ouvir o canto do macho num tempo em que estivesse disposta a conceber, ou que o macho tivesse passado voando por cima dela e ela tivesse respirado o odor que ele exalava. Estas aves, tanto o macho como a fêmea, mantêm o bico aberto durante o acasalamento, e a língua fora do bico.»

Contudo, em a Geração dos Animais, o ponto de vista de Aristóteles modifica-se inteiramente. Nesta nova passagem, a opinião precedente é considerada pelo autor como «uma declaração ingénua e repisada» que mostra grande «leviandade de reflexão, atenção superficial aos factos. Criticando com severidade as observações precedentes, Aristóteles escreve:

"sendo as condições de reprodução dos peixes, em virtude da sua rapidez, difíceis de captar, os próprios pescadores se enganaram e propagaram verdadeiras fábulas. Não observavam com o cuidado de conhecer verdadeiramente. Daí essas afirmações inexactas ou absurdas!"

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Por vezes também os seus erros decorrem da ciência (ou ignorância) do seu tempo que Aristóteles não se deu ao trabalho de refutar. Assim se explica a afirmação de que as artérias (a aorta, por exemplo)contêm ar – afirmação sustentada por quase toda a medicina grega, pela opinião corrente e pela própria terminologia que faz da traqueia a mais importante das artérias.

***

Se, embora mínimos em relação à abundância dos conhecimentos novos, das descobertas que espalha profusamente sobre a humanidade, os erros de Aristóteles surpreendem, a força, a variedade e a justeza das suas observações espantam ainda os sábios do nosso tempo.

Tratando de um peixe que existe no Aqueloo, o silure glanis, Aristóteles diz que depois de pôr os ovos, num sítio em geral rodeado de plantas ou outros obstáculos, a fêmea retira-se enquanto o macho fica de sentinela junto dos ovos, proibindo o acesso aos outros peixes. A sua guarda dura 45 dias, até que os peixinhos, saídos dos ovos e crescidos, estejam em condições de se defenderem dos seus inimigos. 

Esta passagem fez rir da ingenuidade de Aristóteles. Ora, o sábio suíço Louis Agassiz, que lera Aristóteles, descobriu nos rios americanos silurídeos que, como o glanis do Aqueloo, fazem sentinela aos ovos. Foi preciso esperar pelo ano de 1906 para que se prestasse justiça a Aristóteles. Este peixe tomou então o nome de Parasilurus Aristotelis.

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de modo paralelo, Aristóteles descobriu na cópula dos cefalópodes uma particularidade notável que só voltou a ser descoberta no século XIX. Do mesmo modo, foi só no século XIX que se reconheceu a exactidão das suas observações sobre os ninhos construídos pelo peixe-gato.

Na outra extremidade da escala animal, Aristóteles dá um retrato interessante e bastante pormenorizado do macaco. Fá-lo em referência ao homem, parente mais próximo na família animal. As diferenças e semelhanças com o homem são justamente indicadas.

«A sua face oferece muita semelhança com a do homem: têm narinas e orelhas quase iguais, e dentes como os do homem, dentes da frente e molares. Além disso, ao passo que os outros quadrúpedes não têm pestanas numa e noutra das duas pálpebras, o macaco possui-as em ambas, mas muito finas (sobretudo na pálpebra inferior) e extremamente pequenas; os outros quadrúpedes não as têm... O macaco possui também braços como o homem, mas cobertos de pêlos, e flecte os braços e as pernas como o homem, fazendo-se reciprocamente frente as curvaturas dos pares de membros. Demais, têm mãos, dedos e unhas semelhantes aos do homem; apenas todas estas partes têm um aspecto mais bestial! Os pés têm uma forma particular: são semelhantes a grandes mãos, e os dedos são análogos aos das mãos, sendo o do meio o maior; e a parte inferior do pé assemelha-se a uma mão com a diferença de que é mais comprida de que a da mão. E esta palma termina numa calosidade, fraca e defeituosa imitação de um calcanhar.»

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Aristóteles recolheu milhares de factos. É um curioso de todo o ser vivo, apaixonado tanto pelo comum como pelo extraordinário. Mas é sobretudo um sábio: recolhe os factos para os comparar, para procurar neles o conhecimento das leis, para neles pensar a natureza.

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt