"Havia um homem que
era muito senhor da sua vontade. Andava às vezes sozinho pelas estradas a
passear. Por uma dessas vezes viu no meio da estrada um animal que parecia
não vir muito a propósito - um cágado.
(...) O homem que era muito senhor da
sua vontade ficou radiante, já tinha notícias para contar ao almoço, e
deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era capaz
de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de
repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a
família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás.
Quando chegou perto do tal sítio, o cágado, que já tinha desconfiado da
primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa.
O homem que era muito senhor da
sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de muito espreitar não
conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos buracos, isto é,
muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada; a seguir
até ao cotovelo e nada; por fim o braço todo e nada. Tinham sido
experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um homem
dispõe até ao comprimento do braço e nada.
- E se eu dissesse à minha família
que tinha visto o cágado? - pensava para si o homem que era muito senhor
da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim menos eu, que sou
muito senhor da minha vontade.
(...) - Já não se trata de eu ser
um incompreendido com a história do cágado, não; agora trata-se apenas
da minha força de vontade. É a minha força de vontade que está em
prova, esta é a ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de
fraquezas!
Ao lado do buraco havia uma pá
de ferro, destas dos trabalhadores rurais. Pegou na pá e pôs-se a
desfazer o buraco. A primeira pàzada de terra, a segunda, a terceira, e
era uma maravilha contemplar aquela majestosa visibilidade que punha os
nossos olhos em presença do mais eficaz testemunho da tenacidade, depois
dos antigos.
(...) Já estava na nonagésima pàzada
de terra; sem afrouxar, com o mesmo ímpeto da inicial, foi completamente
indiferente por um almoço a menos. Fosse ou não por um cágado, a
humanidade iria ver solidificada a vontade de um homem.
(...)Todas as noções de tempo e
espaço, e as outras noções pelas quais um homem constata o quotidiano,
foram todas uma por uma dispensadas de participar no esburacamento. Agora,
que os músculos disciplinados num ritmo único estavam feitos ao que se
quer pedir, eram desnecessários todos os raciocínios e outros arabescos
cerebrais, não havia outra necessidade além da dos próprios músculos.
(...) Sem incitamento nem estímulo
possível por aquelas paragens, é absolutamente indispensável recordar a
decisão com que o homem muito senhor da sua vontade pegou ao princípio
na pá do trabalhador rural para justificarmos a intensidade e a duração
desta perseverança. Inclusive, a própria descoberta do centro da Terra,
que tão bem podia servir de regozijo ao que se aventura pelas entranhas
do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era muito
senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efectivamente interminável.
Por mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre.
(...) Caindo em si, o homem que era
muito senhor da sua vontade pediu-lhe decisões, novas decisões, outras;
mas ali não havia nada a fazer, tinha esquecido tudo, estava despejado de
todas as coisas, só lhe restava saber cavar com uma pá. Tinha,
sobretudo, muito sono, lembrou-se da cama com lençóis, travesseiro e
almofada fofa, tão longe! Maldita pá! O cágado! E deu com a pá
com força no fundo da cova. Mas a pá safou-se-lhe das mãos e foi mais
fundo do que ele supunha, deixando uma greta aberta por onde entrava uma
coisa de que ele já se tinha esquecido há muito - a luz do sol. A
primeira sensação foi de alegria, mas durou apenas três segundos, a
segunda foi de assombro: teria na verdade furado a Terra de lado a lado?
Para se certificar alargou a
greta com as unhas e espreitou para fora. Era um país estrangeiro; homens,
mulheres, àrvores, montes e casas tinham outras proproções diferentes
das que ele tinha na memória. (...) Mas a sensação mais estranha ainda
estava para vir: foi que, quando quis sair da cova, julgava que ficava em
pé em cima do chão como os habitantes daquele país estrangeiro, mas a
verdade é que a única maneira de poder ver as coisas naturalmente era
pondo-se de pernas para o ar...
(...) Vieram-lhe
de uma vez todas as saudades da casa, da família e do quarto de dormir.
Felizmente estava aberto o caminho até casa, fora ele próprio quem o
abrira com uma pá de ferro. Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo
ao contrário. Andou, andou, andou; subiu, subiu, subiu...
Quando chegou cá acima, ao lado do
buraco estava uma coisa que não havia antigamente - o maior monte da
Europa, feito por ele, aos poucochinhos, às pázadas de terra, uma por
uma, até ficar enorme, colossal, sem querer, o maior monte da Europa.
(...) Apetecia-lhe dormir na sua
querida cama, mas para isso era necessário tirar aquele monte maior da
Europa, de cima da cidade, onde estava a casa da sua família. Então, foi
buscar outra pá dos trabalhadores rurais e começou logo a desfazer o
monte maior da Europa.
(...) O homem que era muito senhor da
sua vontade já podia entrar em casa para descansar, mas quis mais, quis
restituir à Terra todas as pázadas, todas. Faltavam poucas, algumas dúzias
apenas. Já agora valia a pena fazer tudo bem até ao fim. Quando já era
a última pázada de terra que ele ia meter no buraco, portanto a primeira
que ele tinha tirado ao princípio, reparou que o torrão estava a mexer
por si, sem ninguém lhe tocar; curioso, quis ver porque era - era o cágado."
(Almada Negreiros,1970,
p.109-116)
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