A Engomadeira

 

A Engomadeira apareceu em folheto em 1917, embora seja anterior aos outros dois, pois segundo o próprio Almada Negreiros, esta novela foi escrita em 1915. Pode este facto indiciar que Almada não estava seguro da legitimidade da sua narrativa.

 

 "uma escrita surrealista que acabará por não vingar entre nós"

(David Mourão-Ferreira, 1985, p.92)

"o primeiro a intuir o verdadeiro beco-sem-saída em que tal escrita, no domínio da ficção, acabaria por afinal redundar"

(David Mourão-Ferreira, 1985, p.90)

 

Neste excerto de A Engomadeira, Almada embranha-se deliberadamente num episódio surrealista em que a chave desempenha um papel fulcral.  Como Almada acreditava que a chave canónica, a matriz pitagórica, regia o mundo, o mundo físico podia então ser pensado apenas como uma reflexão deformada da perfeição, do mundo das chaves:

 

    "Abri a caixa e qual é o meu espanto quando a vejo a ela, sentada lá dentro a gritar envergonhada pra que eu lhe fechasse a porta! Bom, fechei.

    Chego-me junto da cama levanto as roupas e zás, uma chave da altura de um mancebo apurado prá cavalaria. A própria cama se a gente reparasse bem era um pedaço de uma chave de que eu também fazia parte. Cansado já deste ambiente e até com medo de tudo isto fui abrir de novo a caixa de lata pra lhe pedir que se aviasse mas, longe do que eu queria, começaram a transbordar chaves e mais chaves desta vez todas iguais. E já estava o oleado todo coberto de chaves e ia crescendo o monte cada vez mais e até já nem podia mexer-me com chaves até ao pescoço quando ela entrou e tão serenamente por cima de todas aquelas chaves como se não fosse nada com ela até que lhe perguntei quase louco a razão de tantas chaves.

    Afinal era pra brincar aos soldadinhos, mas disse-me muito apoquentada que não lhe fizesse mais perguntas porque ultimamente andava muito desgostosa da sua vida." 

(Almada Negreiros, 1970, p.71-72)

Esta obra divide-se em doze capítulos dos quais aqui se apresentam alguns excertos:

I

" Um dia a mãe comprou chapéu pra ir em pessoa pedir à dona da engomadeira que não deixasse a filha passar a ferro as ceroulas dos homens porque parecia mal a uma menina decente. Daqui a chacota endiabrada das outras que não a deixavam e até lhe chamavam o Quelhas. E eram empuxões e risotas e pisadelas a fingir sem querer e um dia até lhe descoseram a saia. E também não suportavam quando já estava resolvido entre todas as engomadeiras que ela era a mais feia. E a parva parece que não via nada, que estava a dormir! Era o parvo do Mendes, era o estúpido do Alves e até o senhor Anastácio! eram todos, e ela... nada! Então ela não foi dizer à senhora que o patrão lhe tinha oferecido uma carta?! que parva!... Aquilo só co ferro por aqueles olhos! Ná! não podia continuar assim! Nem ela nem as mais (e por causa dela!) já passa da medida! Mata-se a idiota!

 (...)Ela ouvia, ouvia tudo naquele esforço de não querer ouvi-las, às malcriadas.

III

 Dos domingos não gostava - sentia uma coisa que era amarela pra dentro e pra fora que era sujo. E as portas das Igrejas fechadas depois do meio-dia tinham a tristeza do que já não há mais. Reparava que esta coisa das mercearias abertas com gente lá dentro a aviar-se, e criadas de pantufas de ourelo coa garrafa do petróleo e um senhor de coco que comprou fósforos de cera, tudo lhe era preciso na alma e não sbia porquê mas sentia-o. E hoje, se não fosse a estreia das botas de cano alto, teria ficado na cama com certeza.

(...) E como era assim uma miúda que entra facilmente no gosto de toda a gente e só lá de vez em quando é que precisava de umas brise-brise mais modernas ou umas fitas de cetim pra enfeites de camisa não teria de se esfalfar muito e bem plo contrário era rara a noite em que não rezava sozinha o seu Padre-Nosso no quarto independente com porta prá escada.

IV

 Eu tinha-a encontrado quando passava e tinha-lhe dito boas-tardes porque me pareceu que ela precisava de que alguém que ela não conhecesse lhe desse as boas tardes. E assim foi. Ela teve um sorriso que eu gostei mas que era precisamente o que ela devia ter depois de eu lhe dar as boas-tardes. Nada me encantava nela, nem aquele arremedo da moda tão ingénuo e inconsciente que lembrava os quartos andares na Estefânia ou os próprios figurinos desenhados que vêm de Paris, nem o seu quê de jovem que brilhava na saliva por entre os dentes, nem mesmo o seu incógnito que não iria além de um par de meias de seda estreadas a semana passada.

VI

(...) Depois do café fomos distrair prá Quermesse. A mim a Quermesse pareceu-me uma quermesse e a ela pareceu-lhe um pião. Confessou-me que aquela boneca de vestidinho azul tinha um ar muito engraçado, um ar que era muito peculiar ao marido todos os sábados à meia-noite quando fechava mais tarde. Depois afastámo-nos da quermesse, sem dar por isso e ela ia-se-me confessando sugestionada pla ideia da morte; que sempre tivera uma enorme simpatia pela obra do Dumas pai e a do filho e perguntou-me se o Dumas gravador era da mesma família.

XI

(...) Mas pior do que nunca, foi quando naquela manhã de Maio eu acordei no meio de um sonho em que vira a minha amante como sendo cozinheira preta da cintura pra cima e sendo apenas a minha amante da cintura pra baixo. Quis certificar-me. Sentei-me na cama e tive um grande prazer em verificar que tinha sido apenas um sonho aquele horror. Porém, quando ela se ergueu era efectivamente, ainda que ao contrário do meu sonho, a minha amante da cintura pra cima e a cozinheira preta da cintura pra baixo.

(Almada Negreiros, 1970, p.53-107)

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt