K4 O Quadrado Azul

 

K4 O Quadrado Azul aparece em 1917 sob a forma de um folheto e apresenta-se constituído por um único parágrafo, extenso e compacto, de cerca de vinte páginas impressas.

 

Este texto é uma sátira social, cujo enredo gira em torno de duas personagens em decadência: o Marquês e a Marquesa. É sobretudo um texto que exprime a brutalidade do génio, a brutalidade criadora que lança no papel uma torrente de sentimento puro, bestial.

"...um discurso caótico,(...) de associação de ideias, numa experiência que me atrevo a classificar como um dos primeiros, se não o primeiro, na ordem cronológica, de «escrita automática» em língua portuguesa."

(David Mourão-Ferreira, 1985, p.88)

 

É uma obra que expressa a sua obseção pela proporção,  pelos cânones sagrados da Matemática que Almada julga serem os alicerces da Verdade:

 

" O perfume penetrante da sua alma raffinée não passava através do quimono de crepe da China. O seu ar não era de modéstia tinha era uma maneira parada de se existir pra fora, mas quem analisasse melhor os seus gestos veriam que faziam lembrar um loup que mal lhe encobrisse a oval delicada do rosto sem conseguir disfarçar os requintes esquisitos da sua alma de eleição. O velho e simpático Marquês seu pai não a compreendia e não era porque não lhe custasse muitos cabelos brancos andar sempre atrás dela pra lhe adivinhar os pensamentos. Quando havia visitas ela punha-se logo no seu constante mal-estar que lhe encobria todo o seu fino espírito a quem não a conhecesse (e infelizmente ninguém a compreendia) e o pobre Marquês, tirando com paciência o seu monóculo de aro de oiro, inclinava-se sobre um joelho e dizia baixo às visitas prá desculpar e sem que ela ouvisse: É muito doente, coitada!

(...) Durante uma semana saíra de Lisboa para experimentar uma nova marca de automóveis americanos modelo 1919 e então o quadrado azul agitou-se nitidamente em azul ímpar, mas ímpar 1. Quando lhe lia os meus poemas contra os olhos d'Ela as íris deformavam-se-lhe para triângulos de génio sem contornos rectos, dois deltas-carimbo do Nilo azul iguais a duas metades do quadrado 1; e pouco a pouco, agradávelmente, violentos aos solavancos, os olhos d'Ela encaixavam-se à justa dentro dos meus nesta necessidade que há de haver dois a ser infinito.

(...) Quando voltei outra vez havia uma carta registada para mim. Dentro só estava um quadrado azul. Nem um defeito mínimo em qualquer das faces. Apenas a cor caprichava em não se definir e de tal maneira que Eu já duvidava de ter visto tal azul. Do quadrado saltou uma espiral de cobre ascendentemente mola ofensiva donde se balanceava a minha cabeça congestionadamente acesa em embriaguez-vertigem de Carnaval-egípcio.

(...)Todas as lutas tumultuosamente-tângalo do ciclo das gerações dissolvem-se pra passado conseguindo deslocar a sensibilidade prálém de Zénite na distância exacta em que as dimensões do Homem fossem resumidas no ponto matemático e centro das zonas esféricas alucinadamente concêntricas da suspensão do éter.

(...) A Perfeição só se define onde não há dimensões e é, pois, absurdo adaptá-la a uma concavidade irregular. Plo contrário, concentrem-se as actividades de recepção no mínimo e a Perfeição possuirá o limite. A vida seria o instante, a abstracção mais rápida e infinitamente menor que o segundo cronométrico.

(...) O quadrado azul inchava-se pra harmonium asmático coa voz de candeeiro rouca de ventania e dizia a esta quadra de 4 vértices: Amar=A+M+A+R. Primeiro um A, o primeiro A de amar. A seguir um M,  o único M de amar. Depois um outro A, o segundo A de amar. E por fim um R, o R do fim de amar. Todos os outros AA eram independentes como estes, todos pertenciam às suas palavras, aos seus lugares nas palvras. Eu próprio que tantas vezes julguei que Eu era um génio descobri que afinal não passava de ser o A do azul quadrado e do quadrado azul.

(...) Oh! como eu odeio a Humanidade que se exprime! se Eu não soubesse ler os gestos e as proporções diria que a Humanidade era tão besta como os génios humanos quando pretendem desenvencilhar-se da inspiração. Ser génio quer dizer reproduzir-se igual a si-próprio, totalmente igual a si-próprio, exageradamente igual a si-próprio. Logo: não há génios. E bastaria Um só pra que se revelasse o segredo de ser génio, o segredo do Mistério onde está enterrada a Felicidade, o segredo de todos os segredos. E bastaria Um só pra que a Humanidade toda num só instante se emancipasse unanimemente prà Verdade que Eu creio plenamente nunca ninguém ter pensado apesar de se escrever coas mesmas sete letras V, E, R, D, A, D, E. Mas o dicionário está errado, morra o dicionário!

(...) Invente-se a máquina de reproduzir o cérebro! industrialize-se o génio! e coa morte perpétua do subjectivismo, da defeciência e do convencionalismo proclamar-se-á a paz definitiva erguida de entre todos os cérebros absolutamente iguais pra dentro. O único dado imprescindível prá invenção da máquina de reproduzir o cérebro é profetizá-la. Fui Eu, portanto, o poeta José de Almada-Negreiros quem a inventou. De resto a Velocidade resolve-a práticamente. E a Velocidade é o triunfo da Europa que elucida o Mundo. Júlio Verne a par de ter sido o mais ínfimo dos literatos foi também o grande Profeta da Primeira Geração Exclusivamente Europeia coa Capital na Velocidade. Viva a Velocidade! O coração de minha mãe ainda era um coração de gente, o meu coração já é um hélice que abrevia o dia porque faz girar a Terra mais depressa! Viva a Velocidade aceleradamente prémio! Morram a Saudade e o Regresso! Morram o verbo parar e o verbo recuar! Viva o verbo ganhar sempre por correr de mais! A minha amante não é uma mulher, puff! A minha amante é a Velocidade que Eu monto. Bravo! Morram os relógios, mentira! O mês é que tem 24 horas! O ano são só 12 dias! A Eternidade existe sim mas não é tão devagar! Os meus olhos são holofotes a policiar o infinito. Morra o Quilómetro! O Quilómetro não existe, o mais pequeno que há são 20 léguas! Eu sou Milionário. A minha Fortuna é o Século XX. O meu groom chama-se T.S.F.. Bravo ao meu groom!

(Almada Negreiros, 1970, p.13-36)

 

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt