Nome de Guerra

 

Nome de Guerra é a grande obra de Almada Negreiros no campo da ficção. 

Obra que, se testemuha a obediência do autor a algumas das normas da escrita clássica, não perturba no entanto a sua capacidade de inovação e originalidade. 

 

 

Obra na qual Almada recolhe e recria uma série de retratos que definiam as personagens literárias de Lisboa e a própria cidade mediante uma extraordinária capacidade de descrição física, um traço de desenho magistral:

"Tinha um pescoço horrível, sem ligação da nuca com as costas. Uma cova em triângulo entre as omoplatas e a falha do pescoço. E aqui a cor era ordinária. Porém, a nuca perfeita de redondeza, nem saliente, nem retraída. O tronco era uma verdadeira maravilha. Era todo o segredo da sua formosura. Os seios hediondos, partidos, duas excrecências inutilizadas. O busto curto mas sólido. Os ombros grandes e largos, levemente subidos. Os braços apertavam, desde o ombro até ao pulso, por uma forma ridícula e sem distância. As ancas cerradas, entre menina e mulher. A linha dos ombros mais larga que a das ancas, conforme a robustez do tronco. O ventre, bem posto, era contudo mais admirável do que formoso, mais escultural do que atraente. O umbigo, o sexo, as virilhas era tudo infantil, inocente..."

(Almada Negreiros, 1971, p.33)

Mais alguns excertos da grande obra literária de Almada:

" Das duas uma: ou as pessoas se fazem ao nome que lhes deram no baptismo, ou ele tem de seu o bastante para marcar a cada um. Será imprudente deduzir o nome próprio através de fisionomias ou dos caracteres; no entanto, uma vez conhecido o nome próprio de uma pessoa, ficamos logo convencidos de que este lhe assenta muito bem. Jules Renard tirou um esplêndido retrato da vaca em tamanho natural: «On l'appelle la vache et c'est le nom qui lui va le mieux.». Como vedes, este corpo-inteiro está extraordinariamente parecido, é vaca por todos os lados.

 Por sorte, a vaca não tem apelidos de família para lhe complicarem a existência. Mas, como é animal doméstico, vem a dar-lhe na mesma que tenha ou que não tenha apelidos. O ser animal doméstico faz com que fique dentro da circunscrição dos apelidos da família em casa de quem serve. A vaca é «Pomba», «Estrela», «Aurora» ou «Vitória» como uma pessoa podia ser apenas José, Maria, Luís ou Judite. É a domesticidade que leva a estas designações e para evitar o opróbrio da fria enumeração. São feitos da gentileza com facilidades para distinguir. Mas a verdade é que o facto de alguém ser Joana ou Manuel já é mais do que ser apenas homem ou mulher. Ser homem ou mulher é apenas a natureza; chamar-se João ou Manuela já é a natureza mais a vida inteira: é o problema. E se o João é Sousa e  a Manuela é Pereira, então, à natureza e à vida junte-se-lhes ainda por cima a existência e complicou-se o problema.

(...) O infinito era-lhe acessível. Via ao longe. O Antunes perguntou-se se seria o mesmo: ver ao longe e ver o longe.

 Ver ao longe é um dom especial de certas pessoas, sobretudo daquelas que não é pelas realidades alheias que caminham. Não pode por conseguinte ver ao longe aquele que põe a sua vontade ao serviço de qualquer acto imediato que caiba dentro do espaço de tempo da sua própria existência. A nossa existência pessoal fica abrangida pelo campo de acção das vontades que nos precederam. O nosso verdadeiro campo de acção está para além da nossa existência, no futuro. Pôr a nossa vontade ao serviço do imediato servirá apenas para que nos tire ainda mais tempo do pouco que já dispomos para atendermos ao nosso caso pessoal. A realidade, sendo de facto o que já existe feito, não deixa por isso de ser quase sempre um empecilho. Em vez de passagem é muro, não se pode transpor sem agilidade. E quando o facto real é um resultado da nossa vontade, que a tanto se empenhou, de empecilho pode facilmente transformar-se em muralha opaca que não nos deixe ver a nós mesmos do lado em que ficámos. Chama-se a isto não saber ver ao longe. Quem não sabe ver ao longe levanta muros em redor de si e muralhas que lhe tapem o horizonte. Se não sabe ver ao longe, tanto lhe faz como não que exista o longe, por isso tapa-o. Isto é, inventa-se um buraco para si, por cobardia de não ter ido a passo acertar-se com a sua própria estatura. Apressa-se para que a sua autobiografia não fique desmerecida aos olhos dos presentes, fabrica coerência para todos os seus actos e esquece só que tudo partiu afinal de não ter podido prosseguir na lealdade que se devia a si mesmo.

 Todos quantos intervêm na vida dos outros, quer seja a seu favor ou contra, são afinal de uma cobardia que escapa à observação dos melhor atentos. Cobardes por duas razões: primeira, por serem incapazes de se reconhecerem e darem a conhecer o seu próprio caso pessoal para a aceitação geral; segunda, porque, ao intervirem na vida dos outros, quer seja a seu favor ou contra, são incapazes também de abnegar da sua própria pessoa. Se alguém decide da sua vida para servir os outros e não renuncia a si mesmo, em que poderá ser equânime e admirável, justo e elucidativo? Respeitemos os que a tanto se afoitaram e se decidiram, mas desprezemos os que o fingem.

 A condição para saber ver ao longe é estarmos dentro de nós se se trata do próprio, ou de ter renunciado a si se se trata dos outros.

MORALIDADE DESTE ROMANCE:

Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar.

FIM"

(Almada Negreiros, 1971, p.15-17,223-225)

Na opinião de alguns críticos:

"Nome de Guerra impõe-se, antes de mais, como sendo uma obra-prima de «desenho»."

(David Mourão-Ferreira, 1985, p.100)

 

"a mesma linearidade prodigiosa, talvez ainda mais elementar que a do seu desenho"

(Vitorino Nemésio,cit in David Mourão-Ferreira, 1985, p.100)

 

"Almada escreve aqui como desenha, inventando no correr da frase ou no deslizar da linha sobre o papel um sentido inédito da ideia ou da forma."

(José Augusto-França, cit in David Mourão-Ferreira, 1985, p.100)

 

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt