Saltimbancos

 

Saltimbancos foi publicado em 1917 no número um (e único) da revista Portugal Futurista. Na mesma linha de K4 O Quadrado Azul, este é também um texto caóticamente compacto, não um parágrafo único mas um único período.

 

"Outro caso de radical contestação do narrável e do exprimível ... o espectador era colocado no centro do quadro, fazendo parte do "espectáculo", abolindo-se portanto a distância, numa óptica em que a perspectiva cedia o lugar à superfície"

(David Mourão-Ferreira, 1985, p.90)

 

" a casa em altura era só metade de casa co telhado guardado pra dentro da metade de tudo guardado pra dentro das janelas fingidas no muro amarelo ao sol cuma guarita verde também a querer fugir pra dentro do sol por todos os lados do sol sempre pra baixo do sol sempre prós olhos do sol co mastro sem bandeira cor de lenço vermelho de rapé a corar ao sol com quatro pedras nos cantos pra não voar até ao mar o lenço vermelho de rapé a corar ao sol com quatro montes nos cantos pra não voar pró mar longe do quartel por dentro co mesmo muro de sol de quartel igual ao amarelo de fora menos metade cum telhado encostado ao muro menos livre por dentro de portas negras e paredes de sol por todos os lados soldados parados soldados cinzentos de um pró outro lado pretos contra o sol por todos os lados curvados prá sombra soldados cinzentos meios nus de brim cinzento de chumbo redondo de forma com reflexos de lata ao sol cinzento impessoal de brim de parada quadrada e fechada prá relva em espeques de brim pobre igual e mínimo sol de brim...

(...) 1 2 1 2... só até ás trincheiras do picadeiro amarelo e sombra em diagonal de brim ao sol cor de caixa de soldados cor de chumbo com corneta e capitão três vinténs esquerdo esquerdo esquerdo 1 2 1 2... formar a quatro e casar tarde com ela não é por culpa dele nem por culpa dela é por culpa do cinzento cor de chumbo do brim ao sol sem expressão verbal só com expressão numérica de tabuada de somar de cor e salteado e detrás pra diante a unir fileiras 1 2 1 2... esquerdo    esquerdo   esquerdo 1 2 1 2...

(...) frio frio azul transparente e frio (bis) no branco das casas brancas de manhã azul a desmaiar e empalidecer pra branco e frio nas pernas nuas plo monte acima a acordar e as cabras oblíquas pra cima  a mexer a subir na relva parada nas pedras quietas e sol ao longe sol que há-de vir sózinho sem companhia ali plo monte acima cada vez mais verde com fumos brancos nas casas brancas lá em baixo no frio azul por entre as árvores como as estradas vazias às listas curvas como o vento da manhã  a ir-se embora pla estrada que vai por detrás do outro monte donde não se vê o moínho velho sem ninguém...

(...) pedras brancas de cornetim a subir tra-la-la e pedradas nas latas de acetilene de gente a ir-se embora prá escuridão e o bombo sempre ali com estrondo e pratos arrelia força nesse tambor malandros pedradas e mais pedradas bancadas vazias só dois bicos de acetilene  acesos no cornetim epiléptico a gritar nas faces  vermelhas do pai a ajudar a mulher a acabar de vez co bombo e mexe-te mulher do diabo força toda a força rompe-me esse bombo pedrada e mais pedrada e uma na cabeça do pai sempre em solo de cornetim crescendo malandros cabrões a minha vida a minha arte pontapé em zora com força força toda a força coa minha força bestas tenho fome dó dó dó-ré-mi tra-la-la pum-pum-pum filhos da puta cata-pum-pum-pum pratos prate-os força mata tra-la-la tra-li-lata acetilene catapum tapete rufa-me essa caixa sol-lá-sol filhos de um corno um murro na mulher e pedradas maissi-ré-sol e só um bico de acetilene a minha vida catapum tenho fome sacanas tenho fome trrrrrrrrrrrrr-pum-tchim-tchim-tchim-tra-la-sol-ré-mi-la-la-la-la raios os partam os pratos puta que a pariu trrrrrrrrrrrrrrrrrrr-pum nem gorjeta nem cinco reis  filhos da por causa da zora toca-me essa caixa puta estupor trrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr-pu-catapum -catapum pedrada catapum-pum-pum e último bico de acetilene lá-ré-sol às escuras sol-sol-sol filhos da puta catapum-pum-pum trrrrrrrrrrrrr-la-la-la-lalalala-pum"

(Almada Negreiros, 1970, p.37-51)

 

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