Da
dúvida ao cogito
Se o método é, como vimos o caminho para atingir a verdade, é preciso
começar pela aplicação da sua primeira regra, isto é, nada admitir que não seja
absolutamente certo, ou, noutros termos, é preciso duvidar de tudo o que não é dotado
de uma certeza absoluta, excluir tudo o que é impregnado por essa dúvida. Daí
aparecer uma tripla necessidade:
Necessidade
prévia de duvidar
Necessidade de
nada excluir da dúvida
Necessidade de
tratar provisoriamente como falsas as coisas impregnadas do menor motivo de dúvida.
A
esta tripla necessidade correspondem três características da dúvida cartesiana:
-
Ela é metódica
porque é um instrumento de conhecimento cuja meta é atingir a verdade
-
Ela é universal porque no processo do conhecimento, nada deve ser imune à aplicação do critério da
dúvida
-
Ela é provisória na medida em que desaparece sempre que a verdade for
atingida
Descartes defende pois que, para chegar à verdade, temos de duvidar de
tudo. Todas as coisas em que aparecer a menor dúvida devem ser tomadas por falsas.
Assim temos que duvidar das coisas sensíveis, pois os sentidos muitas vezes erram. Além disso, quando
sonhamos, passamos por diversas sensações ou imaginamos coisas que, apesar de parecerem
reais, não têm realidade fora de nós. Devemos ainda duvidar daquilo que antes tínhamos
tomado como certo, mesmo das demonstrações matemáticas.
No entanto, no próprio momento de duvidar,
Descartes reconhece que, pelo menos, aquele que duvida, tem que existir:
Não podemos duvidar de que existimos quando duvidamos; e este é
o primeiro conhecimento que obtemos filosofando com ordem.
Assim, rejeitando todas aquelas
coisas de que podemos duvidar de algum modo, e até mesmo imaginando que são falsas,
facilmente supomos que não existe nenhum Deus, nenhum céu, nenhuns corpos; e que nós
mesmos não temos mãos nem pés, nem de resto corpo algum; mas não assim que nada somos,
nós que tais coisas pensamos: pois repugna que se admita que aquele que pensa, no
próprio momento em que pensa, não exista. E, por conseguinte, este conhecimento, eu
penso, logo existo, é o primeiro e mais certo de todos, que ocorre a quem quer que
filosofa com ordem.
Descartes, Princípios
da Filosofia, I Parte, p. 55.
O cogito é, assim, a expressão final sintética e intuitiva do processo de aplicação
metódica da dúvida. Com efeito, é através deste processo que se atinge a substância
da alma como puro pensamento (res cogitans) e que se define a essência do homem por via
desta substância: eu
penso, logo existo (cogito ergo sum).
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