Quando Russell começou a corresponder-se com
Frege, o trabalho de Frege não tinha sido ainda particularmente bem recebido. Pode até dizer-se
que fora ignorado.
A primeira carta, que apresentamos neste
trabalho, foi escrita por Russell em 16
de Junho 1902. Nesta carta e com
grande delicadeza, Russell revelava a Frege que o
seu
paradoxo criava uma contradição no sistema de axiomas de Frege que constava no seu Grundgesetze der Arithmetik, cujo segundo
volume estava quase a ser publicado.
Russell descobriu o referido paradoxo enquanto
trabalhava no livro The Principles
of Mathematics (1903). Mas, já em 1897, Cesare Buralli-Forti, um assistente de Guiseppe Peano, tinha descoberto uma antinomia
semelhante conhecida por Paradoxo de
Buralli-Forti. Este paradoxo também havia sido descoberto independentemente por Ernst
Zermelo em 1902.
Frege viu a sua obra, fruto de anos de
investigação e dedicação, desmoronar-se. Foi como se, ao receber esta carta de
Russell, um dos principais pilares que sustinha o seu trabalho tivesse sido destruído. Contudo, mesmo perante esta adversidade, Frege
demonstrou possuir aquilo que pode haver de mais sublime na condição humana - o amor à
verdade.
Russell admirou Frege pela atitude que
demonstrou neste episódio e reconheceu a nobreza do seu espírito. Neste
sentido, a carta que Russell escreveu ao editor a dar autorização para que pudesse ser
publicada a sua correspondência com Frege é eloquente.
A carta1 é esta:
Penrhyndeudraeth, 23 de Novembro de 1962
Caro Professor van Heijenoort
Fico
encantado por pretender publicar a correspondência entre Frege e eu próprio, e estou-lhe
grato por o ter sugerido. Ao pensar em actos de integridade e elevação, apercebo-me de
que não existe nada em meu conhecimento que se possa comparar à dedicação de Frege à
verdade. O trabalho de toda a sua vida estava prestes a ser concluído, muito da sua
investigação tinha sido ignorado em proveito de homens infinitamente menos capazes, o
seu segundo volume estava quase a ser publicado, e quando descobriu que a sua suposição
fundamental era errada, respondeu com prazer intelectual fazendo evidentemente submergir
todos e quaisquer sentimentos de desapontamento pessoal. Foi um gesto quase supra-humano e
uma eloquente indicação daquilo que os homens são capazes de fazer se se dedicam ao
trabalho criativo e ao conhecimento, em vez de realizarem esforços grosseiros para
dominarem e serem conhecidos.
Sinceramente este seu,
Bertrand Russell
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Seguiram-se inúmeras cartas entre ambos, como
se pode ver na lista cronológica da
correspondência de Frege. Como resultado, Frege modificou um dos seus axiomas e,
como explica num apêndice do segundo volume dos Grundgesetze
der Arithmetik, fê-lo para devolver consistência ao sistema que havia criado.
É comovente esta nobre atitude de Frege que não hesitou em acrescentar
ao segundo volume do seu livro um apêndice (datado de
1902) que invalidava uma grande parte do seu trabalho. Como escreve no seguinte excerto do
dito apêndice:
"Dificilmente poderá
suceder a um cientista uma coisa mais infeliz do que ter um dos fundamentos do seu
edifício abalado depois de ter terminado a obra.
Foi nesta posição que me vi colocado por uma carta de Bertrand
Russell quando a impressão deste volume estava quase completa. Refere-se ao meu Axioma
(V) 2. Nunca ocultei de mim próprio a sua falta de evidência, que os outros
axiomas de resto não têm, quando de uma lei lógica o que se deve exigir é evidência.
E de facto eu indiquei este ponto fraco da minha obra no Prefácio do Vol. I
(p.vii). Teria dispensado este axioma com grande agrado se eu conhecesse uma maneira
qualquer de o substituir. E mesmo agora não vejo como é que se pode estabelecer
cientificamente a aritmética, como é que os números podem ser aprendidos como objectos
lógicos a não ser que sejamos permitidos – pelo menos condicionalmente – a
passar de um concito para uma extensão. Posso falar sempre da extensão de um conceito
– falar de uma classe? E no caso negativo, como é que reconhecem as extensões? Do
facto de um conceito coincidir sempre em extensão reconhecem as excepções? Do facto de
um conceito coincidir sempre em extensão com outro podemos sempre inferir que um objecto
que pertença a um também pertence ao outro? São estes os problemas levantados pela
carta do Bertrand Russell.
Slatium miseris, socios habuisse dolorum. Também eu tenho esta
consolação, se é que chega a ser consolação, porque quem quer que tenha usado em
demonstrações dos conceitos, classes, conjuntos, etc., está na mesma posição em que
eu me encontro. O que está em causa não é apenas a minha maneira particular de
estabelecer a aritmética, mas antes saber-se se a aritmética pode ter uma
fundamentação lógica.
Voltando ao assunto, Bertrand Russell descobriu uma contradição que
pode ser agora enunciada.
Ninguém dirá que a classe dos homens é um homem. Temos aqui uma
classe que não pertence a si própria. Digo que qualquer coisa pertence a uma classe
quando pertence ao conceito cuja extensão é uma classe. Concentremo-nos agora no
conceito classe que não pertence a si própria. A extensão deste concito ( se podemos
falar da sua extensão) é assim classe das classes que não pertence a elas próprias.
Abreviadamente chamar-lhe-emos a classe K. Vejamos agora se a classe K pertence a si
própria. Primeiro suponhamos que pertence. Se uma coisa pertence a uma classe então
pertence ao conceito cuja extensão é uma classe. Assim se a nossa classe pertence a si
própria é uma classe é que não pertence a si própria. A primeira suposição conduz
assim a uma auto-contradição. Em segundo lugar, suponhamos que a classe K não pertence
a si própria; então pertence ao conceito cuja extensão é a própria classe, e assim
pertence a si própria. E aqui uma vez mais temos uma contradição." 2 |
1-Heijenoort, (1967). From Frege to Gödel. Cambridge,
Massachusetts: Harvard University Press, p.127.
2- Axioma (V) lê-se da seguinte forma:
Se dois conceitos f(x) e g(x) têm sempre o mesmo valor para o
mesmo argumento então as suas extensões são as idênticas.
2- Kneale, W., Kneale, M. (1980).
O Desenvolvimento da Lógica. Lisboa: 2ª ed., p. 650.
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