A relação da Matemática ao Mundo tem  dado origem a variadas e profundas teorizações. Apresentamos de seguida alguns excertos de Filósofos, Matemáticos e Físicos que dizem respeito a esta questão.

 

 


 

Textos de:

 

Aristóteles (Segundos Analíticos e Metafísica)

John Locke (Ensaio sobre o entendimento Humano)

Platão (Teeteto)

Descartes (Meditações de Filosofia Primeira)

Philip J. Davis e Reuben Hersh ( A Experiência Matemática)

G.H. Hardy ( Em Defesa de um Matemático)

Einstein (Geometria e Experiência)

 e ainda

Bento Jesus Caraça. A Matemática da Natureza (por João Caraça)


 

"Ainda que a percepção sensível seja inata em todos os animais, em alguns deles produz-se uma persistência da impressão sensível que não se produz noutros. (…) Os animais em que se produz esta persistência retêm ainda depois da sensação a impressão sensível na alma. E quando uma tal persistência se repete um grande número de vezes, (…) a partir da persistência de tais impressões, forma-se a noção universal. (…) É assim que da sensação vem aquilo a que chamamos lembrança, e da lembrança várias vezes repetida de uma mesma coisa vem a experiência, porque uma multiplicidade numérica de lembranças constitui uma única experiência. E é da experiência (…) que vem o princípio da arte e da ciência."

 

   [ Aristóteles, "Segundos Analíticos",  II, 19, 99b, 15 e seguintes]

 

"Os animais são por natureza dotados de sensação, mas nalguns deles esta não chega a transformar-se em memória, enquanto noutros isso acontece. (…)

É da memória que provém para os homens a experiência : com efeito, uma multiplicidade de recordações da mesma coisa chega a constituir finalmente uma única experiência; e a experiência parece ser mais ou menos da mesma natureza que a ciência e a arte. (…) A arte surge quando, a partir de uma multidão de noções experimentais, se extrai um único juízo universal aplicável a todos os casos semelhantes."

 

   [Aristóteles, "Metafísica", A 1, 980a21 a 981b12]

 

"Dizer que há verdades impressas na alma, que a alma não apercebe ou não entende, é, parece-me, uma espécie de contradição, pois a acção de imprimir não designa outra coisa senão fazer aperceber certas verdades. (...) Dizer que uma noção está gravada na alma e sustentar ao mesmo tempo que a alma não a a conhece e que não teve ainda nenhum conhecimento dela, é fazer desta impressão um puro nada. Não se pode de todo assegurar que uma certa proposição esteja no espírito , quando o espírito ainda não a apercebeu nem descobriu nenhuma ideia em si próprio. (...) E assim esta grande  questão reduzir-se-á unicamente a dizer que aqueles que falam de princípios inatos falam muito impropriamente; mas que no fundo eles crêem na mesma coisa que os que negam que os haja; porque não penso que alguém tenha alguma vez negado que a alma fosse capaz de conhecer várias verdades. É esta capacidade, diz-se, que é inata; e é o conhecimento de tal ou tal verdade que se deve chamar adquirida. Mas se é isso tudo o que se pretende, para quê o entusiasmo em manter que há certas máximas inatas ? (...)

Admitamos, pois, que, na origem, a alma é como que uma tábua rasa, sem quaisquer caracteres, vazia de qualquer ideia. Como é que adquire ideias? Por que meio recebe essa imensa quantidade que a imaginação do homem, sempre activa e ilimitada, lhe apresenta com uma variedade quase infinita? Aonde vai ela buscar todos esses materiais que fundamentam os seus raciocínios e os seus conhecimentos? Respondo com uma palavra: à experiência. É essa a base de todos os nossos conhecimentos e é nela que assenta a sua origem. As observações que fazemos no que se refere a objectos exteriores e sensíveis ou as que dizem respeito às operações interiores da nossa alma, que nós apercebemos e sobre as quais reflectimos, dão ao espírito os materiais dos seus pensamentos. São essas as duas fontes em que se baseiam todas as ideias que, de um ponto de vista natural, possuímos ou podemos vir a possuir.

E primeiramente, sendo os sentidos excitados por certos objectos exteriores, fazem entrar na alma várias percepções distintas das coisas, segundo as diversas maneiras por que estes objectos agem sobre os nossos sentidos. É assim que adquirimos as ideias que temos do branco, do amarelo, do quente, do frio, do duro, do mole, do doce, do amargo, e de tudo o que denominamos qualidades sensíveis. Direi que os nossos sentidos fazem entrar todas estas ideias na nossa alma, pelo que me parece que eles fazem entrar objectos exteriores na lama, o que produz nela estas espécies de percepções. E como esta grande fonte da maior parte das ideias que nós temos depende inteiramente dos sentidos e por meio deles se comunica ao entendimento, chamo-a sensação.

A outra fonte de que o entendimento vem a receber ideias  é a percepção das operações da nossa alma sobre as ideias que recebeu dos sentidos : operações que, tornando-se o objecto das reflexões da alma, produzem no entendimento uma outra espécie de ideias, que os objectos exteriores não poderiam ter-lhe fornecido : tais são as ideias do que chamamos aperceber, pensar, duvidar, crer, raciocinar, conhecer, querer e todas as diferentes acções da alma. (...) Chamarei a esta fonte [do nosso conhecimento] reflexão, porque por seu intermédio a alma não recebe senão as ideias que adquire reflectindo sobre as suas próprias operações.

O entendimento não me parece ter absolutamente nenhuma ideia que lhe não venha de uma destas duas fontes (...), embora talvez combinadas e aumentadas pelo entendimento, com uma variedade infinita."

   [John Locke, "Ensaio sobre o Entendimento Humano"]

 

Sócrates: Diz-me: Cada um dos sentidos por meio dos quais tu percebes o quente, o duro, o mole, o doce, não o atribuis ao corpo? Ou relaciona-lo com qualquer outra coisa?

Teeteto: Com nenhuma outra coisa.

Sócrates: Concordas em que aquilo que percebes por meio de uma faculdade te é imperceptível por meio de outra? Que a percepção que tens pelo ouvido não podes tê-la pela vista, que a que tens pela vista não podes ter pelo ouvido?

Teeteto: Como podia eu recusar isso?

Sócrates: Se o teu pensamento concebe alguma coisa que pertença às duas percepções simultaneamente, não era pela via do primeiro destes dois órgãos nem pela via do segundo que poderias obter essa percepção comum.

Teeteto: Certamente que não.

Sócrates: Assim, relativamente ao som e à cor, esse primeiro carácter comum é apreendido pelo teu pensamento como os dois são?

Teeteto: Certamente.

Sócrates: E também que cada um é diferente do outro, mas idêntico a si próprio?

Teeteto: Como é isso?

Sócrates: Que no conjunto são dois, e que cada um é um?

Teeteto: É verdade.

Sócrates: És capaz de examinar a sua dissemelhança ou semelhança mútua?

Teeteto: Talvez.

Sócrates: E qual será o meio por que tudo isso te vem ao pensamento? Nem pela vista, nem pelo ouvido pode ser apreendido o que neles há em comum. [...] Mas por qual instrumento se exerce a faculdade que te revelará o que há de comum nesses sensíveis como ao resto, e que tu designas por «é» ou «não é» e por todos os outros termos enumerados, a seu respeito, nas nossas últimas questões? Que órgãos impressionarão esses comuns e que servirão de meio para perceber cada um deles o que é que em nós percebe?

Teeteto: Tu queres falar do ser e do não ser, da semelhança e da dissemelhança, da identidade e da diferença, da unidade, enfim... Por tudo isso tu perguntas por meio de que órgão corpóreo nós temos, pela alma, a percepção.

Sócrates: Tu percebes maravilhosamente, Teeteto, é exactamente isso que pergunto.

Teeteto: Mas por Zeus, Sócrates, eu não podia encontrar resposta, senão que em minha opinião a primeira coisa a dizer é que os comuns não têm como os sensíveis órgão próprio. É a própria alma que por si me parece fazer, em todos os objectivos, este exame dos comuns.

Sócrates: Tu és belo, Teeteto.....Tu não és somente belo, mas bondoso para mim, pela abundância dos argumentos com que me respondes, se te parece, na verdade, que certas observações a alma as faz a ela própria e pela sua própria via que as outras são o resultado das faculdades do corpo. Era essa, com efeito, a minha própria maneira de pensar; mas eu desejava que tu lá chegasses por ti próprio.

Teeteto: Mas é assim que a coisa me parece.

Sócrates: Em que plano pões então o ser? Porque é ele que tem maior extensão.

Teeteto: Coloco-o no número dos objectos que a alma se esforça por atingir por si própria e sem intermediário.    

Sócrates: O semelhante também e o dissemelhante e o idêntico e o diferente?

Teeteto: Sim.

Sócrates: E o belo, o feio, o bem e o mal?

Teeteto: É de tais determinações, sobretudo, que a alma me parece examinar o ser, comparando-os mutuamente quando coloca na balança, no seu cálculo interior, passado, presente e futuro.

Sócrates: Pára aí. A dureza do duro não será sentida pelo tacto, o mesmo acontecendo com a moleza do mole?

Teeteto: Sim.

Sócrates: Mas sobre o seu ser, a dualidade do seu ser, a sua mútua oposição, é a própria alma que, num retorno frequente sobre cada um e por meio do seu confronto mútuo, experimenta tirar deles um juízo.

Teeteto: Perfeitamente.

Sócrates: Então, logo após o nascimento os homens e os animais têm o poder da sensação para todas as impressões que, pelo canal do corpo, caminham para a alma. Mas os raciocínios, que confrontam essas impressões nas suas relações com o ser e o útil, é pelo esforço  e com o tempo, ao preço de um múltiplo labor e de uma longa aprendizagem, que chegam a formar-se naqueles em que se formam.

Teeteto: Absolutamente.

Sócrates: Aquele que não atinge o ser pode atingir a verdade?

Teeteto: Impossível.

Sócrates: E poderá alguma vez haver ciência onde se não atinge a verdade?

Teeteto: Como é que poderia, Sócrates?

Sócrates: Não é então nas impressões que reside a ciência, mas nos raciocínios sobre as impressões. porque o ser e a verdade, parece-me, podem atingir-se pelo raciocínio e não pelas impressões.

Teeteto: Com verosimilhança. E assim, está provado o mais manifestamente possível que a ciência é diferente da sensação."

   [Platão, "Teeteto", 184e a 186e]

 

"Imagino distintamente essa quantidade que os filósofos chamam vulgarmente a quantidade contínua, ou seja, a extensão em largura, comprimento e profundidade, que existe nessa quantidade. (…) E não conheço só estas coisas distintamente, quando as considero em geral, mas também (…) acabo por conhecer uma infinidade de particularidades relativamente aos números, às figuras, aos movimentos, e outras coisas semelhantes, cuja verdade aparece com tanta evidência e está de tal forma de acordo com a minha natureza que, quando começo a descobri-las, não me parece aprender nada de novo, mas recordar o  que já sabia. Quero dizer : apercebo-me de coisas que estavam já no meu espírito, ainda que não tivesse pensado nelas."

 

   [ Descartes, "Meditações de Filosofia Primeira", V]

 

"É útil aquilo que satisfaz uma necessidade humana. Ouve-se dizer frequentemente que a matemática é útil, mas, por ser tão alargada a variedade das suas aplicações, será vantajoso considerar separadamente os diversos significados que podemos atribuir a esta palavra. Um pedagogo - em especial se for um dos clássicos - dirá que a matemática é útil por nos ensinar a pensar e a raciocinar com rigor. Um arquitecto ou um escultor - novamente um dos clássicos - dirá que a matemática é útil por nos permitir a percepção e a criação de beleza visual. Um filósofo poderá dizer que a matemática é útil na medida em que lhe permite escapar à realidade da vida quotidiana. Um professor dirá que a matemática é útil porque lhe fornece o sustento. Um editor sabe que a matemática é útil porque faz vender muitos livros didácticos. Um astrónomo ou um físico dirão que a matemática é útil por ser a linguagem da ciência. Um engenheiro civil afirmará que a matemática é indispensável para construir uma ponte. Um matemático dirá que, dentro da própria matemática, um corpo matemático é útil quando for aplicável a um outro corpo matemático."

     [Philip J. Davis e Reuben Hersh, "A experiência Matemática"]

 

"Nunca fiz nada de "útil". Nenhuma descoberta minha fez, nem virá provavelmente a fazer, directa ou indirectamente, para o bem ou para o mal, qualquer diferença ao conforto do mundo. Auxiliei a formação de outros matemáticos, mas matemáticos da minha própria estirpe, e o seu trabalho tem sido até agora, e na medida em que os tenho ajudado, tão inútil como o meu próprio. Avaliado segundo qualquer padrão de utilidade prática, o valor da minha vida matemática é zero e, fora da matemática, é de qualquer forma, trivial. Existe apenas uma hipótese de fuga a um veredicto de completa trivialidade: ser julgado como havendo criado algo que merecesse ser criado. E é indesmentível que criei algo: a questão prende-se com o seu valor.

A justificação para a minha vida, ou para a de quem quer que tenha sido um matemático tal como eu fui, é esta: acrescentei algo ao conhecimento e ajudei outros a acrescentar mais; e estes algos diferem apenas em grau, e não em género, das criações dos grandes matemáticos, ou das de qualquer outro artista, grande ou pequeno, que deixe atrás de si algum monumento à sua memória."

  [extracto de "Em defesa de um Matemático. " por G. H. Hardy, 1941]

 

"Como é que a matemática, que é um produto do pensamento humano e independente de qualquer experiência, se adapta duma maneira tão admirável aos objectos da realidade? A razão humana seria capaz, sem recurso à experiência, de descobrir só pela sua actividade as propriedades dos objectos reais?

A esta questão é preciso, na minha opinião, responder do seguinte modo: na medida em que as proposições da matemática se relacionam com a realidade não são certas, e na medida em que elas são certas, não se relacionam com a realidade. A clareza perfeita sobre este assunto não podia ter-se tornado comum sem a tendência em matemática que é conhecida sob o nome de axiomática. O progresso realizado por esta última consiste em que a parte lógica e formal é cuidadosamente separada do conteúdo objectivo ou intuitivo. Segundo a axiomática, a parte lógica e formal constitui só o objecto da matemática, mas não o conteúdo intuitivo ou outro que lhe esteja associado.

(...) A axiomática moderna desembaraça a matemática de todos os elementos que não lhe pertencem, e dissipa assim a obscuridade mística que envolvia noutros tempos os fundamentos. (...) Mas é por outro lado verdade que a matemática em geral e a geometria em particular devem a sua existência à nossa necessidade de saber qualquer coisa sobre o comportamento dos objectos reais."

   [extracto de "Geometria e Experiência" por Albert Einstein, 1921]

 



Bento Jesus Caraça - A Matemática da Natureza (por João Caraça)

 

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Educação e Matemática, nº 64