Museu e Biblioteca. A “alma“ da Escolapor Olga Pombo
“Nós somos todos
constituídos de bocados, de extractos de História, Ray Bradbury, Fahrenheit 451
1. Escola e Museu Enquanto espaço delimitado no interior da cidade, território determinado pela sua quietude e serenidade (jardim), por uma fronteira física mais ou menos indelével - porta (stoa), parede (palestra), gradeamento, muro - pela sua temporalidade própria (o ritmo intercalar das suas “aulas“ e “intervalos“, dos seus períodos de trabalho, dos seus tempos livres e das suas “férias“), a escola está necessariamente retirada do resto do mundo.Em vão se tem procurado abrir a escola ao mundo, quer pela diluição e mesmo anulação das fronteiras físicas que separam a escola do mundo (escola aberta), quer pela inclusão “na“ escola dos saberes não-escolares, justamente aqueles que se constituem à margem da escola ou que a escola constituiu nas suas margens (jardinagem, olaria, etc). A escola porém tem a sua forma própria de ser e de estar e isso passa pela existência de uma película, simultaneamente de refúgio, protecção e recolhimento face ao mundo[1]. Mas, se a diferenciação institucional da escola passa, entre outras coisas, pela sua delimitação territorial face ao mundo, por outro lado, o destino da escola é o mundo. Em limite, ela não tem outra vocação que não seja visar o mundo de que ela se retira. Nela se aprende a “olhar“ o mundo, a conhecer as suas leis, regras e mecanismos. Nela primordialmente se ensinam os conhecimentos, representações, imagens que os homens foram produzindo sobre o mundo. Neste sentido, não agora físico mas cognitivo, se poderá dizer que a escola está, necessariamente, aberta ao mundo. Ora, face à sua inexorável abertura cognitiva ao mundo e na impossibilidade de transportar o mundo para o seu interior, toda a escola procura conter, dentro das suas paredes, o museu enquanto duplo do mundo, sua recriação exemplificativa. Lugar por excelência da circulação da palavra, do desenho das letras, da aprendizagem da escrita, da iniciação à prática da leitura e da construção e articulação conceptual, a escola tem necessidade da ilustração imagética, seja ela metafórica (e portanto interna aos mecanismos da linguagem que assim se torna ex-plicativa[2]), seja ela objectual e exemplificativa, fundada na apresentação ostensiva de objectos-tipo reunidos nesse microcosmos ordenado pela vontade didáctica de mostrar que é o museu[3]. Mesmo no caso em que se preconiza a "lição das coisas"[4], o que é oferecido ao aluno é o contacto directo (material, físico, manipulatório), não com as “coisas“ na sua mundaneidade, mas sim com as suas representações e exemplos: os mapas, as cartas, as ilustrações, os modelos, as amostras geológicas, os espécimes biológicos, as maquetas, as reproduções mais ou menos estilizadas que povoam as paredes das salas de aula de todas as escolas, aquilo que se deixa designar pelo nome de “material didáctico“[5]. Não são apenas os livros escolares que são ilustrados, pelo menos depois de Comenius[6]. É a escola, cuja vocação essencial é “dar a ver“[7], que desde a sua origem se socorre das virtudes didácticas da imagem, da sua capacidade para “fazer ver“. Tudo se passa como se a escola, instituição constitutiva da cultura linear, tivesse que prestar tributo à visualidade tornada possível pela vitória da escrita (e portanto da escola) sobre a cultura acústica e oral[8]. Na verdade, todos os professores têm, fora de aula, o seu objecto de ensino. O professor de Geografia, por exemplo, utiliza mapas, cartas, planisférios, mapas Mundi, isto é, diversas formas de re-presentação e a-presentação do planeta Terra, formas de aproximação a algo de longínquo e intangível - a Terra (a pele da Terra). O professor de Biologia socorre-se de fotografias, cromos, slides, esquemas, diagramas, ilustrações, por vezes mesmo de um pequeno museu, uma vitrina de conchas, estrelas do mar e pequenos animais embalsamados. Essa é a sua forma de aceder àquilo que, muito para lá da sala de aula, seria o conjunto dos seres vivos, seu verdadeiro objecto de estudo. Da mesma maneira, o professor de História, utiliza documentos, túmulos, estátuas, ruínas, moedas, espadas, restos de toda a espécie para tentar aproximar-se de algo irrecuperável — o passado do Homem ou o Homem do passado. Também os professores de Física ou de Química remetem constantemente para um mundo de experiências que eles não podem realizar na aula senão episodicamente, ilustrativamente[9]. Digamos que toda a escola tende pois a construir o seu próprio museu. E, em termos históricos, assim foi de facto. Disso são exemplo paradigmático, tanto o Liceu de Aristóteles e Teofrasto, cuja orientação para a polimathia e a enkuklia mathemata determinava a exigência de uma exaustiva classificação das coisas naturais[10], como o Museu de Alexandria, com as suas colecções de plantas e animais, os seus jardins botânicos e zoológicos que a dinastia dos Lágides quis pôr ao serviço daqueles que se proponham dedicar as suas vidas ao ensino e à investigação inspirada pelas Musas. Majestosa instituição fundada por Ptolomeu Soter, ela tem a sua origem em Demétrio de Falero (350-283 a.c.), discípulo de Teofrasto (372-287), sucessor de Aristóteles no Liceu, o qual, dando corpo à ideia aristotélica de que a ciência é um empreendimento colectivo que exige a colaboração e o esforço conjugado de uma república de sábios, havia fundado no Liceu um Museion, verdadeiro predecessor do museu de Alexandria. A posterior história do museu é disso prova. Reunidos por particulares, os museus foram de facto tendencialmente construídos no âmbito da escola, como dispositivos paralelos, pensados em função da sua capacidade de conservação, transmissão e invenção do saber. Desde o“Mussaeum Kircehrianum“ fundado por Athanasius Kircher (1638-1725) no colégio Jesuíta de Roma e que incluía, para além de colecções de seres naturais, esqueletos animais e humanos, fosseis, instrumentos astronómicos, numismática e medalhística, instrumentos hidráulicos, animais embalsamados, jóias, vestuário, materiais étnicos trazidos pelos jesuítas da Ásia e da América Latina;desde a famosa colecção de espécies botânicas e animais reunida por Aldrovandi (1522-1607), na Universidade de Bolonha onde era professor de História Natural; do Museum museorum de Michael Bernard Valentini (1657-1720), professor de medicina experimental em Giessen, ou da colecção de Antonio Vallisnieri (1660-1730), naturalista de renome e professor na universidade de Pádua que visa, explicitamente, instruir os jovens na história natural, contribuir para o combate à credulidade e à ignorância[11]; desde os inúmeros museus setecentistas em torno dos quais se desenvolveram as investigações naturalistas[12] e onde, em paralelo com os “Liceus“ e “Ateneus“, se ministram cursos públicos que se transformam em verdadeiros fenómenos de moda[13], ou dos grandes museus dos séculos XIX e XX, museus gigantescos como o British Museum[14], em que se pode observar de perto o baixo relevo do frontão do Partenon ou o esqueleto de um dinossauro, museus interactivos como o “Palais de la Découverte“[15], museus da contemporaneidade como a “Cité des Sciences et de l'Industrie“ de Paris, melhor dizendo, centros que organizam grandes exposições em que são dados a ver os instrumentos e produtos da tecno-ciência mais recente[16] até aos pequenos museus das nossas escolas, tantas vezes reduzidos a uma pequena vitrina com algumas amostras de minérios, fosseis e pequenos animais embalsamados[17]. Templo das musas[18], lugar da inspiração, da criação do novo, o museu de Alexandria é, simultaneamente, uma escola, um museu e o primeiro grande centro de investigação de toda a história da ciência. Aí se reúnem os maiores sábios da época. Pela primeira vez na história da humanidade, os sábios serão pagos pelo poder soberano que lhes oferece instalações sumptuosas, pensão e protecção, lhes disponibiliza espaços, um peripatos, palestras, salas destinadas à discussão e laboratórios, instrumentos de trabalho, um observatório, salas de dissecação[19]. Com os seus pórticos, a sua exedra e o seu vasto refeitório, os sábios que aí vivem em comunidade, libertos de preocupações materiais, têm a possibilidade de se ocuparem apenas com a investigação e o ensino. À sua disposição está também a maior colecção de livros do mundo antigo, calculada em cerca de 700.000 volumes. 2. Escola e Biblioteca Tal como o museu, também a biblioteca - etimologicamente, a caixa, o cofre, o depósito, o lugar de conservação (Qhch) dos livros (biblion) - acompanha desde sempre os destinos da escola. De novo se impõe a referência à figura soberana de Aristóteles, inventor ele também do espaço intelectual novo da biblioteca porque imediatamente consciente da sua importância e íntima ligação com a escola. Dizemos “novo“ porque a biblioteca de Aristóteles, ao contrário de todas as que a precederam, não pode ser considerada como uma simples reunião privada ou pública de livros[20]. Comoescreve Patrick, "Aristóteles foi o primeiro a fazer uma colecção sistemática e útil de livros para a sua escola. Nenhuma outra biblioteca escolar é mencionada em relação com qualquer prévia instituição escolar, nem sequer a Academia". E mais adiante, "Aristóteles, a quem Platão chamava “o leitor“, aparece como sendo o primeiro a reconhecer o valor da organização de uma biblioteca para uma escola filosófica" (Patrick, 1972: 97). O facto de Aristóteles a ter legado a Teofrasto[21], seu sucessor no Liceu, mostra bem de que modo Aristóteles se apercebeu da relação primordial entre biblioteca e escola. Relação que encontra a sua expressão simbólica numa das primeiras grandes bibliotecas da nossa civilização[22] - a Biblioteca de Alexandria. Perpetuando o sonho conquistador e ecuménico de Alexandre, aí se materializa, pela primeira vez, o sonho de uma biblioteca universal. Aí se reúnem todos os livros que a dinastia dos Lágides comprou, pediu, anexou, mandou copiar; os livros que Ptolomeu I Sóter acumulou, os que mandou procurar, requisitar, confiscar em todos os barcos que aportavam ao majestoso porto de Alexandria; os que Ptolomeu II Filadelfo solicitou por carta a todos os soberanos de outros reinos do seu tempo; os originais gregos que Ptolomeu III Evergeta mandou pedir emprestados a Atenas e que, apesar da exorbitante quantia deixada como fiança, preferiu guardar, devolvendo apenas uma cópia.Aí eles são postos à disposição dos sábios que os Ptolomeus chamaram a Alexandria e mandaram instalar no Museu de que a Biblioteca é complemento necessário. Paradigma imaginário e referência maior da própria ideia de biblioteca, o carácter mítico da biblioteca de Alexandria é reforçado pelo colapso da sua destruição, acontecimento de incalculáveis consequências culturais e expressão da fatalidade limite a que está votada a própria biblioteca enquanto instituição da memória, esforço de preservação que visa, justamente, impedir o esquecimento. Atribuída ao general árabe Amrou Ben Al-As que conquistou o Egipto em 642 e que, face ao dilema clássico do califa Omar de destruir todos os livros que, dizendo o que diz o Corão são inúteis, ou não dizendo o que ele diz são heréticos, a teria mandado incendiar, sabe-se hoje de um primeiro incêndio no tempo de César, em 48 a.c. e de uma série de destruições nos finais do século IV perpretadas pelo zelo fanático dos cristãos contra as instituições e os símbolos da cultura pagã. É de tal modo grande o fascínio da antiga Biblioteca de Alexandria - lugar ímpar em que se jogou o futuro da civilização ocidental - que, hoje, 2300 anos depois, está em construção uma nova Biblioteca em Alexandria. Como adiante se verá, o seu “renascimento“, que fica a dever-se à inciativa do governo egípcio em colaboração com a UNESCO e no qual está envolvido a comunidade internacional, é um gesto simbólico que visa retomar o projecto universalista da antiga biblioteca e do centro de investigação ou Museu que lhe estava associado. Trata-se de uma relação privilegiada que a “História da Escola” e a “História da Biblioteca” depois de Aristóteles e de Alexandria mais não faz que confirmar. De facto, como não reconhecer nas grandes bibliotecas imperiais de Roma[23] o seu paralelismo com o processo de instituição do primeiro grande programa público de escolaridade? E, que dizer das bibliotecas medievais, cristãs[24] e islâmicas[25], senão que é nelas que, em paralelo com a sobrevivência da cultura clássica, precariamente se faz a conservação da própria ideia de escola? Como não referir que é nos sciptoria monásticos e nas bibliotecas benedictinas que vão ser recolhidos, copiados, traduzidos, adornados, miniaturizados[26], transformados em relíquia, é certo, mas também dados a ler, a estudar, a comentar[27], os pergaminhos, os códices, os textos que sobreviveram ao colapso da antiguidade clássica; que é justamente em torno dessas bibliotecas que a organização deuma nova cultura escolar vai ser possível[28]? Como não recordar que a emergência da universidade no século XII é acompanhada pelo desenvolvimento das bibliotecas universitárias[29], que estas acompanharam de perto o crescimento e as vicissitudes da história das universidades, nomeadamente, constituindo-se à sua margem no Renascimento[30] e na Idade Moderna[31], quando a emergência da ciência moderna se faz fora da universidade; que, da mesma maneira, o regresso da ciência à universidade no século XIX será acompanhado pelo desenvolvimento das grandes bibliotecas universitárias[32]; que a biblioteca universitária, das origens da universidade ao século XX, é invariavelmente pensada como um elemento decisivo do progresso dos conhecimentos e da formação intelectual e científica superior que a universidade tem por missão essencial promover?[33] Como ignorar que, no século XVIII, mercê de uma política iluminista que vê a escola e biblioteca como dispositivos de libertação e emancipação do homem, se assiste, em paralelo, a importantes esforços de alfabetização e escolarização generalizada das populações e ao aumento considerável do número de bibliotecas públicas; que é então que surgem as primeira bibliotecas municipais[34] e os primeiros "book clubs" ou "reading societies"[35]; que as novas autoridades saídas da revolução francesa tendem de tal modo a identificar a biblioteca pública e a instrução pública e a aproximar a figura do bibliotecário da do professor que, por isso mesmo, determinam que as bibliotecas divulguem junto do público os seus tesouros e se encarreguem mesmo de abrir cursos públicos[36]; que no século XIX, quando se dá a constituição de majestosas bibliotecas de estado[37] e o decisivo alargamento da rede de bibliotecas públicas, surge a prática da “leitura pública“, realizada por funcionários pagos pelo estado - “os leitores do povo“ - que têm por função ler em voz alta com o objectivo político e filantrópico de instruir as classes populares?[38]. E, como não reconhecer que, no século XX, mais do que nunca a escola está na dependência da biblioteca, limite postulado dos saberes nela transmitidos, horizonte unificador da multiplicidade dos saberes virtuais para que apontam - “abrem“ - os conteúdos cognitivos nela ministrados? Mas, não é só em termos históricos que a biblioteca cruza o seu destino com o da escola. Também em termos conceptuais e sistemáticos essa relação se deixa ver naquilo que tem de necessário. Espaço de protecção do saber mas também grande armazém de aprendizagem, espaço ordenado com vista à leitura, ao estudo, à sociabilidade entre gerações, toda a biblioteca tende a ser uma escola. Afirmação esta - a biblioteca é uma escola - que deverá ser entendida de dois modos opostos mas complementares. Por um lado, a escola é condição da biblioteca. Como seria possível a biblioteca sem que a escola tivesse preparado o terreno para a escrita, para a leitura, para a produção da obra que na biblioteca se reúne e conserva? Mas, por outra lado, também a biblioteca é condição da escola. Que se estudaria na escola senão a biblioteca? Estudar o Mundo, como mostrou Galileu, não é reconhecê-lo como “Livro“, decifrar no “Grande Livro“ em que o Mundo é pensado, os caracteres matemáticos em que está escrito?[39]Não será por isso uma injustiça - e sinal de incompreensão gravosa acerca da natureza do ensino - acusar a escola de ensinar um saber “livresco“? Como se o saber que a escola tem por missão ajudar a construir não tivesse no livro, e nele apenas, o seu lugar de permanência e estabilidade, e como se o processo de ensino - e a oralidade que constitui a sua essência enquanto acto, acontecimento, dia-logos - não tivesse necessariamente no livro, e no saber que nele e só nele toma corpo, a sua fonte, a sua matéria, a sua condição? Que o diga Thomas Kuhn cujo olhar atento sobre as condições instituintes da ciência contemporânea lhe permitiram reconhecer de que modo, na ausência de um “Tratado“ - a Física de Aristóteles, o Almageste de Ptolomeu, os Principia de Newton ou a Quimica de Lavoisier - "livros que todos os praticantes num dado campo conheciam intimamente e admiravam" (1979a: 51), obras que permitiram "definir os problemas legítimos e os métodos de investigação para sucessivas gerações de praticantes" (ibid), é o “livro escolar“ que hoje constitui o elemento fundamental do ensino das ciências. Como Kuhn escreve: "talvez que a característica mais extraordinária da educação científica (...) seja a de se fazerem, com os manuais, obras escritas especialmente para estudantes"(1979: 48). E, com a ambiguidade própria de quem compreende as razões mas lamenta as consequências de tal facto, acrescenta: "Até que ele esteja preparado, ou quase preparado para fazer a sua dissertação, o estudante de Química, Física, Astronomia, Geologia ou Biologia, raramente é (...) colocado face aos produtos directos da investigação científica conduzida por outros, isto é, as comunicações profissionais que os cientistas escrevem para os seus colegas. As colecções de textos originais têm (hoje) um papel limitado na educação científica. O estudante de ciências não é encorajado a ler os clássicos da história do seu campo - obras nas quais poderia encontrar outras maneiras de olhar as questões discutidas" (1979: 48-49)[40]. Por outras palavras, se a ciência é estruturalmente dependente do ensino (esse sim “livresco“) praticado hoje pela instituição escolar, apenas no contacto com os clássicos (isto é, os “Livros“) - que só a biblioteca proporciona - a ciência encontra a possibilidade de explorar criativamente outras hipóteses explicativas. Se a escola está na origem do carácter dogmático da ciência (normal), da sua constituição como “tradição“, a biblioteca é fonte da sua (extraordinária) capacidade heurística, da sua condição de processo inesgotável de “inovação“[41]. Mas, se toda a biblioteca tende a ser uma escola, não será legítimo perguntar, em direcção inversa, que sentido faria uma escola sem biblioteca? Não será necessário reconhecer que não é certamente por acaso que todas as escolas têm uma biblioteca? Que, ainda quando a não têm, para ela necessariamente remetem? Que, mesmo quando a biblioteca da escola não é senão um modesto armário, uma sala um pouco maior do que as outras, ela cumpre uma decisiva função educativa? Lugar de estudo livre e silencioso, sala com um diferente regime de permanência e utilização, lugar onde se guarda silêncio, onde se fala a meia voz, ela veícula - enquanto “templo” do saber, por mais modesto que seja - o respeito pelo livro enquanto “obra“, manifestação de uma vontade singular de participação na construção cultural. O aluno olha furtivamente para as estantes, apercebe-se da magnitude do saber, dos múltiplos esforços ao longo dos séculos feitos pelos homens, da variedade dos pontos de vista, da proliferação das áreas de estudo, da fragmentação e contiguidade fundamental das disciplinas do saber. A biblioteca dá-lhe a possibilidade de uma experiência sublime: a de se reconhecer como “anão“ face aos “gigantes“ que o olham a ele, das prateleiras em que se reúnem as suas obras. Daí que, por mais modesta que seja, toda a escola tem a sua biblioteca, biblioteca central da escola, biblioteca da classe, edifício mais ou menos monumental, mais ou menos irradiante no centro do campus universitário, mediateca a partir dos anos setenta, toda a escola procura favorecer a presença dos alunos na biblioteca, orientar o aluno na biblioteca, incentivar a leitura, organizar actividades de pesquisa. Como diz U. Eco, a escola devia ensinar para a biblioteca : "Usar a biblioteca é uma arte subtil. Não basta o professor dizer na escola: “como estão a fazer este trabalho de investigação, vão à biblioteca buscar o livro“. É preciso ensinar os jovens como se usa a biblioteca, como se usa um visor para microfichas, como se usa um catálogo, como se discute com os responsáveis pela biblioteca se não cumprem o seu dever, como se colabora com os responsáveis da biblioteca" (Eco, 1983: 40). Em termos pedagógicos a relação entre a escola e a biblioteca tem sido efectivamente reconhecida como factor capaz de permitir o rejuvenescimento e mesmo a subversão da ordem escolar. Espera-se que a biblioteca escolar seja, não apenas uma grande máquina dos tempos livres, a sede de um clube de leitura ou o complemento da sala de aula[42], mas um “motor“ da transformação escolar, o "cavalo de Tróia" que possa permitir vencer velhos hábitos e rígidas constrições da instituição escolar[43]. E, na verdade, a presença da biblioteca na escola, ou mesmo na sala de aula, transforma as relações entre professores e alunos, altera as relações de ambos ao saber. O “professor“ perde o poder de fonte única do saber, tem que aceitar o desafio, tem que perceber que, na biblioteca, em que também ele é um anão, tem que ensinar sem impôr, orientar sem obrigar. O “aluno“ conquista maior autonomia e liberdade, descobre que pode escolher o seu próprio percurso, que pode seguir por si próprio os corredores e as estantes, cruzar o olhar, “navegar“ por entre a sensualidade dos volumes, atravessar corredores que porventura não percorrerá detalhadamente mas de cuja existência nem sequer suspeitava, que pode mesmo desafiar a autoridade do professor. Os dois, “professor e aluno“ ganham uma insuspeitada oportunidade de aproximação pela sua comum apetência na exploração dos segredos da Biblioteca, na construção de relações de companheirismo na busca do saber. Experiências levadas a cabo em diversos países desde a década de sessenta[44], apontam no sentido de o bibliotecário da escola dever ser um professor, elemento de uma equipe de ensino, que trabalha directamente com grupos de alunos, que estabelece programas e desenvolve actividades capazes de ter um papel equivalente e paralelo ao do ensino oral tradicional[45]. A ideia é a de que a biblioteca se constitua como "laboratório" como diz Cacheux (1981: 213), que possa ser utilizada como lugar de contacto directo e livre do aluno com o saber materializado no livro, no vídeo, cassete, no disco, no filme; como lugar de trabalho “independente“ do aluno.
3. A “alma“ da Escola Biblioteca e Museu são assim duas instituições orientadas por um mesmo desejo: não apenas reunir e coleccionar - conservar toda a memória do mundo - mas organizar, tornar disponíveis, “dar a ver“ todos os registos da actividade humana escrita, todos os episódios da nossa curiosidade, todas as marcas da lenta construção dos conhecimentos, todos os sinais da nossa sobrehumana vontade de saber. É por isso que a biblioteca e o museu não são o depósito de um saber morto. Os livros que habitam as bibliotecas, os animais embalsamados, os exemplares botânicos, as amostras minerais, os restos e produtos culturais que se conservam nos museus, não são cadáveres mas seres adormecidos que a nossa curiosidade pode surpreender, reintegrar no ciclo da vida. Infinitamente disponíveis, feitos de todos os caminhos, habitados por todas as musas, a biblioteca e o museu são dispositivos activos do processo de construção do conhecimento novo. Eles são a “alma“ da Escola, a sua porta aberta sobre o mundo, o seu laboratório comum, o instrumento de trabalho indispensável de alunos e professores, o verdadeiro mestre - aquele que, por si só, supriria todos os outros. Hoje, quando se espera que, em breve trecho, cada escola esteja ligada a redes científicas nacionais e internacionais, que cada escola disponha de computadores multimédia com acesso à Internet; hoje que a Internet se tende a transformar, numa imensa biblioteca universal, tendencialmente capaz de reunir em versão electrónica todos os textos até agora escritos[46], a centralizar num metacatálogo “on line“ todos os catálogos já informatizados de todas as bibliotecas reais ligadas em rede[47]; que, sem livros e sem leitores, sem sala de leitura[48], sem mecanismos de fotocópia ou de micro reprodução, possa permitir o acesso à distância e à velocidade da luz da vertiginosa quantidade de textos que circulam no espaço virtual de todas as culturas; hoje, quando se pressente que as suas “páginas“, pela inclusão de materiais linguísticos não lineares, pelas figuras, gravuras, desenhos, mapas, cartas, fotografias que as ilustram, podem corresponder às salas e vitrinas de um museu imaginário, total e universal, onde cada ser natural e cada artefacto pode ser olhado, aberto, mostrado, das profundidades geológicas da terra, à superfície das flores e das suas corolas, do interior das minas, das vísceras, das máquinas, dos relógios, à exterioridade dos corpos, das vestes, dos trabalhos agrícolas, dos utensílios quotidianos; hoje que a adopção da forma multimedia, lhe permite oferecer, em simultâneo, (hiper)texto, imagens e sons; que pode conter galerias de quadros, filmes, partituras, registos musicais transferidos para suporte electrónico; que, no limite, tende a integrar a cinemateca, a sonoteca, a transformar-se numa gigantesca mediateca ou infoteca, hoje - dizíamos - é a própria Escola que se deixa pensar como uma grande biblioteca e um grande museu.
*** Alexandria é esse momento inaugural, no qual, simbolicamente e para todo o sempre, o destino da Escola se cruza com o da Biblioteca e o do Museu. De Alexandria à Internet é a própria Escola que se aproxima cada vez mais da sua “alma“. Referências
[1]Estamos aqui muito perto de Hannah Arendt (1906-1975) que, num belo texto intitulado The crisis in Education (1957) que se encontra parcialmente traduzido no 2º Caderno de História e Filosofia da Educação intitulado Hannah Arent e Eric Weil. Dois Textos Excêntricos, (cf. Pombo (org), 1995: 3-27) e que posteriormente ampliámos e prefaciámos (cf. Pombo, 1996), pensa a escola como antecâmara do mundo, "instituição que, como diz, se interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo de forma a tornar possível a transição da família para o mundo"(Arendt, 1957: 131). Como procurámos mostrar (cf. Pombo, 1996) é também no conceito de mundo que Hannah Arendt encontra, quer o fundamento da autoridade do educador enquanto responsável pelo mundo, quer o sentido da infância enquanto fase transitória da vida humana em que esses estrangeiros que são as crianças - "recém-chegados ao mundo pelo nascimento" (1957: 125) - devem ser recebidos e respeitados como "seres humanos em processo de devir" (1957: 130). Assim se explica que esta discípula de Heidegger, que, ao contrário do mestre, vê na natalidade e não na morte a condição decisiva da vida humana, faça uma subtil denúncia daquilo a que chama "o século da criança" (1957: 130), essa ideia aparentemente libertadora de que haveria um mundo autónomo da infância capaz de regular-se a si próprio, essa "fraude" (ibid) que consiste em, sob o pretexto de proteger as crianças do mundo dos adultos, as privar da protecção e obscuridade de que necessitam para crescer, as impedir de viver em conjunto com pessoas de todas as idades, as forçar a expôr-se à tirania e à luz de uma existência pública, assim promovendo, não a sua libertação, mas a sua sujeição face às normas do mundo adulto [2]Ensinar é ex-plicar, des-dobrar perante o aluno um discurso demonstrativo (que mostra, que torna presente), que se oferece como encadeamento de razões legitimamente fundadas, discurso ex-plicativo, que ex-pôe e se ex-pôe, que torna notável, que põe em signo, que dá a ver pela palavra, isto é, que ensina, en-si(g)na). (cf. Pombo, 1990: 25-26). [3]Neste sentido amplo de museu, enquanto lugar determinado pela vontade didáctica de “ostensivamente dar a ver o mundo“, também o laboratório escolar aí poderia ser incluído. Sobre a história dos laboratórios escolares em França no século XVIII, das colecções de instrumentos (como as do Collège Royal ou do colégio de Navarra) aos gabinetes de física experimental (como os do Abade Nollet ou do seu discípulo Brisson, “Maitre de Physique des Enfants de France“), de Química e de Historia natural, gabinetes em que se realiza a parte mais significativa da transmissão do conhecimento científico e da preparação dos novos cientistas (Lavoisier, por exemplo, frequentou os cursos do gabinete de Química de Guillaume-François Rouelle), veja-se Taton (1966: 617-712). [4]A ideia remonta a Rousseau cujo sensualismo pedagógico teve como defensores mais significativos, Froebel (1782-1852), Seguin (1812-1880), Montessori (1870-1952) e Decroly (1871-1932). Teorizada por Alain (1868-1951)(vejam-se, em especial os Propos LXI a LXIII) a ideia reaparece em Piaget (1896-1980),articulada agora com a consideração do conceito de operação, não necessariamente manipulatória, na base do desenvolvimento cognitivo. [5]Como mostra Michelet (1981), a nível da escola primária e secundária, não se trata de um verdadeiro equipamento científico que só a universidade requer, mas de material simplificado, esquemático, por vezes susceptível de decomposição analítica, muitas vezes improvisado. A escola activa tenderá a transformar o “material didáctico“ construído pelo adulto em “material pedagógico“, isto é, em material estruturado de molde a poder ser, não apenas olhado, mas sobretudo manipulado e mesmo construído pelo aluno. Valerá talvez a pena referir a constituição por Jules Ferry em 1879 de um "Museu pedagógico" em Paris (a partir de 1980, 'Museu Nacional de Educação' em Rouen) onde se reúne todo o tipo de materiais didácticos, mobiliário escolar, planos de escolas, trabalhos de alunos, manuais escolares, documentos fotográficos, etc. [6]Referimo-nos ao célebre Orbis sensualium pictus (1658), primeiro manual escolar ilustrado da história da educação, continuamente traduzido durante séculos. [7]Aqui reside, em nossa opinião, o ponto decisivo da todo o ensino."Do latim (in) signare, pertencem à família de "ensinar", palavras como "assinalar", "designar", "consignar", "significar", insígnia, "insigne". En-signar é então, pôr em signo, simultaneamente, meter dentro do signo (in signo) e pôr fora pelo signo (dizer), ex - pôr, ex - plicar, des-dobrar o que estava dobrado, forçando a língua àquilo que nela está contido, explorando aquilo que ela torna possível, aquilo que só por ela se des-cobre. É escolher as palavras necessárias, aquelas que tornam possível uma distinção, é encontrar a marca distintiva (insígnia) de uma ideia, tornar notável, notório (ínsigne). Ensinar é fazer conhecer pela palavra, mostrar, iluminar para que o outro veja, "dar a ver". É justamente porque ensinar é "dar a ver" que, de forma complementar, o acto de aprender / compreender (seja ele mudança radical ou passagem insensível) é acompanhado de um movimento de abertura, da agitação de um despertar. Há no acto de aprendizagem / compreensão qualquer coisa que é da ordem de uma vertiginosa entrada de luz no reino das sombras. Na criança - muito mais livre que o adulto, menos convencional - desencadeia-se um movimento admirável no momento preciso da compreensão. Como quem abre uma janela sob uma manhã muito clara, o aluno fica agitado, ofegante, contagiado perante o prazer superior de ter visto" (Pombo, 1995: 24). Como diz Alain (1932: 150), quando compreeende e porque compreende, o aluno "levanta-se, desenha a ideia no ar, com grandes gestos, ri com gosto". Para uma apresentação desenvolvida deste conceito de ensino, cf. ainda Pombo (1994) e (1990a). [8]Reportamo-nos aqui a um conjunto de categorias próprias da filosofia da cultura de McLuhan (1911-1980). Categorias que, na sua aplicação à escola, permitem perceber por que razão a escola - ela também um meio de comunicação, efeito e simultaneamente causa da constituição racional / discursiva de saberes transmissíveis - não pode fazer parte da cultura oral; por que razão a escola faz o seu aparecimento em paralelo com a emergência da cultura escrita, por que razão ela é uma das mais significativas realizações da cultura guttenberguiana e porque é que a cultura eletrónica deu já origem à escola paralela e vai exigir a morte, ou pelo menos a metamorfose profunda, da instituição escolar tradicional. Para maiores desenvolvimentos, veja-se um dos anteriores Cadernos de História e Filosofia da Educação intitulado McLuhan. A Escola e os Media, no qual se oferece uma antologia dos mais significativos textos de McLuhan sobre a escola, nomeadamente, a tradução do capítulo final de Understanding Media. The Extensions of Man (1964), intitulado "Automation. Learning a Living" e um conjunto de excertos da obra emblemática The Gutenberg Galaxy: The making of Typographic Man (1962) (cf. Pombo (org), 1994: 10-39 e 40-73, respectivamente). [9]Cf. Pombo, A proximidade do ensino da filosofia à própria essência do ensino (1995). [10]Numa obra clássica sobre o Liceu de Aristóteles, seu carácter institucional, organização, funcionamento, transformações e desaparecimento (obra de qual se oferece uma tradução parcial num dos anteriores Cadernos de História e Filosofia da Educação intitulado A “invenção” da Escola na Grécia (cf. Pombo (org), 1996: 35-81), Patrick (1972) estuda com detalhe a clivagem entre a orientação dialéctica da Academia de Platão e a orientação mais instrutiva e empírica que Aristóteles imprimiu à sua escola e que o seu sucessor, Teofrasto, reforçou. Uma tal orientação traduziu-se no esforço desenvolvido por ambos no sentido de dotar o Liceu de elementos informativos empíricos, tais como colecções de livros, amostras zoológicas, botânicas e minerais, cartas, diagramas, pinturas e todo o tipo de informações recolhidas junto de pescadores, políticos, marinheiros, etc. [11]Sobre a colecção de Vallisnieri, dotada pelo seu filho em 1733 à universidade de Pádua, e a sua vocação didáctica, veja-se Pomian (1987: 123-125 e 297). [12]Na verdade, a partir da segunda metade do século XVIII, a figura do “curioso“ é substituída pela do “naturalista“, não já um “amador“ mas alguém que, como escreve Pomian, "consagra o essencial do seu tempo a coleccionar as produções naturais, a conservá-las, a estudá-las e descrevê-las, actividades estas que se integram doravante num papel social reconhecido e respeitado" (1987: 248), sejam eles botânicos como Francois Séguier (1703-1784) ou Antonio Turra (1730-1796), zoólogos como Guiseppe Olivi (1769-1796) ou Stefano Chiereghin (1745-1820), ou geólogos como Giovanni Arduino (1714-1795) ou Alberto Fortis (1741-1803). O objectivo é agora, não tanto reunir seres e objectos exóticos e longínquos mas dar conta da grande variedade das coisas próximas, inventariar os recursos da região, “dar a ver“ a variedade infinita das espécies. Como mostra Pomian (1987: 249-252), é justamente porque o olhar se volta para coisas que dizem respeito a todos e todos podem ver, que as ciências da natureza vão divulgar-se junto do público e conquistar um lugar mundano. O museu remete então, não já para os “curiosos“ mas para os “estudiosos“, aqueles que aprendem a subordinar os seus interesses aos objectivos cognitivos de uma área de investigação, que querem observar de perto, comparar, analisar as amostras princeps de uma determinada área, que elaboram sistemas de classificação cada vez mais elaborados, capazes de subsumir a variedade visível na unidade invisível de uma lei ou de uma espécie. Como escreve Pomian (1987: 311), "as colecções particulares estão, a partir do século XV, entre os lugares mais importantes daqueles em que se originaram as inovações culturais e é provável que, em muitos países, senão em todos, assim tenham permanecido até hoje". [13]Apenas um exemplo recolhido na obra de Taton a que já acima fizermos referência: o “Musée de Monsieur" fundado em 1781 por Pilar de Rozier, mais tarde, transformado no “Lycée de Monsieur“, no qual se davam cursos de física, frequentados por centenas de interessados (cf. Taton, 1966: 634). Também Pomian sublinha a proximidade entre o museu e a escola mostrando de que modo, nos séculos XVI, XVII e XVIII, muitos museus se formam em estabelecimentos de ensino, nomeadamente em universidades, quer por iniciativa dos seus professores, quer por oferta ou por legado em testamento de particulares (cf. Pomian, 1987: 297-300). Cf. tb. Raichvarg e Jacques (1982: 149-158). [14]Fundado em 1753 por John e Andrew van Rymsdyk (?-1767, ?-1770, respectivamente) a partir da reunião de uma série de colecções privadas, o Museum Britannicum distinguiu-se desde o início pelo esforço posto pelo estado no enriquecimento das suas colecções. [15]Fundado por Jean Perrin em 1937, o “Palais de la Découverte“ constituiu de facto a primeira grande experiência de um museu interactivo. Na época da pedagogia activa, o museu deixa de ser um lugar onde se vê para passar a ser um lugar onde se pode observar, tocar, manipular, experimentar (sobre o Palais de la Découverte, cf. Raichvarg e Jacques (1982: 202-204). Nos anos sessenta, Frank Oppenheimer abre em S. Francisco o “Exploratorium“ onde é possível, como diz Paul Caro, "aprender alguns princípios básicos da Física por meio de uma experimentação pessoal com a vista, o olfacto, o gosto, o tacto, o ouvido, o sentido do equilíbrio" (Caro, 1993: 41). O carácter pedagógico deste tipo de museus é de tal modo notório, as suas funções educativas de tal modo óbvias que, como refere Chagas (1993: 52), há mesmo quem, do lado da museologia, se inquiete quanto ao perigo de o museu "ser reduzido a uma espécie de sala de aula de grandes dimensões ou a um livro de texto tridimensional". [16]Paulo Caro (1993) analisa de forma sugestiva a natureza espectacular deste tipo de museus e as suas funções junto da opinião pública: fundamentalmente, eles visariam mão já mostrar ou ensinar mas “convencer“ da grandiosidade e utilidade da ciência e da indústria contemporâneas (cf. 1993: 41-42). Veja-se tb. o capítulo "A ciência em exposição" de Raichvarg e Jacques (1982: 205-214). [17]Caberia aqui fazer uma breve referência à utilização educativa do museu como meio informal de instrução e ensino. Limitar-nos-emos porém a remeter para três estudos recentes de investigadores portugueses: Chagas (1993) e Lima de Faria (1995). Para uma apresentação dos objectivos pedagógicos do“Museu Nacional de História Natural“ que funciona como estabelecimento anexo à Faculdade de Ciências de Lisboa, cf. Galopim de Carvalho (1993). [18]Lugar de comércio com as Musas, de trabalho, de investigação e de descoberta, já nas confrarias Pitagoricas o culto das Musas simbolizava o estudo e a investigação científica (cf. Cornford (1993). [19]Como adiante se verá, trata-se efectivamente de uma instituição científica de características inovadoras. Congregação de sábios de diversas áreas, dotada pelo poder real de um fundo monetário, o museu era administrado por um sacerdote nomeado pelo rei e que se pensa ter tido unicamente poderes administrativos (manutenção, pagamentos de subsídios, conservação das instalações, colecções, etc). Como escreve Daumas (1956: 61) "os seus membros, em número de doze ou catorze à morte de Ptolomeu Sóter (nunca devem ter sido mais de cinquenta) trabalhavam livremente, sem que no entanto se deva excluir a possibilidade de estarem sujeitos a uma certa vigilância por parte do governo e dos sacerdotes, ou que lhes fossem distribuídas determinadas tarefas. Uns ocupavam-se da Biblioteca, outros do Observatório, instrumentos, Teatro Anatómico, colecções zoológicas; outros ainda, ensinavam". [20]Para além da biblioteca privada de Pisístrato e da biblioteca escolar de Aristóteles, a primeira biblioteca pública de Atenas deve ter sido a que Licurgo fundou cerca de 330 ac. com o objectivo de nela conservar os textos dos poetas trágicos. No século II, refira-se a biblioteca de Pérgamo, fundada por Euménio II (197-158 ac), no templo de Minerva (cf. Canfora, 1986: 46-51). [21]Por seu lado, Teofrasto legou a biblioteca de Aristóteles a Neleu de Scepis. Os herdeiros deste tê-la-ão enterrado como forma de a proteger dos reis de Pérgamo. Adquirida por Apeliconte de Teios, primeiro editor de Aristóteles, foi posteriormente transladada para Roma por Sila, aquando da conquista da Grécia no ano 80 ac. [22]Para trás ficam as bibliotecas mesopotâmicas em placas de argila de cerca de 2.000 a.c. (é o caso da biblioteca de Ugarit e, posteriormente, cerca do século VII ac, a de Assurbanípal em Ninive de que o Museu Britânico conserva ainda cerca de 20.000 placas) e as bibliotecas em papiro do Egipto, Karnak, Denderah e Edfou. [23]Augusto, filho adoptivo de Júlio César, retomou o projecto bibliotecário de seu pai (a quem se fica a dever o objectivo pioneiro de abrir uma biblioteca pública em Roma), fundou efectivamente três grandes biblioteca em Roma: a Octaviana, perto do Pórtico de Octávio, a Palatina, no templo de Apolo Palatino, e uma outra no Campo de Marte. O movimento de constituição de bibliotecas imperiais intensifica-se nos anos subsequentes (por exemplo, Trajano funda a biblioteca Ulpiana) de tal modo que, no tempo de Adriano, se contam 29 bibliotecas públicas só em Roma. Todas estas bibliotecas, constituídas por edifícios mais ou menos sumptuosos, com vastos armazéns e salas de leitura, eram dirigidas por livreiros-editores e apoiadas por numerosos copistas (cf. Holtz (1991). [24]Inicialmente reduzida a um simples armarium ou dispersa pelos vários lugares da leitura (por exemplo, as vidas de santos são guardadas em geral no refeitório), a biblioteca monástica ocupa um lugar cada vez mais diferenciado e importante na vida da comunidade religiosa. Na baixa Idade Média, os mais ricos fundos monásticos são os Saint-Gall, Corbia, Bobbio e Fulda. Com os novos centros intelectuais do renascimento carolíngeo surgirão importantes bibliotecas em Tours e em Aix-La-Chapelle. Quanto ao Império Bizantino, refira-se a Biblioteca de Bizâncio fundada por Constantino no século IV. Sobre as bibliotecas da Idade Média, cf. Nebbiai-Dalla Guarda (1989: 373-378). [25]Nos reinos islâmicos do Oriente e do Magreb, as bibliotecas são privadas. Pertença dos grandes senhores, elas são em geral abertas aos sábios que aí realizam trabalhos de tradução, compilação e comentário. É o caso da biblioteca constituída pelo sultão Nuh ibn-Mansour em Boukhara frequentada por Avicena. Para uma sugestiva informação sobre o lugar da biblioteca na cultura árabe, cf. Micheau (1991). [26]Práticas usadas já no Egipto e no mundo helénico e romano, a ilustração e a miniatura, grandemente desenvolvidas nos centos de cultura bizantinos e mozárabes da península Ibérica, são comuns no mundo cristão a partir do século VIII. Para uma informação detalhada sobre a iluminura na Idade Média, suas escolas, técnicas, estilos e períodos fundamentais, cf. Millares Carlo (1971: 73-86). [27]Significativa a este propósito é a designação medieval de “scholies“ para os comentários escolares que tomam a forma de anotações marginais ao texto. [28]Significativo é o facto de Cassiodoro (490-580/3), ter começado por projectar constituir uma escola cristã, à moda do Museu de Alexandria. É face às dificuldades políticas em constituir essa escola que, mais tarde, cerca de 553, fundará a primeira escola no contexto de uma comunidade monástica, o célebre Vivarium no sul da Itália, escola na qual, seguindo as orientações de St. Agostinho, se dá início ao programa que determinará toda a cultura escolar medieval de atribuição de um lugar de relevo na organização monacal à leitura, à cópia e ao comentário.Sobre a emergência da cultura escolar na Idade Média e o papel que a biblioteca aí desempenha, cf. Riché (1968). [29]A biblioteca da Sorbonne contava com 1017 volumes em 1290. Aquando de um inventário redigido em 1338, só a libraria parva da Sorbonne (parte da biblioteca onde se guardavam os livros repetidos, que podiam ser por isso emprestados, e os de menor utilização) conta com 1090 volumes. É a partir das bibliotecas universitárias que se generaliza a prática de, como forma de evitar o roubo dos livros pelos estudantes e facilitar a sua communem sociorum utilitatem, se prenderem os livros com cadeias às mesas da biblioteca. Cf. Nebbiai-Dalla Guarda (1989: 378 e segs.) [30]As Bibliotecas do Renascimento são na sua maioria fundadas por iniciativa de príncipes, condottieri, papas e reis. É o caso, em Itália, da Biblioteca Laurenciana de San Marco, fundada em Florença por Cosimo de Médices em 1444 e continuada mais tarde pelo filho e pelo seu neto, Lourenço o Magnífico, ou da Biblioteca do Vaticano, instituída pelo Papa Nicolau V em bula pontifícia de 1475. Em França, Francisco I, reunindo diversas bibliotecas dos seus antepassados, dá os primeiros passos para a constituição de uma biblioteca nacional, nomeadamente pela criação, em 1537, da obrigatoriedade do depósito legal. Para maiores desenvolvimentos sobre as bibliotecas do renascimento, cf. Masson e Pallier, 1986: 20 e segs). [31]Também no século XVII, os principais promotores de bibliotecas são, não o poder real, não a Igreja, não a Universidade mas mecenas particulares.É o caso da Bodliana fundada em Oxford em 1602 por Thomas Bodley, da Ambrosiana em Milão fundada por Federico Borromini e da Mazarina em Paris, fundada em 1647 pelo Cardeal Mazarin (cf. Masson e Pallier, 1986: 23-25). [32]O modelo serão então as bibliotecas universitárias alemãs, fundamentalmente, Halle (célebre pela libertas philosophandi de que Christian Wolf (1679-1754) foi inspirador), Gotingen (criada em 1734, aí se desenvolvem novos métodos de investigação e trabalho cooperativo entre professores e alunos apoiados na existência de uma biblioteca excepcionalmente rica) e por fim Berlim, episódio glorioso da história das universidades, como diz Gusdorf (1964: 66) em cuja fundação participaram, para lá de Humboldt, nomes como os de Schelling, Fichte, Hegel e Schleiermacher. É assim que, por exemplo, em França, é oficialmente enviada à Alemanha uma delegação dirigida por Jules Chantepie com o objectivo de estudar as bibliotecas universitárias e, de regresso, organizar as bibliotecas universitárias francêsas (cf. Beaulieux, 1939: 5). [33]Assim se explica talvez que, na gíria académica, a universidade seja por vezes definida como a instituição dos “três B“: “Briks, books and brains“. [34]Fazendo reverter para o estado os depósitos literários pertencentes ao clero e a muitas comunidades religiosas, os poderes revolucinários em França irão confiar, primeiro às escolas distritais, depois às cidades, a imensa massa de documentos reunidos. Caso significativo é também o da Biblioteca de Grenoble constituída com base numa subscrição pública e aberta em 1772 a todos os cidadãos, de todas as condições (cf. Dacier, 1939). [35]Este tipo de bibliotecas surge em Inglaterra onde se contam mais de 100 no século XVIII, dispersas por todo o país. Nos EUA, refira-se a "subscription library", fundada em 1727 por Benjamim Franklin. [36]É assim que, por exemplo, como refere Balayé (1991: 91), uma lei de 30 de Março de 1795 cria a “Escola de Línguas Orientais“ na Biblioteca Nacional de França. [37]À biblioteca é dado então o respeito e o luxo de uma igreja ou de um palácio. Em Inglaterra, é constituída a grande biblioteca do British Museum a partir de 1823. É aí que, pela primeira vez, se estabelecerá a diferença entre o armazém dos livros e a sala de leitura mandada executar por Antonio Panizzi entre 1854 e 1857. Em França, a Bibliothèque National, herdeira da biblioteca de Colbert e transferida em 1734 para um edifício próprio em Paris, inaugurará a grande sala de leitura em 1868. Nos EUA, a Library of Congress, fundada em 1810 a partir da biblioteca pessoal de Thomas Jefferson, e destinada de início a ser a biblioteca do parlamento, converteu-se posteriormente na Biblioteca Nacional dos EUA e sede do centro internacional de Copyright. Contava em 1959 com 12 milhões de volumes (livros e folhetos) e 38 milhões de documentos (cf. Millares Carlo, 1971: 280-286). [38]O cargo de “leitores do povo“ foi instituído em França por decreto de 4 de Maio de 1848. (cf. Masson e Pallier, 1986: 52). A título de exemplo da proximidade então estabelecida entre escola e biblioteca, refira-se ainda a obra de Henri Philippe de Limiers (?- 1725), Idée Générale des Études (1713), obra que, simultaneamente, constitui guia de leitura para jovens nobres e fornece listas de livros que uma biblioteca devia possuir. [39]Já na Idade Média a Natureza era um “Livro“. Se os Evangelhos eram o “Livro da Revelação“, a Natureza era o “Livro da Criação“. Foi esse Livro, que Galileu descobriu estar escrito em linguagem matemática, que os experimentalistas renascentistas tiveram a coragem de querer ler directamente, pelo exercício conjugado da sua razão e dos seus sentidos. O que é novo é que, ao contrário da Idade Média, que vê o Livro da Natureza sobretudo como objecto de “contemplação”, agora, a ciência moderna vai olhar para ele como objecto de investigação. Palavra esta - “investigação“ - que, afinal, continua a transportar consigo a marca daquilo mesmo que a Idade Média nele procurava encontrar: “vestígios“ do criador. [40]A posição de Kuhn relativamente ao papel dos manuais no ensino das ciências, embora surja com particular clareza no ensaio de que retirámos as passagens acima transcritas (1979), encontra já em 1962, em The Structure of Scientific Revolutions, a sua formulação decisiva. Cf. sobretudo (1962: em especial cap. XIII). [41]Referimo-nos obviamente ao célebre ensaio de KuhnThe Essential Tension: Tradition and Inovation in Scientific Research, in Kuhn (1977: 225-239) onde também se encontrará um estudo relativo aos “erros“ que, por meio do manual, são constituídos e propagados. [42]Sobre esta perspectiva da biblioteca escolar, cf. Matos e Correia (1991). [43]A expressão é de Chartier (1991: 132): "que a biblioteca seja o cavalo de Tróia que, sob uma aparência inocente, instale no coração da fortaleza escolar, a subversão dos seus usos e costumes (...) conta-se com ela para por em causa a sacrossanta regra escolar das três unidades (um professor, um grupo de alunos, uma classe). Sobre o tema da biblioteca escolar, seu significado e exigências da sua instalação, vejam-se ainda Laverne e Beilke (1979), Delannoy (1983) e Baró e Maná (1994). [44]Refiram-se, por exemplo, em França, o programa "La Joie par les livres" levado a cabo em Clamar a partir de 1965 e as actividades da “Association pour le Développement des activités culturelles dans les establissements scolaires“ desenvolvidas a partir de 1976; nos EUA, refiram-se o “Knapp school libraries project“, desenvolvido de 1963 a 1968 e o “Library manpower project“, entre 1968 e 1974 (cf. Chartier (1991: 130) e Cacheux (1981: 212-213)). [45]Entre nós, refira-se o recente lançamento pelos ministérios da Educação e da Cultura do programa "Rede de Bibliotecas Escolares" mediante o qual se pretende criar bibliotecas actualizadas em todas as escolas portuguesas. Essas bibliotecas são concebidas como "centros de recursos multimédia de livre acesso, que englobem um conjunto significativo de livros, programas informáticos, periódicos, registos vídeo e audio, diapositivos, CD-Rom, etc, dispondo de espaços e equipamentos onde são recolhidos e disponibilizados todos os tipos de documentos"(Alçada, 1996: 18). Este projecto prevê que as bibliotecas escolares se constituam como núcleos de organização pedagógica capazes de articular a sua acção com o projecto educativo de cada escola, a constituição de equipas educativas próprias, a colaboração com as Bibliotecas Municipais, nomeadamente, através da dinamização do SABE, “Serviço de Apoio às Bibliotecas Escolares“ (cf. ibid). [46]E, como se sabe, quer “on line“, quer em CD-ROM, existem já milhões de páginas disponíveis, tanto de literatura clássica (por exemplo, o Thesaurus Linguae Graecae comporta cerca de 3.000 autores, 8400 obras e 61 milhões de palavras da literatura grega antiga de Homero ao século VII a.c.) como moderna (por exemplo, as obras completas de Shakespeare estão disponíveis em CD-ROM desde 1990). É na constatação da inevitabilidade deste facto que tem origem a tese segundo a qual, uma vez realizada a passagem do texto ao seu suporte electrónico, deixa de ser necessário manter o suporte tradicional do texto em papel. Contrariamente, é porém possível pensar-se que, assim como as bibliotecas de papel substituíram as de pergaminho que, por sua vez, haviam substituído com grandes vantagens as de papiro e de tábuas de argila, a biblioteca continuará a ter como função conservar os textos nas diferentes modalidades dos seus suportes. [47]Como escreve Villaverde Cabral (1992: 172), "as bibliotecas reais dos nossos dias estão a procurar soluções concretas que lhes permitam parecer-se, cada vez mais, com os nós dessa rede". [48]Fica por saber quais os efeitos na prática da leitura decorrentes das condições criadas pelas novas tecnologias, nomeadamente na biblioteca eletrónica. Se o livro e a sala de leitura tradicional da biblioteca convidam à leitura vagarosa e reflexiva, leitura essa que, em geral, é mesmo acompanhada da escrita (transcripções, apontamentos, notas, comentários à margem do texto lido), a leitura do texto electrónico no ecrã de um terminal de computador, se por um lado pode parecer condenada, pela própria velocidade do seu processamento, a desencadear uma atitude de leitura mais passiva e contemplativa, por outro lado, na medida em que abre a possibilidade de alteração interactiva do texto, de inscripção no texto de novos enunciados, permite um grau de leitura criativa até aqui insuspeitada. Ler um texto poderá passar a ser sinónimo de transformá-lo, revolvê-lo, deformá-lo, como diria Foucault (1973: 15). |
Olga Pombo: opombo@fc.ul.pt
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