Os Muitos Males na Universidade
Portuguesa
Com ligeiras alterações, este texto, que resultou de uma entrevista que os
estudantes da minha Faculdade me solicitaram e a que eu acedi com gosto, foi publicado na revista
Phallus, Jornal dos Estudantes da Faculdade de Psicologia e de
Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.
Vou dizer mais coisas negativas que positivas.
Contudo, quando estamos interessados em transformar as instituições, este modo
de proceder pode ter mais virtualidades do que parece à primeira vista. Devo
confessar, porém, que pode ser minha a responsabilidade de ver facilmente coisas
negativas à minha volta. Deste ponto de vista, a Faculdade onde
trabalho há mais de vinte anos não tem sido (penso que ainda não é) o local
ideal para atenuar este meu pendor crítico. Antes pelo contrário! De
qualquer modo, depois de referir alguns dos males que afligem a Universidade
Portuguesa e que a impedem (e impedirão) de ser uma Universidade de referência
em termos internacionais, também hei-de mencionar alguns aspectos positivos.
Inútil dizer que estas minhas opiniões são convicções pessoais, convicções
que muitos colegas e estudantes podem não partilhar. No entanto, quanto mais errado
estiver nas minhas opiniões, tanto melhor. Melhor para a Universidade
Portuguesa, para os seus professores e estudantes, e melhor para todos os que nela
trabalham. Por justiça, devo também dizer que, felizmente, há excepções
relativamente a cada um dos aspectos negativos que mencionarei. Mas é provável
que não sejam muitas e, portanto, que só sirvam para confirmar a regra. Estou
também convencido que não será de tais excepções que virão grandes
discordâncias em relação ao meu olhar crítico.
1.
O maior inimigo da Universidade
Portuguesa chama-se endogamia. Endogamia significa pouca transparência e
clareza. O termo utilizado por diversos avaliadores internacionais é o de inbreeding, um termo que,
literalmente, significa consanguinidade. Quer dizer, protecção dos nossos
apaniguados e amigos, mesmo que à custa dos direitos legítimos de outros. De
forma não eufemista, endogamia significa corrupção. A palavra é dura, mas deve
ser uma das mais apropriadas para a realidade do inbreeding que grassa
na Universidade Portuguesa. Como disse, quando a vêm avaliar, os peritos estrangeiros
sempre frisam esta triste realidade. Não deve ser, portanto, uma
invenção minha.
Há muitos anos que estou na
vida universitária e tenho constatado que nela há, de facto, muita endogamia.
Os estudantes, porventura, não se apercebem muito dela. É uma questão de olhar.
De olhar para a progressão dos professores na sua carreira; para os critérios
em que ela se baseia; para a constituição de diversos júris de provas e
concursos; e para muitas outras coisas. Reparem nesta pequena/grande diferença.
Nas Universidades dos EUA e do Canadá, por exemplo, para ocupar um lugar
permanente na Universidade, um professor é, em última instância, avaliado
por uma comissão de que, além do dean, não faz parte nenhum professor do
Departamento ou Faculdade a que a pessoa em avaliação pertence. A ideia é fazer
com que a endogamia fique de fora, ou seja controlada, pelo menos. E a ideia é também
mostrar a quem
não é da mesma área ou departamento se o currículo em apreciação tem ou não algo de
cientificamte interessante, algo que pode ser apreendido mesmo por
quem está fora da.área, departamento ou Faculadade.
Na minha Faculdade, por
exemplo, há diversos concursos de cujos júris só fazem parte os pares da
mesma área: da Psicologia ou das Ciências da Educação. Assim, os membros dos
júris que podiam ser
mais independentes não contam. Fica tudo mais em família! Se
essa não é a intenção, esse é o seu resultado mais provável. Mas há outros
exemplos de endogamia, exemplos que outros colegas de outras Faculdades não
teriam certamente dificuldade em recordar. Um dia, um amigo meu foi
arguente de uma tese de doutoramento. Como considerou a tese apenas razoável, foi
isso que disse na sua arguição. Em nome da endogamia, era suposto que devia ter
dito que se tratava de um trabalho brilhante! Como não disse, porque a tese
não era, de facto, brilhante, o doutorando em causa deixou de lhe falar. Esse
meu amigo nunca mais foi (nem será) convidado para quaisquer outros júris por
essa Faculdade, e esse doutorando
recebeu certamente a aprovação do seu procedimento por parte de alguns
professores da sua Faculdade e deve ter tido uma progressão rápida na sua
carreia académica (que não científica)! Aberrantes que sejam, existem diversas
situações semelhantes a esta na Universidade Portuguesa. São os professores
Portugueses mais dados à endogamia que os seus colegas de outras Universidades?
Não certamente! O problema tem a ver com aspectos institucionais; com o sistema, como é vulgar dizer-se. Uma
coisa é certa. Enquanto a Universidade Portuguesa não resolver o problema da
endogamia, será sempre uma Universidade sem prestígio, de segunda classe, ou
ainda pior.
2.
O inimigo número dois da Universidade Portuguesa
é a falta de mobilidade dos seus docentes. Em termos metafóricos, os
seus professores nascem, crescem e morrem na mesma casa. É na mesma Faculdade
que, em geral, fazem as suas licenciaturas, mestrados, doutoramentos,
agregações, concursos dos mais diversos tipos e é também aí que dão aulas toda a sua vida. Nada
melhor do que este sistema para a formação de grupos de interesse, outros que
não o científico.Não
digo que os professores deviam ir todos, nos seus anos de licença sabática ou
em outros momentos da sua carreira, para Universidades cientificamente prestigiadas
que existem por esse mundo fora. Pelo
menos, que fossem para Braga, Coimbra, Covilhã, Évora, Faro, Porto, para referir
apenas alguns exemplos. Não seria salutar que os estudantes de uma dada
Faculdade pudessem ter sessões orientadas por professores que vêm de fora,
mesmo que seja de uma Faculdade congénere, mas de uma outra localidade do seu
país? Quantos estudantes das licenciaturas da Universidade Portuguesa já
viveram situações destas?
Também existe pouca
mobilidade a nível dos estudantes. Conhece o leitor alguns estudantes das nossas Faculdade que,
por exemplo, tenham feito uma qualquer Disciplina nas Faculdades que não distam
das suas
mais do que 100, 200 ou 300 metros? E quanto seria cientificamente interessante
que os estudantes de Psicologia (ou outra licenciatura) frequentassem, por exemplo,
aulas de uma Cadeira dos Cursos de Direito, Filosofia, ou Matemática? Ironicamente, todos falamos agora da Declaração de Bolonha e da
mobilidade a nível de países. Enquanto não existir mobilidade interna, a
externa será muito mais figurativa do que operativa. Acho que a Universidade
Portuguesa não está, de facto, muito interessada na mobilidade de professores e
estudantes. Faz o discurso da mobilidade, como faz o da qualidade, mas não o
assume. Por exemplo, os concursos para os chamados lugares do quadro (professor
associado e professor catedrático) são nacionais em termos de legislação. Quer
dizer, podem concorrer os professores da Faculdade onde abre um lugar para ser
preenchido e os professores de outras Faculdades que estejam em condições
legais de o fazer. Só que isto quase nunca acontece. Quem concorre, em geral,
são só os da “casa”. Se o fizerem, os “outros”, sobretudo os que não
concorrem com a aprovação tácita do poder académico aí instalado, arriscam-se a
ser tomados por intrusos e a estragar o que já estava, por vezes, mais ou menos
arranjado. Uma vergonha! Inútil dizer
que quando se abre um concurso já se sabe, muitas vezes, quem vai e não vai
ficar a ocupá-lo. E nem sempre em nome de critérios de mérito científico.
Conheço casos de professores que nem sequer concorreram a certos concursos,
porque, tendo embora mérito científico para serem seleccionados, perceberam que
seriam preteridos em função de outros com muito menor mérito. A não abertura de concursos
para os quais há vagas em aberto fala também em favor desta triste realidade: não
se querer, em última instância, que haja mobilidade (e diversidade) no seio da
Universidade. Toda a gente sabe, mas a realidade mantém-se. E viva a
mobilidade!
3.
O
terceiro inimigo da Universidade em Portugal tem a ver com a (não) famosa pirâmide.
Professores catedráticos são muito poucos; para o lugar de associados, já
há mais algumas vagas; professores auxiliares são em muito maior número do que
os associados e, claro, do que os catedráticos. Se a promoção na carreira fosse
baseada em critérios de mérito científico e de qualidade, em princípio, quanto
mais elevada fosse a competência, maior seria a posição de um professor.
Maior competência significaria mais prestígio para a Faculdade, melhor ensino
para os estudantes e maior contribuição para o progresso científico. Uma
Universidade sem professores muito competentes, por melhores pedagogos que se
diga serem, é uma fraude. Sendo assim, deveria haver muitos professores no topo da pirâmide, porque
seriam esses, supostamente, os melhores professores e os que mais falta fariam
(e fazem) à Universidade. A pirâmide, portanto, deveria estar invertida, como
acontece, aliás, em muitas Universidade prestigiadas em diversos países. Não
quer dizer que os professores devessem ser todos promovidos, até porque
ser professor na Universidade não é um direito fundamental! É sobretudo uma opção e uma enorme responsabilidade. Mas
seriam certamente promovidos todos os
que tivessem mérito. Não devia, aliás, haver um número restrito de vagas para
tais posições. Devia ser o mérito, sobretudo o científico, que determinaria a
vaga, não o oposto. Como isto não ocorre, em geral, estamos perante mais uma
originalidade da Universidade Portuguesa, embora ela exista também em outros
países. Em geral, nos que são menos desenvolvidos e que assim continuam, mesmo
que o não queiram, a perder oportunidades de desenvolvimento.
A estrutura de pirâmide na
Universidade Portuguesa está ao arrepio do que é, hoje, fazer investigação. É uma estrutura mais típica de organizações
burocráticas que da actividade de comunidades científicas. O argumento para a
existência de pirâmides achatadas na Universidade Portuguesa é o de que não há
dinheiro.... É falso! Este é um problema político, muito mais do que
financeiro. Além de permitirem economizar dinheiro, os quadros servem, não
raras vezes, para seleccionar as mentes menos críticas e mais conformistas, o
que está nos antípodas de uma sociedade progressista e interessada no bem
comum. Numa palavra, ser competente na Universidade Portuguesa é algo que não é estimulado. Às vezes, ela procede mesmo como se a competência de alguns
pudesse pôr em causa o seu estatuto de instituição vetusta, apenas mediana, e
cheia de muitos Professores Doutores.
4.
Outro mal da Universidade Portuguesa é
seu o carácter verboso, escolástico e burocrático. Quero
deixar claro, como já disse, que existem excepções em todas as Faculdades, ou
seja, que eu estou a falar em termos gerais. Basta ver o número de páginas das
dissertações (de mestrado e doutoramento) realizadas. Teses de mestrado
com 300 ou mais páginas abundam. Doutoramentos com 500 páginas ou mais também
não faltam. Embora haja excepções notáveis, de tais longas teses, o destino
principal é, em geral, ficarem arquivadas no pó das bibliotecas. Ou serem
citadas apenas localmente e quando tal é conveniente! São, em geral, palavras a
mais e ideias e problemas a menos. Em geral, essas teses são mais um testemunho de
capacidade de gestão
do saber do que de produção de conhecimento novo. E uma Universidade que não produz
conhecimento nem sequer merece esse nome.
O que nós, professores, geralmente
fazemos, é ensinar apenas o que os outros pensaram e investigaram, o que é uma tristeza. Veja, por exemplo, a lista de referências nos livros ou artigos que lê, mesmo
que sejam em Português! São maioriatariamente de autores estrangeiros. De
autores Portugueses, são poucas e, mesmo assim, ditadas muitas vezes mais por
razões de conveniência que de qualidade científica. Isto significa que também
devíamos ensinar aos nossos estudantes o que nós pensamos e investigamos. Às vezes, digo aos meus estudantes que, se quiserem saber mais
sobre um determinado assunto, podem ler um ou outro artigo que publiquei
recentemente numa revista internacional prestigiada. Observo, então, em alguns
deles, um sorriso levemente irónico. Tomam por vaidade a expressão de algo que
é, ou devia ser, relativamente frequente e banal nos seus professores:
contribuir, por pouco que seja, para o progresso científico na sua área de
especialidade. É o carácter verboso que prolifera na Universidade Portuguesa que ajuda a compreender que os estudantes tenham uma
arreliadora tendência para decorarem textos e
artigos, conceitos e expressões, mesmo que não saibam muito bem quais as
questões em análise, quais os argumentos que fazem sentido e quais os resultados
inteligíveis. Têm nisso os estudantes muitas responsabilidades. Mas nós, professores, temos
ainda mais.
Continuará a ser assim se os problemas da Universidade portuguesa
não forem seriamente enfrentados. Devo confessar que não estou muito optimista. Os Governos mudam. Todos parecem ter
vontade de alterar o estado de coisas mas, depois, nada de importante é
perseguido. Ironicamente, muitas vezes são as mesmas
pessoas que tiveram possibilidade institucional de introduzir alterações para
melhor, que, mais tarde, vêm declarar que, afinal, a Universidade Portuguesa
está muito atrasada em termos europeus e, portanto, que é necessário
transformá-la. Em vez de um conjunto pequeno de medidas profundas, as suas
propostas limitam-se à constituição de "grupos de reflexão" que
produzem relatórios de 200, 300 ou mais páginas!
Para que tudo fique mais ou menos na mesma!
5.
Outro mal na Universidade Portuguesa é
ser demasiado hierarquizada. Em títulos, somos, de
facto, os melhores! Somos sempre, e logo, Professores Doutores. Talvez seja um
modo de compensarmos a nossa generalizada incompetência. Costumo dizer que à
Universidade Portuguesa sobra em títulos o que lhe falta em investigação e
reconhecimento internacional. Quando alguém obtém o grau de doutor, é logo
promovido a Professor Doutor e até os artigos publicados em revistas
(Portuguesas) fazem muitas vezes preceder o nome do autor dos seus respectivos
títulos. Ironicamente, esse alguém recém-doutorado, ainda que, de facto, muito
competente na sua área, pode ficar muitos e muitos anos como Professor Auxiliar,
e isto porque as vagas de Professor Associado estão todas preenchidas! Ao menos fica-lhe o Professor Doutor!
6.
Outro aspecto menos positivo na Universidade Portuguesa, e de que
a minha Faculdade é um bom exemplo, é ser, ou querer ser, demasiado
profissionalizante. Porventura os estudantes e muitas outras pessoas não
estão de acordo comigo. É certamente importante que a Universidade Portuguesa
forme bons profissionais. Quem não poderia estar de acordo? Em termos da minha
Faculdade, é certamente relevante que os estudantes de Psicologia, por exemplo,
possam vir a ser bons profissionais no âmbito da psicologia da educação, da
psicologia do desporto, da psicologia clínica, da psicologia da justiça, etc.
Só que a preparação dos estudantes para estes objectivos não pode ser feita em
detrimento da sua sensibilização para as questões que têm a ver com a produção
do conhecimento, do progresso científico, ou da investigação fundamental. E se quisermos ser honestos, é esta sensibilização que, em
geral, não ocorre na Universidade Portuguesa. Chegaria consultar as grandes
revisões de literatura (os estudos que sumariam o estado da arte numa
determinada área de saber) para ver quanto a Universidade Portuguesa está
ausente. Quantos são os professores da Universidade Portuguesa que publicam
regularmente em revistas prestigiadas com sistema de peer review? É
melhor nem sabermos! Como era de esperar, a Universidade Portuguesa tem também
resposta para esta lacuna! Publicar nessas revistas para quê? Em geral, são
editadas em língua Inglesa e o importante --diz-se-- é defender a nossa
língua! Assim
sendo, chega a propor-se --imagine-se-- que as publicações nessas revistas tenham
o mesmo valor curricular que as publicadas
nas revistas Portuguesas, revistas que, de modo geral, ou não têm um sistema de
revisão de artigos, ou, se o têm, é tudo menos credível. Deste ponto de vista,
seria interessante conhecer a taxa de
rejeição de artigos científicos submetidos às nossas revistas. Muitas delas,
aliás, não existem para publicar novidades científicas, empíricas ou
conceptuais, mas sobretudo para servirem de local onde se faz currículo. Em
Portugal, revistas de Psicologia, por exemplo, são mais de uma dezena. Se
publicassem trabalhos de qualidade, uma apenas era capaz de ser demais. São estes aspectos que eu
pretendo realçar quando falo em carácter demasiado profissionalizante da
Universidade Portuguesa. Penso, aliás, que quanto mais a Universidade
Portuguesa assumir esta vertente, tanto mais se confundirá com o ensino
politécnico. Não tenho nada contra a aplicação do conhecimento, nem nada contra o ensino politécnico.
Mas o conhecimento
não é aplicado antes de ser produzido. E é à Universidade que compete
esta missão. Aceito que a distinção entre o ensino politécnico e o
universitário venha a atenuar-se, talvez mesmo a desaparecer, sendo este, em
última análise, o sentido da Declaração de Bolonha. Mas o que define a essência
da Universidade é o saber desinteressado e fundamental. Reparem
neste pormenor. Há dois anos, a minha Faculdade comemorou o seu vigésimo
aniversário. Na área da Psicologia, houve painéis sobe psicologia e educação,
psicologia e desporto, psicologia e justiça, psicologia e clínica, etc. Tudo
temas muito respeitados. Não houve, contudo, nenhum painel sobre psicologia e
investigação fundamental ou sobre psicologia e as (graves) questões teóricas
que a
afligem. Por exemplo, é usual falar-se da memória como se ela fosse um armazém,
ou da mente como se ela fosse uma entidade, localizada, algures, no nosso
cérebro. Muitos profissionais da psicologia têm certamente necessidade de
apelar para estes
aspectos, para exercerem bem as suas profissões. Porque a memória como armazém
e a mente como entidade não passam de meras metáforas, tais profissionais
correm o risco de, nas suas profissões, não irem muito além do senso comum
quando se referem a esses aspectos e neles se baseiam para se reclamarem de profissionais
competentes e com uma sólida formação científica. Será que uma aplicação
relativamente acrítica pode constituir um bom modelo para um bom profissional? A investigação é algo de
fundamental em Psicologia, como em qualquer outro domínio do saber. Se esse não for o caso, o
risco é fazermos muitas aplicações, sabendo embora muito pouco. Ou então, por
exemplo, convertermos a psicoterapia numa espécie de banha da cobra da
psicologia. E ninguém sabe as consequências negativas que daqui podem advir.
7.
Outro mal da Universidade Portuguesa
é ser pouco sensível ao mérito. Em geral, é a obediência, quando não a mediocridade, que são recompensadas. Felizmente, existem alguns sinais de que algo está a mudar. A avaliação por avaliadores internacionais, bem como a
existência de Centros de Investigação, avaliados também internacionalmente, são
disso prova. Fica este pormenor delicioso. Há dias, um amigo meu sugeria, num
Centro de Investigação a que pertence, que talvez fosse aceitável que as verbas
que são atribuídas ao respectivo Centro fossem distribuídas no sentido de
afectar mais algum dinheiro aos membros que faziam mais investigação e
publicavam mais nas revistas internacionais com um sistema de peer review.
De modo nenhum! Disse alguém. Isso seria egocentrismo! Ou então, acrescentou outro membro, isso
seria meritocracia! Quando se pensa em estimular a investigação e a descoberta
científica não é o mérito que deveria ser recompensado? Se não o fizermos,
corremos o risco de fomentar a resignação em vez do entusiasmo, e a
mediocridade em vez da excelência. E convém não esquecer que se a excelência
pode eventualmente gerar excelência, a mediocridade inevitavelmente gera mediocridade.
8.
Quanto ao oitavo mal, quero dizê-lo com coragem,
assumindo os riscos que isso acarreta. A verdade é que a Universidade Portuguesa é
demasiado pedagogizante. A pedagogia é um dos mitos dos tempos
modernos, um mito que, infelizmente, prolifera dia após dia na Universidade
Portuguesa. A ideia força deste mito é que, na Universidade, as chamadas
questões pedagógicas deviam vir em primeiro lugar, antes das questões
científicas. Está ainda para vir o tempo em que se saiba quais os
critérios em nome dos quais se é bom ou mau professor. Por melhor pedagogo que
seja, na Universidade, um professor incompetente será sempre incompetente.
Tanto pior se a pedagogia, que às vezes se resume a um certo facilitismo ou a um recurso exacerbado a meios audio-visuais, servir para mascarar a
incompetência. Parece ainda que a existência generalizada, abusiva mesmo, de
cursos e cursos de Ciências da Educação na Universidade Portuguesa não está a contribuir, tanto quanto seria razoável, para a resolução de muitos
problemas do ensino no nosso país, a começar pelos males que afligem a própria
Universidade. Mais grave ainda, o discurso pedagógico na Universidade
Portuguesa é mais pedagogizante do que propriamente pedagógico. Por exemplo,
fala-se muito em pedagogia mas, na verdade, de um ponto de vista formal, os
estudantes ainda não são chamados a ter uma palavra sobre os professores que
têm e o ensino que deles recebem! Penso que, por exemplo, se devia instituir um
sistema em que os estudantes, no fim do ano, avaliassem os seus professores,
sendo essa avaliação uma informação importante não só para o seu
aperfeiçoamento como professores, mas mesmo para a sua carreira de professores. Não
que fosse a palavra fundamental, mas que fosse uma palavra a ser tida em conta.
De um modo geral, os estudantes, que não são parvos, percebem com alguma
facilidade se os seus professores se esforçam, se são pontuais, se ensinam com entusiasmo,
se sabem pensar nas aulas, se fazem ou não investigação, etc. Obviamente, é importante estar atento aos
estudantes, entusiasmá-los, saber ouvir as suas dúvidas e coisas do género. Mas um professor que
trabalha com afinco, que ensina com entusiasmo e que estimula os alunos no
sentido da reflexão, investigação e aplicação há-se ser, pelo menos, um
pedagogo razoável. A Universidade ficará bem servida com pedagogos
razoáveis! Que não se ponha, porém, a bandeira da pedagogia acima de tudo e em toda
a parte! Os estudantes do ensino superior também não são crianças da escola
primária, ou pré-adolescentes em crise, numa qualquer escola secundária. É
certo que um
professor competente não é necessariamente um bom pedagogo. Mas tem condições
para poder sê-lo. Pelo contrário, é vão esperar de um professor universitário incompetente que
seja bom pedagogo. E o que dizer da possibilidade de um programa de mestrado ou
de doutoramento poder vir a não ser aprovado porque, entretanto, os votos de
funcionários e alunos foram em maior número do que o dos professores?
9.
Estava a pensar numa lista de 10 males
capitais na Universidade Portuguesa. Vou apenas referir mais um. A Universidade
Portuguesa é individualista e invejosa. Individualista, por exemplo, no
sentido em que fomenta pouco a constituição de equipas de trabalho e
de investigação. Invejosa, por exemplo, no sentido em que tem dificuldade em
lidar com aqueles que, no seu seio, vão além da mediania reinante. Na Universidade Portuguesa,
a regra é os professores trabalharem de forma individual e isolada. Os seus projectos de pesquisa, quando
existem, raramente são conhecidos por colegas e estudantes, mesmo da própria
Faculdade ou Departamento. Como os professores também não têm, em geral, o que
se poderia chamar de aulas de laboratório, aulas com um número restrito de
estudantes interessados nos temas de reflexão e pesquisa do professor em
questão, a tendência para o individualismo e isolamento é ainda maior.
A não
existência generalizada de programas de doutoramento na Universidade Portuguesa
torna ainda as coisas mais complicadas. Isto é, menos
submetidas ao conhecimento e discussão alargada e mais propícias à endogamia. É
raro que o estudante universitário Português se inicie em actividades
de investigação. Em geral, ouve falar delas. Sobretudo do seu método! Sobretudo se for estudante de Ciências
Sociais e Humanas e, mais ainda, de Ciências da Educação! A distância para a
ideia (errada) de que a investigação consiste especialmente em passar testes,
escalas, questionários ou realizar uma qualquer entrevista fica então
encurtada.Por tudo o que já disse, também se percebe por
que razão a Universidade Portuguesa tende a tratar com alguma mesquinhez
e inveja os seus membros que vão além da mediania nacional. Acabam por ser maus
exemplos! O melhor é não lhes dar muito reconhecimento! Às vezes atinge-se mesmo
a parolice e uma subserviência ridícula. Se um professor Português, reconhecido
internacionalmente, proferir uma conferência na sua Faculdade ou no seu país,
arrisca-se a ter a sala quase vazia. A não ser, claro, que seja uma figura
pública, política, ou que detenha poder de influência na sua
Faculdade ou Departamento. Mas se vier um professor estrangeiro, um daqueles que é mais
ou menos desconhecido mesmo no seu país, o mais provável é que
tenha muita audiência à sua espera, embora no fim, em geral, não lhe sejam
colocadas quaisquer questões. Existe também o reverso da medalha. Se um professor nosso já
se tornou, de facto, famoso (veja-se o exemplo do Prof. António Damásio), então
estamos facilmente disponíveis para o endeusar. Mesmo que tenhamos de renunciar
a um certo espírito crítico e de irreverência, sem o qual a investigação
científica tende a estiolar.
São estes alguns dos males que afligem a Universidade Portuguesa. Penso
que não exagerei. E oxalá deixe de ter razão em breve. Mesmo assim, é a
Universidade que
assegura a formação dos jovens, jovens que --assim o espero-- a tornarão certamente melhor.
E com todos os seus defeitos, no nosso país periférico e pobre, é ainda a Universidade, em especial a
Universidade pública, o lugar privilegiado para que aqueles que têm
disponibilidade e meios para estudar, ensinar e aprender, o possam fazer com exigência e profundidade.
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