Discurso a Nícocles

Excertos

 

1.Parece-me com toda a evidência, ó Nícocles, que os que têm hábito levar a reis, como vós, vestuário ou objectos de bronze ou de ouro cinzelado ou ainda outro qualquer presente do mesmo género (dos quais eles próprios carecem e que vós tendes em abundância) não estão a dar um presente mas a fazer um negócio e a vender-vos esses objectos muito mais ardilosamente que aqueles que confessam dedicar-se ao comércio.

2.Por minha parte, consideraria que te fazia o mais belo e o mais útil dos dons, mais digno de mim ao oferecer-to, e de ti, ao recebê-lo, se pudesse delimitar qual o género de vida que deves buscar e as obras de que deves abster-te para governar o melhor possível o teu Estado e exercer a tua realeza.

4.Os governantes, pelo contrário, não dispõem de nada disso; eles que, mais do que ninguém, deviam ser educados, depois que se instalam no poder passam a vida sem ter quem os advirta: efectivamente, a maioria não desfruta de acesso junto deles e os íntimos aproveitam o convívio para lhes agradar.

9.Em primeiro lugar, examinemos qual é o ofício dos reis. Se nos pontos capitais abarcarmos a grandeza de todo o assunto, com os olhos fixos nesse ponto de partida, dissertaremos melhor sobre cada uma das partes do tema.
Creio que todos estão de acordo em que compete aos reis pôr um termo às desgraças do país, se ele passa dificuldades; salvaguardar o seu bem-estar, se é próspero; aumentar-lhe o território, se é pequeno; quanto ao resto, isto é, os acontecimentos do dia-a-dia, deve agir-se em atenção àqueles fins.

14.É sobretudo em ti próprio que encontrarás a coragem necessária, se consideras condenável que os piores exerçam autoridade sobre os melhores e que os tolos sejam colocados à frente dos sensatos. Quanto mais veemente for a tua censura da ignorância alheia, tanto mais exercitarás a tua própria razão.

20.Cumpre os teus deveres para com os deuses, tal como te ensinaram os teus antepassados: considera, no entanto, que o mais belo sacrifício e o maior serviço é o de te tornares o melhor e o mais justo. É de esperar que tais homens, mais do que aqueles que depõem sobre os altares muitas oferendas, alcancem dos deuses algo de bom. Honra os teus amigos mais íntimos com cargos honoríficos e os teus amigos mais dedicados com o conhecimento dos segredos.

26.Inveja não aqueles que adquiriram um enorme poder, mas os que sabem usar bem do poder de que dispõem, e julga-te completamente feliz, não se dominares todos os homens no meio de temores, perigos e más acções, mas se, sendo tal como deves e agindo como agora, alimentares aspirações moderadas e não deixares de satisfazer nenhuma delas.

32.Tem em maior apreço legar aos teus filhos uma boa reputação do que uma grande riqueza; na verdade, esta é mortal e aquela imortal. Pela glória as riquezas podem adquirir-se, mas a glória não se compra com dinheiro. A riqueza pode caber em sorte até aos homens vis; a glória não é possível senão aos que se distinguiram.

42.É evidente para mim que todos consideram utilíssimos os conselhos dos poetas e dos prosadores, embora não os escutem com muito prazer, mas experimentem para com eles exactamente os mesmos sentimentos que para com aqueles que os repreendem: por um lado, louvam-nos; por outro, desejam conviver com aqueles que se associam aos seus erros, não com aqueles que tentam desviá-los desses erros.

53.Dá muito apreço aos espíritos lúcidos e àqueles que são capazes de enxergar mais longe que os outros, sabendo que um bom conselheiro é o mais útil tesouro e o mais digno de um soberano absoluto. Convence-te de que darão maior grandeza ao teu reinado os que forem capazes de proporcionar um maior contributo à tua inteligência.

54.Tenho estado a aconselhar-te segundo a minha experiência, honrando-te conforme posso. Como te dizia ao princípio, não queiras que te levem os presentes habituais que vós (os reis) comprais muito mais caro àqueles que vo-los dão do que compraríeis a quem vo-los vendesse; prefere presentes tais que não se desgastarão mesmo com uso intenso e diário, mas que, pelo contrário, aumentarão sempre de preço e importância.

 

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt