Esta
página refere-se à opinião que o Filósofo Maurice
Merleau-Ponty elaborou acerca de Sócrates. Assim, nesta página
apresentamos algumas transcrições, do seu livro"Elogio
da Filosofia" , referentes a Sócrates.
Imagem do livro de
Ponty: "Elogio da Filosofia"

Para reencontrarmos a função integral do filósofo precisamos
lembrar-nos de que até os filósofos-autores que lemos e que somos, nunca
deixaram de reconhecer como mestre um homem que não escrevia, que não ensinava
-
pelo menos nas cátedras do Estado -
que se dirigia àqueles que encontrava na rua e que teve dificuldades com a
opinião pública e com os poderosos, precisamos lembrar-nos de Sócrates.
A vida e a morte de Sócrates são
a história das difíceis relações que o filósofo, que não é protegido pela
imunidade literária, mantém com os deuses da cidade, isto é, com os outros
homens e com o absoluto imobilizado cuja imagem lhe apresentam. Se o filósofo
fosse um revoltado, chocá-los-ia menos. Porque, enfim, cada um de nós sabe
que, excepção feita ao nosso caso, o mundo tal como está é inaceitável;
gostamos que isto se escreva, para honra da humanidade, e para o podermos
esquecer depois, quando regressarmos aos nossos afazeres. Por isso a revolta nos
não desagrada. O que se passa com Sócrates é diferente. Ensina que a religião
é verdadeira e há até quem o tenha visto oferecer sacrifícios aos deuses.
Ensina que se deve obedecer-lhe incondicionalmente. O que lhe censuram não é
tanto o que faz, mas a maneira, o motivo por que o faz. Há na Apologia
uma frase que tudo explica, quando Sócrates diz aos que o julgam:
"Atenienses,
eu acredito, como qualquer dos que me acusam".
Eis uma expressão
do oráculo:
ele acredita mais do que eles, e também
de outro modo e num outro sentido. A
religião que ele diz ser verdadeira é aquela em que os deuses não se
degladiam, em que os presságios se conservam ambíguos, -
pois que, como diz o Sócrates de Xenofonte, ao fim e ao cabo, são os deuses, e
não as aves, que prevêem o futuro, -
pois que, como diz o Sócrates de Xenofonte, ao fim e ao cabo, são os deuses, e
não as aves, que prevêem o futuro, -
em que o divino, como o demónio de Sócrates, unicamente se revela por uma
admoestação silenciosa, lembrando ao homem a sua ignorância. A religião é,
pois, verdadeira, mas de uma verdade que ela própria ignora, verdadeira tal
como Sócrates a pensa e não como ela se pensa a si própria. Do mesmo modo,
quando justifica a Cidade, é pelas suas razões e não pelas do Estado. Não
foge, comparece no tribunal. Mas é pouco respeitoso nas explicações que lhe dá.
Primeiro, diz ele, na minha idade a fúria de viver já passou; além disso, em
qualquer outro sítio não me suportariam melhor do que aqui; enfim, sempre cá
vivi. Há ainda o célebre argumento da autoridade dos leis. Mas seria preciso
analisá-lo mais nitidamente. Xenofonte põe na boca de Sócrates as seguintes
palavras: podemos obedecer às leis desejando que elas mudem, do mesmo modo que
podemos lutar na guerra desejando a paz. Isto, não porque as leis sejam boas,
mas porque são a ordem, sendo preciso que exista para poder ser alterada.
Quando Sócrates se recusa a fugir, não é por reconhecer o tribunal, mas para
melhor o recusar. Se fugisse, tornar-se-ia um inimigo de Atenas, tornando
verdadeira a sentença. Ficando, ganha, quer o absolvam, quer o condenem, quer
prove a sua filosofia conseguindo que os juízes a aceitem, quer a prove ainda
aceitando a sentença. Setenta e sete anos depois, Aristóteles, ao partir para
o exílio, dirá não haver razão para permitir que os Atenienses cometam um
novo crime de lesa-filosofia. Sócrates tinha uma ideia diferente da filosofia:
não é um ídolo de que ele seja o guarda que deve pô-la a salvo; ela está na
sua relação viva com Atenas, na sua ausente presença, na sua obediência
desrespeitosa. Sócrates tem uma maneira de obedecer que é uma forma de
resistir, do mesmo modo que Aristóteles desobedece decente e dignamente. Tudo o
que Sócrates faz se ordena segundo este princípio secreto que em vão se tenta
captar. Sempre culpado por excesso ou por defeito, sempre mais simples e menos
sumário do que os outros, mais dócil e menos acomodatício, causa-lhes mal-
estar, infringe-lhes esta imperdoável ofensa de os fazer duvidar de si próprios.
Na vida diária, na Assembleia popular, como no tribunal, está presente, mas de
uma forma que impede qualquer censura. Nada de eloquência, de discurso
preparado, pois seria dar razão à calúnia, entrando no jogo do respeito. Mas
também nada de provocação, pois seria esquecer que, em certo sentido, os
outros não podem julgá-lo de forma diferente daquela. É a filosofia que o
obriga a comparecer perante os juízes e o torna diferente deles, é a liberdade
que, ao mesmo tempo que o leva junto deles, o separa dos seus preconceitos. É o
mesmo princípio que o torna universal e singular. Há uma parte de si próprio
que o torna parente de todos eles -
a razão -
que, para eles, é invisível, que como dizia Aristóteles, é nuvem, vazio,
tagarelice. Os comentadores, dizem, por vezes: foi um equívoco. Sócrates
acredita na religião e na Cidade em espírito e em verdade, -
eles acreditavam à letra. Ele e os juízes não estavam no
mesmo plano. Se se tivesse explicado melhor, teriam compreendido que não
procurava novos deuses nem desprezava os de Atenas: limitava-se a dar-lhes
sentido, a interpretá-los. O pior é que esta operação não é tão inocente
como isso. É no universo do filósofo que se salvam os deuses e as leis,
compreendendo-as, e, para fazer baixar à terra o plano da filosofia, foram justamente precisos filósofos como Sócrates.
Para os outros, religião interpretada é religião suprimida; a impiedade é o
ponto de vista dos outros sobre ele. Indica razões para obedecer às leis, mas
ter razões para obedecer é de mais; a essas razões se opõem e o respeito
desaparece. O que esperam dele é o que ele lhes não pode dar: a concordância
sem considerações. Ele, pelo contrário, comparece perante os juízes para
lhes explicar o que é a Cidade. Como se eles não o soubessem, como se eles não
fossem a Cidade. Não defende a sua causa, mas a de uma cidade que
aceitasse a filosofia. Inverte os papéis e diz: não me defendo a mim, mas a vós.
No fim de contas, a cidade é ele, e os outros é que são os inimigos das leis,
os outros é que são julgados e ele é que é o juiz. Inversão inevitável no
filósofo, pois ele justifica o exterior pelos valores que vêm do interior.
Que fazer quando não é possível defender nem provocar? Falar de
maneira a deixar transparecer a liberdade no respeito, a exprimir o ódio pelo
sorriso, -
eis uma lição para a nossa filosofia que, com o seu ar trágico, perdeu o seu
sorriso. É o que se chama a ironia. A ironia de Sócrates é uma relação
distante, mas verdadeira, com outrem, que exprime este dado fundamental de que
cada um, sendo inelutavelmente ele próprio, no entanto se reconhece no outro, e
procura desligar um do outro pela liberdade. Como na tragédia, ambos os adversários
estão justificados, e a verdadeira ironia usa de um sentido duplo que se funda
nas coisas. Não há aqui qualquer vaidade, pois é tanto ironia para com os
outros como para consigo. É inocente,
como muito bem disse Hegel. A ironia de Sócrates não está em dizer menos para
ferir mais, mostrando força de ânimo ou fazendo supor qualquer saber esotérico.
«Cada vez que convenço alguém de que é ignorante, os assistentes julgam que
eu sei tudo o que ele não sabe», diz melancolicamente na Apologia. Não sabe mais
do que eles, sabe apenas que não há saber absoluto e que é por isso que
estamos abertos à verdade. Hegel opõe a esta boa ironia romântica, que é equívoco,
artifício, vaidade. Baseia-se no poder que efectivamente temos de, se quisermos
dar qualquer sentido a seja o que for; torna as coisas indiferentes, brinca com
elas, autoriza tudo. Ou, pelo menos, se nele há aspectos de má ironia, ele próprio
nos ensina a corrigi-lo. Quando diz: o facto de me tornar detestado é a prova
do que falo verdade, segundo os seus princípios não tem razão, pois todos os
bons raciocínios ofendem, mas nem tudo o que ofende é verdadeiro. Do mesmo
modo, quando diz aos juízes: mesmo que
tivesse que morrer várias vezes, não deixaria de filosofar, provoca-os,
tenta a sua crueldade. Cede, por vezes, à vertigem da insolência e da malícia,
ao sublime pessoal e ao espírito aristocrático. É verdade que não tinha
outro percurso senão ele próprio. Ainda como diz Hegel: apareceu «na época
da decadência da democracia ateniense; evadiu-se do existente e refugiou-se em
si próprio para aí procurar o que era justo e bom». Mas, ao fim e ao cabo,
isso era precisamente o que se tinha proibido, pois pensava não ser possível
ser-se justo sòzinho, que sê-lo sòzinho é deixar de sê-lo. Se, na verdade,
é a Cidade que ele defende, não pode ser apenas uma Cidade nele, mas a Cidade
existente à sua volta. Os quinhentos homens que se reuniram para o julgar não
eram todos presumidos ou tolos: entre eles houve duzentos e vinte e um que
votaram a sua inocência, pelo teriam bastado trinta vozes deslocadas para
salvar Atenas da desonra. Tratava-se de todos aqueles que, depois de Sócrates,
corriam o mesmo perigo que ele. Tendo talvez liberdade para desencadear sobre si
a cólera dos tolos, para lhes perdoar com desprezo e para passar para outro
lado da vida, não a tinha, contudo, para absolver antecipadamente o mal que
viesse a ser feito a outros e para passar para o outro lado da vida deles. Era preciso, pois dar ao tribunal uma oportunidade para
compreender. Enquanto vivermos com os outros, nenhum juízo nosso a seu respeito
pode exceptuar-nos e pô-los a distância. O tudo
é vão, ou o tudo é mal, ou
ainda o tudo é bem, que deles
dificilmente se distingue, não pertencem à filosofia.
Maurice
Merleau-Ponty, Elogio da Filosofia, pág. 50-58
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