Morte de Sócrates

        Esta página retrata a morte de Sócrates reforçando-o como um Filósofo surpreendente que não temeu a sua morte por envenenamento.

 

Quadro de David que representa a morte de Sócrates:

 

    "O processo e a condenação de Sócrates testemunham o perigo que a ignorância faz correr ao saber, que o mal faz correr à virtude. Mas este perigo não é senão aparente, pois, na realidade, é o justo que triunfa dos seus carrascos se bem que seja vítima deles, o triunfo de Sócrates sobre os seus juízes data do dia da sua execução."( in Jean Brun, página 80)

 

Acusação a Sócrates

Condenação de Sócrates

Morte de Sócrates

Opiniões acerca da morte de Sócrates

Transposição poética e musical da morte de Sócrates

Dúvidas acerca da morte de Sócrates

Excerto do Fédon: "Assim Morreu Sócrates"

 

 

 

Acusação a Sócrates:

 

       Foi condenado em 399 a.C, Janeiro, com 71 anos,  por uma acusação de "impiedade": foi acusado de ateísmo e de corromper os jovens com a sua filosofia, mas na realidade, estas acusações encobriam ressentimentos profundos contra Sócrates por parte dos poderosos da época. O tribunal era constituído por 501 cidadãos. Entre as acusações houve uma que se referia à introdução de novas entidades divinas negando os Deuses da pátria. Os acusadores foram: Ânito, Meleto e Lícon.
       Ânito que era um líder democrático tinha um filho discípulo de Sócrates que ria dos deuses do pai e voltava-se contra eles. Representava a classe dos políticos. Era um rico tanoeiro que representava os interesses dos comerciantes e industriais, era poderoso e influente não sendo um homem de escrúpulos e finezas da moral interior. Foi o mais importante dos acusadores e foi aquele que deu a impressão de conhecer Sócrates, que a ele alude como de Meleto fosse seu subordinado, como se deste tivesse originado a ideia de pena de morte para persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo tivesse seguimento.
      Meleto era um poeta trágico novo e desconhecido de cabelo raro, barba escassa e nariz adunco, era o acusador oficial, porém nada exigia que ele como acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível, mas somente aquele que assinava a acusação. Representava a classe dos poetas e adivinhos.
      Pouco se sabe de Lícon. Era um retórico obscuro e o seu nome teve pouca importância e autoridade no decorrer da condenação de Sócrates. Representava a classe dos oradores e professores de retórica. Talvez Lícon pretendesse a condenação de Sócrates, devido ao seu filho ter-se deixado corromper moralmente, filosoficamente e sexualmente por Callias, e Callias era um associado de Sócrates. 

      Meleto assim disse:       

     "...Sócrates é culpado  do crime de não reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado e de introduzir divindades novas; ele é ainda culpado de corromper a juventude. Castigo pedido: a morte" . ( in Jean Brun, página 37                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         )  

 

Condenação de Sócrates:

       O acusador tinha pedido a morte e o tribunal havia reconhecido Sócrates culpado por maioria, era portanto do interesse de Sócrates propor uma pena aceitável como adequada. A lei ateniense permitia que Sócrates propusesse uma pena inferior. O tribunal tinha de escolher entre a pena da sentença  e a proposta pela defesa. 

   
Figura do tribunal de Atenas onde Sócrates foi condenado:  


         Então Sócrates interrogou o acusador Melitus acerca de quem é que melhorava a cidade. Melitus citou primeiro os juízes; depois gradualmente, acabou por dizer que todos, excepto Sócrates, melhoravam a cidade. Então Sócrates felicitou a cidade pela sua boa sorte e referiu que era melhor viver entre homens bons do que entre maus; e portanto não podia ser tão louco que corrompesse os concidadãos intencionalmente; mas se era sem intenção, Meleto devia instruí-lo e não persegui-lo. Sócrates também realçou que entre os presentes havia discípulos seus e pais e irmãos deles; nenhum foi chamado a testemunhar que ele corrompia a juventude. Recusou seguir o costume de apresentar os filhos chorosos para comover os juízes. Tais cenas tornavam ridículos o acusado e a cidade. A sua tarefa era convencer os juízes e não pedir-lhes um favor.
       Sócrates propôs uma multa de trinta minas, de que qualquer dos amigos (incluindo Platão) tomaria a responsabilidade. Mas o castigo era tão pequeno que o tribunal irritou-se e  o condenou à morte por maioria superior à que o declarara culpado, ou seja a sua condenação à morte foi votada por 281 contra 220, com mais 80 votos do que havia sido votada a sua culpabilidade. Sem dúvida ele previra o resultado; é claro que não queria evitar a pena de morte por concessões que pareceriam reconhecimento da culpa.
       Depois da sentença e rejeitada a alternativa da pena de 30 minas, Sócrates fez uma última exposição, legando aos juízes a responsabilidade da sua morte para a eternidade e ao mesmo tempo realizou uma profecia:

        "Eu predigo-vos portanto, a vós juízes, que me fazeis morrer, que tereis de sofrer, logo após a minha morte, um castigo muito mais penoso, por Zeus, que aquele que me infligis matando-me. Acabais de condenar-me na esperança de ficardes livres de dar contas da vossas vida; ora é exactamente o contrário que vos acontecerá, asseguro-vos (...) Pois se vós pensardes que matando as pessoas, impedireis que vos reprovem por viverem mal, estais em erro. Esta forma de se desembaraçarem daqueles que criticam não é nem muito eficaz nem muito honrosa. ( in Jean Brun, página 40)  

 

 Para consultar a apologia e ver a defesa de Sócrates basta clicar em: http://www.Socrates.Clarke.edu/ 
    Se quiser saber como eram escolhidos os Juízes do tribunal clique em: Juízes
    Sócrates em tribunal propôs uma multa de 30 minas, se quiser saber qual a moeda usada de Atenas clique em: dracma

   

       Platão considerou que  não foi por razões religiosas que Sócrates recebeu a condenação, mas sim por questões evidentemente políticas. No Ménon Ânito, já havia ameçado Sócrates dizendo-lhe que com muita facilidade se dedicava à maledicência, e  que o aconselhava, se o quisesse ouvir, que tivesse cuidado. 

       De facto, Sócrates mostrou mediante palavras e actos, a sua obstinada repulsa aos governos democráticos. Xenofonte, também atribui a acusação a Sócrates por Ânito,a uma facto de ordem pessoal, pelo desejo de vingança, pois Sócrates havia recriminado Ânito publicamente, por não pensar na educação do seu filho senão para fazer dele um tanoeiro, capaz de seguir as pisadas da empresa paternal. O propósito não era a morte de Sócrates mas sim afastá-lo de Atenas e se isso não ocorreu deveu-se à demasiada teimosia de Sócrates que em vez de escolher o exílio preferiu a proposta duma multa irrisória, vindo a ser por conseguinte, condenado.

      Há filósofos que acreditam que Sócrates recusou-se a defender perante o tribunal popular indo de encontro à sua condenação porque o seu demónio nada lhe disse para se afastar da condenação.

   

Morte de Sócrates:

  Imagem que representa a prisão de Sócrates, numa caverna, junto da Acrópole:

 

       Sócrates deixou os juízes e foi para a prisão, teve que esperar mais de um mês a morte no cárcere, pois uma lei vedava as execuções capitais durante a viagem votativa de um navio sagrado a Delos. Este navio sagrado ía todos os anos à ilha natal de Apolo para celebrar a ajuda que o Deus Apolo havia dado a Teseu para vencer um minotauro (monstro) que obrigou durante anos Atenas a pagar um cruel contributo. A lei exigia que nenhuma execução tivesse lugar antes do regresso do navio. Por isso, Sócrates ficou a ferros 30 dias, sobre custódia dos Onze, magistrados encarregados, em Atenas, da polícia e da administração penitenciária.
       
Durante estes 30 dias recebeu os seus amigos e conversou com eles. Uma manhã o discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre, porém Sócrates recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às leis da pátria. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo em palestras espirituais com os amigos. Especialmente famoso é o diálogo sobre a imortalidade da alma que se teria realizado pouco antes da morte e foi descrito por Platão no Fédon com arte incomparável.
   
     Após 3 dias a proposta de Críton, deu-se o dia da execução. Estiveram presentes todos os amigos de Sócrates excepto Aristipo, Xenofonte (estava na Ásia) e Platão (estava doente),  Xantipa e seus filhos. 
   
     Recusou ser vestido depois de morto por uma rica túnica que Apolodoro lhe havia trazido, preferia o seu manto que havia sido suficientemente bom até ali e que continuaria a sê-lo depois da sua morte. Passou os seus últimos momentos a conversar sobre a imortalidade da alma. Tomou um banho, e antes que o sol tivesse inteiramente desaparecido no horizonte pediu o veneno. Críton argumentou proferindo que Sócrates ainda tinha tempo pois o sol ainda ía sobre as montanhas. No entanto Sócrates não quis adiar o inevitável uma vez que não valia apena economizar quando já não lhe sobrava mais nada. Pediu o veneno e pegou na taça de cicuta com uma mão firme e bebeu sem desgosto nem hesitação até ao fundo.

Momento em que Sócrates pegou na taça de cicuta:

  

      Nesta altura todos os seus amigos romperam num amargurado pranto. Choravam descontroladamente, mas Sócrates encorajou-os:

     "Estejam calmos, então, tenham firmeza" 

 in Platão, Fédon, 116b _ fim.

      Explicou-lhes que havia mandado embora as mulheres para evitar da parte delas essa mesma atitude de pranto. Era com palavras felizes que devia terminar.
     Assim que começou a sentir as pernas pesadas deitou-se, tal como lhe havia recomendado o carcereiro. O veneno iria subindo progressivamente, até que quando chegasse ao coração seria o fim. Sócrates proferiu então:

     "Críton, somos devedores de um galo a Asclépio; pois bem pagai a minha dívida, pensai nisso".

 in Platão, Fédon, 116b _ fim.

        Críton ainda lhe perguntou se não teria mais nada a dizer, mas estas foram as suas últimas palavras. Sócrates após um último sobressalto morreu e o seu amigo Críton fechou-lhe os olhos.  

 

 

Opiniões acerca da morte de Sócrates:

 

    A Injustiça da Morte de Sócrates:

      Platão colocou o problema da educação dos homens e da organização da cidade no centro da sua filosofia, para ele a filosofia devia dar-nos a luz que nos permitisse encontrar a justiça na vida privada e na vida pública. Platão nunca compreendeu que um homem como Sócrates que sempre levou uma vida exemplar,  que defendeu a cidade quando esta se encontrava em perigo, que sempre levou os atenienses a reflectir de modo que se tornassem melhores, pudesse ter sido assassinado pela sua cidade, sobrepondo-se o mal ao bem, a injustiça à justica, a mentira á verdade. Como poderia ter sido a cidade de Atenas tão ingrata com Sócrates que sempre discursou pela verdade e com verdade. Platão dedicou a sua vida a denunciar a tragédia do homem na cidade, homem esse que foi vítima da cidade que tanto amou.

    O acto de patriotismo:

        Há também quem acredite que Sócrates como figura monstruosa tinha que desaparecer, pois para os atenienses a beleza física devia acompanhar a beleza moral, e Sócrates neste aspecto revelava-se  um escândalo para Atenas. O filósofo Edélestand du Méril escreve mesmo que os acusadores de Sócrates fizeram um acto de patriotismo. Afirma que a história que sabe o passado  e o compreende, honra-os como Atenienses(...)Neste processo(...) toda uma República se defendia contra um homem"  

 

  Paralelo entre a morte de Sócrates e de Jesus Cristo:

 

       Sócrates e Jesus eram ambos pessoas carismáticas e consideradas enigmáticas ainda em vida. Nenhum dos dois deixou qualquer escrito, e precisamos confiar na imagem e impressões que eles deixaram em seus discípulos e contemporâneos. Ambos eram mestres da retórica e tinham tanta autoconfiança no que falavam que podiam tanto arrebatar quanto irritar os seus ouvintes. Ambos acreditavam falar em nome de uma coisa que era maior que eles mesmos. Ambos desafiavam agudamente os que detinham o poder na sociedade, apontando sem piedade as hipocrisias e falsos fundamentos em que se assentavam para cometer toda a sorte de abusos e injustiças. Foi isto que no fim lhes custou a vida. Afinal, os que questionam são sempre perigosos para os poderosos e pseudo-sábios de todas as épocas. Tal como Cristo que era um revolucionário, que foi acusado e executado confirmando  pela sua morte a verdade do seu ensinamento, Sócrates também morreu pela verdade pois o seu sentimento interior foi em contradição da crença religiosa e  da constituição política do seu povo. Cristo era um homem como Sócrates, um Mestre cuja vida foi virtuosa e que tornou o homem consciente do que era a verdade em geral, do que deve formar o fundamento da consciência. Foram duas individualidades com destinos semelhantes.
   
   Apesar da semelhança entre os destinos de Cristo e Sócrates, há diferenças na forma como ambos morreram. A morte de Cristo foi por um lado a morte de um homem, de um amigo que a violência fez morrer que se tornou a salvação dos homens. A morte de Jesus foi uma lenta e longa agonia que começou com a subida ao calvário. Jesus morreu no meio de tormentos e de injúria, com uma morte  em comunhão na medida que estava rodeado doutros homens pregados na cruz. Comunicou na morte com aquele que agonizava perto de si. A sua morte foi tragicamente vivida, foi uma morte ensaguentada em que Jesus sofreu lentamente a dor dos pregos em suas mãos e da coroa de espinhos em sua cabeça. Jesus morreu solitário na cruz, no monte das oliveiras,em grande sofrimento e agonia gritando: 

"Meu Deus porque me abandonaste?",  ( in Jean Brun, página 99)  

 

Imagem de Cristo:

      Sócrates, por sua vez passou os seus últimos momentos rodeado dos amigos. Ultrapassou a ideia de morte pela mesma ideia que tinha da morte, ela trágica para os seus amigos mas não para si. Morreu na prisão pacificamente sem dor, sem nunca alterar nenhum dos traços do seu rosto nem que a sua voz mudasse, e apesar de morrer rodeado dos amigos, esteve sozinho na morte. A grande diferença traduz-se simplesmente em que Cristo foi verdadeiramente possuído pela morte, vivendo a morte. Sócrates por seu lado pensou a sua morte.

 

Sócrates o mártir cristão:       

          Sócrates retratou bem um homem de certo tipo: seguro de si, de espírito elevado, indiferente ao êxito mundano, confiante numa voz divina guiadora, convicto de ser o pensamento claro e o melhor caminho para a vida recta. Pareceu ser um mártir cristão. Sócrates quando pensava no que sucedia após a morte, transparecia a sua crença firme na imortalidade e que a dúvida professada era apenas hipotética. Não o perturbava, como aos cristãos, o medo da pena eterna; não duvidava da felicidade no outro mundo. No Fédon Sócrates dá razões de crêr na imortalidade. Quando Sócrates foi condenado à morte, comentou alegremente que no outro mundo poderia fazer perguntas eternamente sem ser condenado a morrer, porque era imortal. Por outras alturas Sócrates havia já referido que se preocupava com a morte como se de nada se tratasse  e que a sua única preocupação era a de nada fazer injusto nem de ímpio.
      Sócrates é tido simultaneamente como o herói da linguagem e o seu mártir, pois apenas pelo recurso á palavra conduzia os interlocutores em direcção ao caminho do verdadeiro, no entanto, foi vencido pelos discursos dos seus acusadores.
   
   O conhece-te a ti próprio pode recolocar-se numa perspectiva cristã na medida em que a última palavra do conhecimento coincide com a primeira palavra de um conhecimento de Deus; o conhecimento de si está aqui subordinado a uma doutrina de salvação. É porque o homem foi feito à imagem de Deus que o conhecimento de si é abertura para o mistério da divindade.
   
     Sócrates facilmente se integrou numa corrente espiritual totalmente estranha em seu príncipio, à sabedoria grega, isto é o cristianismo. Os primeiros Padres da igreja consagraram a Sócrates e aos socráticos o conhecimento parcial de Cristo. Pois no século II dá-se uma integração de Sócrates e da filosofia socrática no movimento espiritual da fé cristã. São Justino atribuiu a Sócrates ser a ponte entre a filosofia pagã e o cristianismo, afirmando que a filosofia grega entecipou o cristianismo na pessoa de alguns pensadores tais como o Sócrates que viveram antes de Cristo. Esses pensadores estabeleceram um paralelo entre a filosofia de Sócrates como um trabalho de preparação cristã, na medida que a sua filosofia seria o conhecimento da perfeição espiritual. A missão de Sócrates baseva-se em que as pessoas se conhecessem a si próprias, conhecessem a sua consciência. Isto levaria a filosofia como sinónimo de doutrina cristã.    
        Sócrates contribuiu para que as pessoas se apercebessem da descoberta da evidência que é a manifestação do mestre interior à alma. Conhecer-se a si mesmo seria conhecer Deus em si.

 

Sócrates cristão encarna a fusão da mensagem socrática e do ensinamento cristão que forma o pensamento. No século XVII Balzac elaborou: Sócrates Cristão.  

 

 

Transposição poética e musical da morte de Sócrates:

   

 Em 1823 Lamartine fez uma transposição poética da  morte de Sócrates.
Erik Satie elaborou uma obra musical referente à morte de Sócrates.

    

Dúvidas acerca da morte de Sócrates:

        Existem autores que consideram que a descrição da morte de Sócrates no Fédon de Platão é completamente inconsistente com os efeitos conhecidos da cicuta. Pensam portanto que no relato da morte de Sócrates alguém estava a mentir.

Excerto do Fédon: "Assim Morreu Sócrates"

    "... O sol já estava prestes a se pôr; pois Sócrates passara muito tempo neste lugar. Assentara-se, ao voltar do banho e, a partir daquele momento, a palestra foi muito breve. Chegou, então, o servidor dos Onze e, de pé diante dele, disse-lhe: "Sócrates, não tenho nenhum motivo para te censurar justamente naquilo que incrimino aos outros! Encolorizam-se contra mim e crivam-me de imprecações, quando convido-os a beber o veneno, pois tal é a ordem dos Magistrados. Quanto a ti, porém, já noutras ocasiões tive tempo suficiente para compreender que és o homem mais generoso, mais doce e melhor de quantos jamais aqui entraram. E, muito especialmente hoje, tenho plena certeza que não é contra mim que se dirige a tua cólera, pois conheces, com efeito, os responsáveis, mas contra estes. Agora, portanto, como não ignoras o que vim te anunciar, adeus! Procura suportar da melhor maneira aquilo que é fatal"! Começou, ao mesmo tempo, a chorar e, voltando as costas, afastou-se. Sócrates, levantando os olhos para ele, disse-lhe: "A ti também, adeus! No tocante a nós, seguiremos tua recomendação"! A esta altura, Sócrates voltou-se para nosso lado e disse: "Quanta gentileza neste homem! Durante toda a minha estada aqui, ele vinha procurar-me e se entretinha, por vezes, a conversar comigo: em suma, um homem excelente. E hoje, que generosidade na maneira como chora a minha sorte! Vamos, pois! Obedeçamos-lhe, Críton. Tragam-me o veneno se já estiver socado; caso ainda não esteja, que disse se ocupe quem estiver encarregado"!
        Então Críton disse: "Mas Sócrates, se não me engano, o sol ainda está sobre as montanhas e não acabou de se pôr. Também ouvi dizer que outros beberam o veneno muito tempo depois de terem recebido o convite, e isto só depois de haverem comido e bebido á saciedade, alguns mesmo depois de ter tido comércio com as pessoas com quem pudessem ter vontade. Vamos! Nada de precipitações: há tempo ainda"! Ao que replicou Sócrates: "É natural, sem dúvida, Críton, que assim procedessem as pessoas a que te referes, pensando, com efeito ganhar algo com isso. Quanto a mim, porém, também é natural que não faça nada, pois penso que, deixando para beber um pouco mais tarde o veneno, outra coisa não lucro senão ter-me tornado objecto de escárneo para mim mesmo, colocando-me, assim, à vida e procurando economizar quando não sobra mais nada! Basta, porém, de falar; vai, obedece e não me contraries".
        Assim interperlado, Críton fez sinal a um dos servidores que se mantinha perto. Este saiu e voltou ao cabo de verto tempo, trazendo consigo quem deveria ministrar o veneno já moído numa taça. Ao ver o homem Sócrates disse o seguinte:"Meu caro! Tu que estás ao corrente do assunto, dize-me o que devo fazer. _ Nada mais, respondeu, que dar uma volta depois de ter bebido, até que sintas tuas pernas pesadas, deita-te em seguida e permanece estirado: com isto ele produzirá efeito". Dizendo isto, estendeu a taça a Sócrates. Este tomou-a, conservando, toda a serenidade, sem um tremor sequer, sem a mínima alteração nem da côr nem dos traços. Mas, olhando na direcção do homem, um puco por baixo conforme seu hábito, com seus olhos de touro, interrogou:"Dize-me é permitido ou não oferecer a alguma divindade uma libação desta bebida? _ Sócrates, respondeu o homem, nós moemos apenas a dose necessária para beber. _ Entendido, disse ele. Mas, pelo menos, é permitido o que é aliás um dever, dirigir aos deuses uma prece pelo feliz êxito desta mudança de residência, daqui para lá em baixo. Eis minha prece: assim seja"! Logo que acabou de falar, sem parar, sem demonstrar a mínima resistência ou enjôo, bebeu até ao fundo.
        Então nós, que quase todos havíamos feito o máximo até aquele momento para não chorar, ao vermos que bebia, que já tinha bebido, não pudemos mais conter-nos; minhas forças foram ultrapassadas e minhas lágrimas, a mim também, correram abudantes, de tal forma que, com a face, velada, chorava até me fartar sobre minha sorte (pois, evidentemente não era sobre a dele) sim, sobre meu infortúnio de ser privado de semelhante companheiro! Críton, aliás, incapaz, já antes de mim, de reter as lágrimas, levantara-se para sair. Apolodoro, por sua vez, que já antes, não cessara um instante sequer de chorar, comecou, então, como era natural, a lançar tais rugidos de dor e de cólera, que esmagava o coração de todos os presentes, salvo do próprio Sócrates. "Que fazeis lá? exclamou este; sois mesmo extraordinários! Se mandei embora as mulheres, foi sobretudo pelo seguinte: para evitar da parte delas semelhante falta de medida; pois como me ensinaram, é com palavaras felizes que devemos terminar. Guardem, pois calma e firmeza"! Ao ouvir tal linguagem, sentimo-nos envergonhados e deixámos de chorar.
        Ele, porém, continuava a andar quando declarou que sentia as pernas tornarem-se pesadas. Então, deitou-se de costas, como efectivamente lhe recomendara o homem. Ao mesmo tempo, este aplicava a mão aos pés e às pernas examinando-o por intervalos. Em seguida, apertou-lhe fortemente o pé, perguntando-lhe se sentia; Sócrates respondeu que não. Depois, recomeçou na parte inferior das pernas e foi subindo para mostrar-nos que já começava a esfriar e a tornar-se hirto. E, tocando-o ainda, declarou-nos, que quando chegar ao coração, nesse momento Sócrates partirá. Já tinha pois, gelada quase toda a região do baixo-ventre, quando descobriu a face, que antes cobrira, e disse estas palavras, as últimas que pronunciou: "Críton, devemos um galo a Asclépios; pois bem, pagai minha dívida, pensai nela. _ Bom! Isto será feito, disse Críton. Mas vê se não tens mais nada a dizer". A pergunta de Críton ficou sem resposta. Ao cabo de curto momento, ele teve, entretanto, um sobressalto. Então, o homem descobriu-o: o seu olhar estava fixo. Vendo isto, Críton fechou-lhe a boca e os olhos.
        Assim, foi o fim que vimos dar a nosso companheiro, o homem do qual podemos dizer, com justiça, que, dentre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, foi o melhor, e, além disto, o mais sábio e o mais justo.

 

 in Platão, Fédon, 116b _ fim.

    

        A apologia de Sócrates permite-nos ter uma ideia pormenorizada da defesa proferida por Sócrates no julgamento, do que ficou na memória de Platão alguns anos depois, elaborado literariamente.

 

 Para consultar a apologia basta clicar em: http://www.Socrates.Clarke.edu/ 

          NOTA:  A obra "As Nuvens" foram representadas 23 anos antes da acusação de Sócrates é provável que, apesar do testemunho de Platão, a caricatura de Sócrates feita por Aristófenes não deva ter desempenhado um papel decisivo na citação em justiça e na condenação, além disso muitas outras personagens tinham sofrido os golpes de Aristófenes e tinham-se facilmente reerguido.

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt