Esta página retrata a morte de Sócrates reforçando-o como um Filósofo
surpreendente que não temeu a sua morte por envenenamento.
Quadro de David que representa
a morte de Sócrates:

"O processo e a condenação de
Sócrates testemunham o perigo que a ignorância faz correr ao saber, que o mal
faz correr à virtude. Mas este perigo não é senão aparente, pois, na
realidade, é o justo que triunfa dos seus carrascos se bem que seja vítima
deles, o triunfo de Sócrates sobre os seus juízes data do dia da sua execução."(
in Jean Brun, página 80)
Acusação a Sócrates
Condenação de Sócrates
Morte de Sócrates
Opiniões acerca da morte de Sócrates
Transposição poética e musical da morte de Sócrates
Dúvidas acerca da morte de Sócrates
Excerto do Fédon: "Assim Morreu Sócrates"
Acusação a
Sócrates:
Foi condenado em 399
a.C, Janeiro, com 71 anos, por uma acusação de "impiedade":
foi acusado de ateísmo e de corromper os jovens com a sua filosofia, mas na
realidade, estas acusações encobriam ressentimentos profundos contra Sócrates
por parte dos poderosos da época. O tribunal era constituído por 501 cidadãos. Entre as acusações houve uma que se referia à
introdução de novas entidades divinas negando os Deuses da pátria. Os
acusadores foram: Ânito, Meleto e Lícon.
Ânito que era um líder democrático tinha um filho discípulo de Sócrates que
ria dos deuses do pai e voltava-se contra eles. Representava a classe dos políticos.
Era um rico tanoeiro que representava os interesses dos comerciantes e
industriais, era poderoso e influente não sendo um homem de escrúpulos e
finezas da moral interior. Foi o mais importante dos acusadores e foi aquele que
deu a impressão de conhecer Sócrates, que a ele alude como de Meleto fosse seu
subordinado, como se deste tivesse originado a ideia de pena de morte para
persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo tivesse
seguimento.
Meleto era um poeta trágico novo e desconhecido
de cabelo raro, barba escassa e nariz adunco, era o acusador oficial, porém
nada exigia que ele como acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou
temível, mas somente aquele que assinava a acusação. Representava a
classe dos poetas e adivinhos.
Pouco se sabe de Lícon. Era um retórico obscuro
e o seu nome teve pouca importância e autoridade no decorrer da condenação de
Sócrates. Representava a classe dos oradores e professores de retórica.
Talvez Lícon pretendesse a condenação de Sócrates, devido ao seu filho
ter-se deixado corromper moralmente, filosoficamente e sexualmente por Callias,
e Callias era um associado de Sócrates.
Meleto assim
disse:
"...Sócrates é culpado do crime de não reconhecer os deuses
reconhecidos pelo Estado e de introduzir divindades novas; ele é ainda culpado
de corromper a juventude. Castigo pedido: a morte" .
( in Jean Brun, página
37
)

Condenação
de Sócrates:
O acusador tinha
pedido a morte e o tribunal havia reconhecido Sócrates culpado por
maioria, era portanto do interesse de Sócrates propor uma pena aceitável como
adequada. A lei ateniense permitia que Sócrates propusesse uma pena inferior. O
tribunal tinha de escolher entre a pena da sentença e a proposta pela
defesa.
Figura do tribunal de
Atenas onde Sócrates foi condenado:
Então Sócrates interrogou o acusador
Melitus acerca de quem é que melhorava a cidade. Melitus citou primeiro os juízes;
depois gradualmente, acabou por dizer que todos, excepto Sócrates, melhoravam a
cidade. Então Sócrates felicitou a cidade pela sua boa sorte e referiu que era
melhor viver entre homens bons do que entre maus; e portanto não podia ser tão
louco que corrompesse os concidadãos intencionalmente; mas se era sem intenção,
Meleto devia instruí-lo e não persegui-lo. Sócrates também realçou que
entre os presentes havia discípulos seus e pais e irmãos deles; nenhum foi
chamado a testemunhar que ele corrompia a juventude. Recusou seguir o costume de
apresentar os filhos chorosos para comover os juízes. Tais cenas tornavam ridículos
o acusado e a cidade. A sua tarefa era convencer os juízes e não pedir-lhes um
favor.
Sócrates propôs uma multa de trinta
minas, de que qualquer dos amigos (incluindo Platão) tomaria a
responsabilidade. Mas o castigo era tão pequeno que o tribunal irritou-se e
o condenou à morte por maioria superior à que o declarara culpado, ou seja a
sua condenação à morte foi votada por 281 contra 220, com mais 80 votos do que havia sido
votada a sua culpabilidade. Sem dúvida ele previra o resultado; é claro que não
queria evitar a pena de morte por concessões que pareceriam reconhecimento da
culpa.
Depois da sentença e rejeitada a
alternativa da pena de 30 minas, Sócrates fez uma última exposição, legando
aos juízes a responsabilidade da sua morte para a eternidade e ao mesmo tempo
realizou uma profecia:
"Eu predigo-vos portanto, a vós
juízes, que me fazeis morrer, que tereis de sofrer, logo após a minha morte,
um castigo muito mais penoso, por Zeus, que aquele que me infligis matando-me.
Acabais de condenar-me na esperança de ficardes livres de dar contas da vossas
vida; ora é exactamente o contrário que vos acontecerá, asseguro-vos (...)
Pois se vós pensardes que matando as pessoas, impedireis que vos reprovem por viverem mal, estais
em erro. Esta forma de se desembaraçarem daqueles que criticam não é nem
muito eficaz nem muito honrosa. ( in Jean Brun, página 40)
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Se quiser saber como eram escolhidos os Juízes do tribunal clique em: Juízes
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Sócrates em tribunal propôs uma multa de 30 minas, se quiser saber qual a
moeda usada de Atenas clique em: dracma
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Platão considerou que
não foi por razões religiosas que Sócrates recebeu a condenação, mas sim
por questões evidentemente políticas. No Ménon Ânito, já havia ameçado Sócrates dizendo-lhe que com muita facilidade
se dedicava à
maledicência, e que o aconselhava, se o quisesse ouvir, que tivesse cuidado.
De facto, Sócrates mostrou mediante palavras e actos, a sua obstinada repulsa
aos governos democráticos. Xenofonte, também atribui a acusação a Sócrates
por Ânito,a uma facto de ordem pessoal, pelo desejo de vingança, pois Sócrates
havia recriminado Ânito publicamente, por não pensar na educação do seu
filho senão para fazer dele um tanoeiro, capaz de seguir as pisadas da empresa
paternal. O propósito não era a morte de Sócrates mas sim afastá-lo de
Atenas e se isso não ocorreu deveu-se à demasiada teimosia de Sócrates que em
vez de escolher o exílio preferiu a proposta duma multa irrisória, vindo a ser
por conseguinte, condenado.
Há filósofos que
acreditam que Sócrates recusou-se a defender perante o tribunal popular indo de
encontro à sua condenação porque o seu demónio nada lhe disse para se
afastar da condenação.
Morte de Sócrates:
Imagem
que representa a prisão de Sócrates, numa caverna, junto da Acrópole:

Sócrates deixou os
juízes e foi para a prisão, teve que esperar mais de um mês a morte no cárcere,
pois uma lei vedava as execuções capitais durante a viagem votativa de um
navio sagrado a Delos. Este navio sagrado ía todos os anos à ilha natal de
Apolo para celebrar a ajuda que o Deus Apolo havia dado a Teseu para vencer um
minotauro (monstro) que obrigou durante anos Atenas a pagar um cruel contributo.
A lei exigia que nenhuma execução tivesse lugar antes do regresso do navio.
Por isso, Sócrates ficou a ferros 30 dias, sobre custódia dos Onze,
magistrados encarregados, em Atenas, da polícia e da administração penitenciária.
Durante estes 30 dias recebeu os seus amigos e conversou
com eles. Uma manhã o discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre,
porém Sócrates recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às
leis da pátria. E passou o tempo preparando-se para o passo extremo em
palestras espirituais com os amigos. Especialmente famoso é o diálogo sobre a
imortalidade da alma que se teria realizado pouco antes da morte e foi descrito
por Platão no Fédon com arte incomparável.
Após 3 dias a proposta de Críton, deu-se o dia
da execução. Estiveram presentes todos os amigos de Sócrates excepto
Aristipo, Xenofonte (estava na Ásia) e Platão (estava doente), Xantipa e
seus filhos.
Recusou ser vestido depois de morto por uma rica túnica
que Apolodoro lhe havia trazido, preferia o seu manto que havia sido
suficientemente bom até ali e que continuaria a sê-lo depois da sua morte.
Passou os seus últimos momentos a conversar sobre a imortalidade da alma. Tomou
um banho, e antes que o sol tivesse inteiramente desaparecido no horizonte pediu
o veneno. Críton argumentou proferindo que Sócrates ainda tinha tempo pois o
sol ainda ía sobre as montanhas. No entanto Sócrates não quis adiar o inevitável
uma vez que não valia apena economizar quando já não lhe sobrava mais nada.
Pediu o veneno e pegou na taça de cicuta com uma mão firme e bebeu sem
desgosto nem hesitação até ao fundo.
Momento em que Sócrates
pegou na taça de cicuta:

Nesta altura todos os seus amigos
romperam num amargurado pranto. Choravam descontroladamente, mas Sócrates
encorajou-os:
"Estejam calmos, então, tenham firmeza"
in Platão, Fédon, 116b _ fim.
Explicou-lhes que havia mandado embora as mulheres para evitar da parte delas
essa mesma atitude de pranto. Era com palavras felizes que devia terminar.
Assim que começou a sentir as pernas pesadas
deitou-se, tal como lhe havia recomendado o carcereiro. O veneno iria subindo
progressivamente, até que quando chegasse ao coração seria o fim. Sócrates
proferiu então:
"Críton, somos devedores de um galo a Asclépio; pois bem pagai a
minha dívida, pensai nisso".
in Platão, Fédon, 116b _ fim.
Críton ainda lhe perguntou se não teria mais nada a dizer, mas estas foram as
suas últimas palavras. Sócrates após um último sobressalto morreu e o seu
amigo Críton fechou-lhe os olhos.

Opiniões acerca da morte de
Sócrates:
A Injustiça da
Morte de Sócrates:
Platão colocou o problema
da educação dos homens e da organização da cidade no centro da sua
filosofia, para ele a filosofia devia dar-nos a luz que nos permitisse encontrar
a justiça na vida privada e na vida pública. Platão nunca compreendeu que um
homem como Sócrates que sempre levou uma vida exemplar, que defendeu a
cidade quando esta se encontrava em perigo, que sempre levou os atenienses a
reflectir de modo que se tornassem melhores, pudesse ter sido assassinado pela
sua cidade, sobrepondo-se o mal ao bem, a injustiça à justica, a mentira á
verdade. Como poderia ter sido a cidade de Atenas tão ingrata com Sócrates que
sempre discursou pela verdade e com verdade. Platão dedicou a sua vida a
denunciar a tragédia do homem na cidade, homem esse que foi vítima da cidade
que tanto amou.
O acto de patriotismo:
Há também
quem acredite que Sócrates como figura monstruosa tinha que desaparecer, pois
para os atenienses a beleza física devia acompanhar a beleza moral, e Sócrates
neste aspecto revelava-se um escândalo para Atenas. O filósofo Edélestand
du Méril escreve mesmo que os acusadores de Sócrates fizeram um acto de
patriotismo. Afirma que
a história que sabe o passado e o compreende, honra-os
como Atenienses(...)Neste processo(...) toda uma República se defendia contra
um homem"
Paralelo
entre a morte de Sócrates e de Jesus Cristo:
Sócrates
e Jesus eram ambos pessoas carismáticas e consideradas enigmáticas ainda em
vida. Nenhum dos dois deixou qualquer escrito, e precisamos confiar na imagem e
impressões que eles deixaram em seus discípulos e contemporâneos. Ambos eram
mestres da retórica e tinham tanta autoconfiança no que falavam que podiam
tanto arrebatar quanto irritar os seus ouvintes. Ambos acreditavam falar em nome
de uma coisa que era maior que eles mesmos. Ambos desafiavam agudamente os que
detinham o poder na sociedade, apontando sem piedade as hipocrisias e falsos
fundamentos em que se assentavam para cometer toda a sorte de abusos e injustiças.
Foi isto que no fim lhes custou a vida. Afinal, os que questionam são sempre
perigosos para os poderosos e pseudo-sábios de todas as épocas. Tal como
Cristo que era um revolucionário, que foi acusado e executado confirmando
pela sua morte a verdade do seu ensinamento, Sócrates também morreu pela
verdade pois o seu sentimento interior foi em contradição da crença religiosa
e da constituição política do seu povo. Cristo era um homem como Sócrates,
um Mestre cuja vida foi virtuosa e que tornou o homem consciente do que era a
verdade em geral, do que deve formar o fundamento da consciência. Foram duas
individualidades com destinos semelhantes.
Apesar da semelhança entre os destinos de Cristo e Sócrates, há diferenças
na forma como ambos morreram. A morte de Cristo foi por um lado a morte de um
homem, de um amigo que a violência fez morrer que se tornou a salvação dos
homens. A morte de Jesus foi uma lenta e longa agonia que começou com a subida
ao calvário. Jesus morreu no meio de tormentos e de injúria, com uma morte
em comunhão na medida que estava rodeado doutros homens pregados na cruz.
Comunicou na morte com aquele que agonizava perto de si. A sua morte foi
tragicamente vivida, foi uma morte ensaguentada em que Jesus sofreu lentamente a
dor dos pregos em suas mãos e da coroa de espinhos em sua cabeça. Jesus morreu
solitário na cruz, no monte das oliveiras,em grande sofrimento e agonia
gritando:
"Meu Deus porque me abandonaste?",
( in Jean Brun, página 99)
Imagem
de Cristo:
Sócrates, por sua vez passou os seus
últimos momentos rodeado dos amigos. Ultrapassou a ideia de morte pela mesma
ideia que tinha da morte, ela trágica para os seus amigos mas não para si.
Morreu na prisão pacificamente sem dor, sem nunca alterar nenhum dos traços do
seu rosto nem que a sua voz mudasse, e apesar de morrer rodeado dos amigos,
esteve sozinho na morte. A grande diferença traduz-se simplesmente em que
Cristo foi verdadeiramente possuído pela morte, vivendo a morte. Sócrates por
seu lado pensou a sua morte.
Sócrates
o mártir cristão:
Sócrates
retratou bem um homem de certo tipo: seguro de si, de espírito elevado,
indiferente ao êxito mundano, confiante numa voz divina guiadora, convicto de
ser o pensamento claro e o melhor caminho para a vida recta. Pareceu ser um mártir
cristão. Sócrates quando pensava no que sucedia após a morte, transparecia a
sua crença firme na imortalidade e que a dúvida professada era apenas hipotética.
Não o perturbava, como aos cristãos, o medo da pena eterna; não duvidava da
felicidade no outro mundo. No Fédon Sócrates dá razões de crêr na
imortalidade. Quando Sócrates foi condenado à morte, comentou
alegremente que no outro mundo poderia fazer perguntas eternamente sem ser
condenado a morrer, porque era imortal. Por
outras alturas Sócrates havia já referido que se preocupava com a morte como
se de nada se tratasse e que a sua única preocupação era a de nada
fazer injusto nem de ímpio.
Sócrates é tido simultaneamente como o herói
da linguagem e o seu mártir, pois apenas pelo recurso á palavra conduzia os
interlocutores em direcção ao caminho do verdadeiro, no entanto, foi vencido
pelos discursos dos seus acusadores.
O conhece-te a ti próprio pode recolocar-se numa perspectiva cristã na medida
em que a última palavra do conhecimento coincide com a primeira palavra de um
conhecimento de Deus; o conhecimento de si está aqui subordinado a uma doutrina
de salvação. É porque o homem foi feito à imagem de Deus que o conhecimento
de si é abertura para o mistério da divindade.
Sócrates
facilmente se integrou numa corrente espiritual totalmente estranha em seu príncipio,
à sabedoria grega, isto é o cristianismo. Os primeiros Padres da igreja
consagraram a Sócrates e aos socráticos o conhecimento parcial de Cristo. Pois
no século II dá-se uma integração de Sócrates e da filosofia socrática no
movimento espiritual da fé cristã. São Justino atribuiu a Sócrates ser a
ponte entre a filosofia pagã e o cristianismo, afirmando
que a filosofia grega entecipou o cristianismo na pessoa de alguns pensadores
tais como o Sócrates que viveram antes de Cristo. Esses pensadores
estabeleceram um paralelo entre a filosofia de Sócrates como um trabalho de
preparação cristã, na medida que a sua filosofia seria o conhecimento da
perfeição espiritual. A missão de Sócrates baseva-se em que as pessoas se
conhecessem a si próprias, conhecessem a sua consciência. Isto levaria a
filosofia como sinónimo de doutrina cristã.
Sócrates contribuiu para que as
pessoas se apercebessem da descoberta da evidência que é a manifestação do
mestre interior à alma. Conhecer-se a si mesmo seria conhecer Deus em si.
Sócrates
cristão encarna a fusão da mensagem socrática e do ensinamento cristão
que forma o pensamento. No século XVII Balzac elaborou: Sócrates Cristão.
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Transposição
poética e musical da morte de Sócrates:
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Em 1823 Lamartine fez
uma transposição poética da morte de Sócrates. |
Erik Satie elaborou uma obra
musical referente à morte de Sócrates. |
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Dúvidas acerca
da morte de Sócrates:
Existem
autores que consideram que a descrição da morte de Sócrates no Fédon de
Platão é completamente inconsistente com os efeitos conhecidos da cicuta.
Pensam portanto que no relato da morte de Sócrates alguém estava a mentir.

Excerto
do Fédon: "Assim Morreu Sócrates"
"... O sol já estava prestes a se
pôr; pois Sócrates passara muito tempo neste lugar. Assentara-se, ao voltar do
banho e, a partir daquele momento, a palestra foi muito breve. Chegou, então, o
servidor dos Onze e, de pé diante dele, disse-lhe: "Sócrates, não tenho
nenhum motivo para te censurar justamente naquilo que incrimino aos outros!
Encolorizam-se contra mim e crivam-me de imprecações, quando convido-os a
beber o veneno, pois tal é a ordem dos Magistrados. Quanto a ti, porém, já
noutras ocasiões tive tempo suficiente para compreender que és o homem mais
generoso, mais doce e melhor de quantos jamais aqui entraram. E, muito
especialmente hoje, tenho plena certeza que não é contra mim que se dirige a
tua cólera, pois conheces, com efeito, os responsáveis, mas contra estes.
Agora, portanto, como não ignoras o que vim te anunciar, adeus! Procura
suportar da melhor maneira aquilo que é fatal"! Começou, ao mesmo tempo,
a chorar e, voltando as costas, afastou-se. Sócrates, levantando os olhos para
ele, disse-lhe: "A ti também, adeus! No tocante a nós, seguiremos tua
recomendação"! A esta altura, Sócrates voltou-se para nosso lado e
disse: "Quanta gentileza neste homem! Durante toda a minha estada aqui, ele
vinha procurar-me e se entretinha, por vezes, a conversar comigo: em suma, um
homem excelente. E hoje, que generosidade na maneira como chora a minha sorte!
Vamos, pois! Obedeçamos-lhe, Críton. Tragam-me o veneno se já estiver socado;
caso ainda não esteja, que disse se ocupe quem estiver encarregado"!
Então Críton disse: "Mas Sócrates,
se não me engano, o sol ainda está sobre as montanhas e não acabou de se pôr.
Também ouvi dizer que outros beberam o veneno muito tempo depois de terem
recebido o convite, e isto só depois de haverem comido e bebido á saciedade,
alguns mesmo depois de ter tido comércio com as pessoas com quem pudessem ter
vontade. Vamos! Nada de precipitações: há tempo ainda"! Ao que replicou
Sócrates: "É natural, sem dúvida, Críton, que assim procedessem as
pessoas a que te referes, pensando, com efeito ganhar algo com isso. Quanto a
mim, porém, também é natural que não faça nada, pois penso que, deixando
para beber um pouco mais tarde o veneno, outra coisa não lucro senão ter-me
tornado objecto de escárneo para mim mesmo, colocando-me, assim, à vida e
procurando economizar quando não sobra mais nada! Basta, porém, de falar; vai,
obedece e não me contraries".
Assim interperlado, Críton fez sinal
a um dos servidores que se mantinha perto. Este saiu e voltou ao cabo de verto
tempo, trazendo consigo quem deveria ministrar o veneno já moído numa taça.
Ao ver o homem Sócrates disse o seguinte:"Meu caro! Tu que estás ao
corrente do assunto, dize-me o que devo fazer. _ Nada mais, respondeu, que dar
uma volta depois de ter bebido, até que sintas tuas pernas pesadas, deita-te em
seguida e permanece estirado: com isto ele produzirá efeito". Dizendo
isto, estendeu a taça a Sócrates. Este tomou-a, conservando, toda a
serenidade, sem um tremor sequer, sem a mínima alteração nem da côr nem dos
traços. Mas, olhando na direcção do homem, um puco por baixo conforme seu hábito,
com seus olhos de touro, interrogou:"Dize-me é permitido ou não oferecer
a alguma divindade uma libação desta bebida? _ Sócrates, respondeu o homem, nós
moemos apenas a dose necessária para beber. _ Entendido, disse ele. Mas, pelo
menos, é permitido o que é aliás um dever, dirigir aos deuses uma prece pelo
feliz êxito desta mudança de residência, daqui para lá em baixo. Eis minha
prece: assim seja"! Logo que acabou de falar, sem parar, sem demonstrar a mínima
resistência ou enjôo, bebeu até ao fundo.
Então nós, que quase todos havíamos
feito o máximo até aquele momento para não chorar, ao vermos que bebia, que já
tinha bebido, não pudemos mais conter-nos; minhas forças foram ultrapassadas e
minhas lágrimas, a mim também, correram abudantes, de tal forma que, com a
face, velada, chorava até me fartar sobre minha sorte (pois, evidentemente não
era sobre a dele) sim, sobre meu infortúnio de ser privado de semelhante
companheiro! Críton, aliás, incapaz, já antes de mim, de reter as lágrimas,
levantara-se para sair. Apolodoro, por sua vez, que já antes, não cessara um
instante sequer de chorar, comecou, então, como era natural, a lançar tais
rugidos de dor e de cólera, que esmagava o coração de todos os presentes,
salvo do próprio Sócrates. "Que fazeis lá? exclamou este; sois mesmo
extraordinários! Se mandei embora as mulheres, foi sobretudo pelo seguinte:
para evitar da parte delas semelhante falta de medida; pois como me ensinaram,
é com palavaras felizes que devemos terminar. Guardem, pois calma e
firmeza"! Ao ouvir tal linguagem, sentimo-nos envergonhados e deixámos de
chorar.
Ele, porém, continuava a andar
quando declarou que sentia as pernas tornarem-se pesadas. Então, deitou-se de
costas, como efectivamente lhe recomendara o homem. Ao mesmo tempo, este
aplicava a mão aos pés e às pernas examinando-o por intervalos. Em seguida,
apertou-lhe fortemente o pé, perguntando-lhe se sentia; Sócrates respondeu que
não. Depois, recomeçou na parte inferior das pernas e foi subindo para
mostrar-nos que já começava a esfriar e a tornar-se hirto. E, tocando-o ainda,
declarou-nos, que quando chegar ao coração, nesse momento Sócrates partirá.
Já tinha pois, gelada quase toda a região do baixo-ventre, quando descobriu a
face, que antes cobrira, e disse estas palavras, as últimas que pronunciou:
"Críton, devemos um galo a Asclépios; pois bem, pagai minha dívida,
pensai nela. _ Bom! Isto será feito, disse Críton. Mas vê se não tens mais
nada a dizer". A pergunta de Críton ficou sem resposta. Ao cabo de curto
momento, ele teve, entretanto, um sobressalto. Então, o homem descobriu-o: o
seu olhar estava fixo. Vendo isto, Críton fechou-lhe a boca e os olhos.
Assim, foi o fim que vimos dar a
nosso companheiro, o homem do qual podemos dizer, com justiça, que, dentre
todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, foi o melhor, e, além disto, o
mais sábio e o mais justo.
in Platão, Fédon, 116b _ fim.
A apologia de Sócrates permite-nos ter
uma ideia pormenorizada da defesa proferida por Sócrates no julgamento, do que
ficou na memória de Platão alguns anos depois, elaborado literariamente.

NOTA: A obra "As Nuvens" foram
representadas 23 anos antes da acusação de Sócrates é provável que, apesar
do testemunho de Platão, a caricatura de Sócrates feita por Aristófenes não
deva ter desempenhado um papel decisivo na citação em justiça e na condenação,
além disso muitas outras personagens tinham sofrido os golpes de Aristófenes e
tinham-se facilmente reerguido.

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