Vida de Sócrates

 

SÓCRATES

 470 - 399 a.C.

 

       Sócrates é talvez a personagem mais enigmática de toda a história da filosofia. Talvez pelo simples facto de não ter escrito nem uma linha. Apesar disso, pertence ao número de Filósofos que exercem maior influência no pensamento Europeu. Mesmo quem não possui muitos conhecimentos de Filosofia, conhece certamente esta personagem e principalmente toda a tragédia da sua morte. Nesta página retratamos a vida de Sócrates no que diz respeito à sua educação, sua vida familiar, sua vida política, sua aparência, seu carácter, seu círculo de amigos e a relação que estabelecia com os seus discípulos. Há ainda uma referência e análise de uma célebre frase  que Sócrates proferiu.

   

A VIDA DE SÓCRATES

 

       Abordamos de forma pormenorizada os seguintes temas referentes à vida de Sócrates:

                Breve biografia e Educação

  Vida Familiar

  Vida Política

Aparência Física de Sócrates

Carácter

Círculo de Amigos

Mestre e Discípulo  

Frase Célebre

                   

Biografia/Educação

     Sócrates nasceu em Atenas, cidade da Grécia.

 

Figura que ilustra a Grécia Antiga nomeadamente Atenas:

 

A Grécia (actual) e as ilhas e costas do mar Egeu:

 

         Nasceu no demo de Álopécia, em 470( a.C), isto é no fim das guerras médicas pelas quais os Gregos puseram fim à hegemonia dos Persas no Mediterrâneo. A sua mãe, Fenarete, era parteira; o seu pai, Sofronisco, era escultor; por isso Sócrates dizia gracejando que descendia de Dédalo, o ancestral de todos os escultores.

Segundo uma tradição, Sócrates teria exercido primeiro a profissão do seu pai, ele teria sido mesmo um escultor de valor pois que se lhe atribuía o grupo das «Graças vestidas» que se encontrava defronte da Acrópole e que se podia ver ainda no século II.

Platão e Xenofonte eram formais: «Sócrates era muito pobre, aliás Aristófanes não teria deixado de nos falar de um Sócrates usuário se o mais pequeno facto lhe tivesse permitido dar qualquer crédito a esta afirmação.»

É possível que Sócrates tivesse recebido a educação tradicional que recebiam os jovens atenienses do seu tempo: ele teve que aprender a música, a ginástica e a gramática, isto é, o estudo da língua apoiado por comentários de textos.

  Se quiser pormenores sobre a educação tradicional clique em: Trabalho da Paideia.

 

 Estudando a obra de Homero (A Ilíada e A Odisséia, que contavam a história da guerra de Tróia, dos gregos contra os troianos, e do retorno do herói Ulisses para sua terra natal. São de carácter épico. Muitos chegaram a duvidar da existência de Homero, ou disseram que ele seria só um colector de contos do folclore popular, e não o legítimo autor.)

 

  Se quiser pormenores sobre Homero clique em: Trabalho de Homero.

 

A esta educação que Sócrates recebeu dos seus mestres, é preciso acrescentar a que lhe pôde dar o século excepcionalmente brilhante que foi o século V que começa: Ésquilo morreu quando Sócrates tinha 14 anos, Sófocles e Eurípides eram uma dezena de anos mais velhos que Sócrates, numa palavra, nós estavamos no século dito de Péricles.  

 

Imagem de Péricles, representado com o capacete militar dos estrategos:

Uma outra tradição, menos fantasista, é a que afirma que Sócrates seguiu as lições de Arquelau e as de Anaxágoras.

 
Figura de Anaxagoras numa moeda.

Runes, Pictoral History of Philosophy

 

 Pretendeu-se que com Arquelau a especulação filosófica se tinha inflectido da física para a moral e que Sócrates não tinha feito senão apanhar o seguimento desta tradição, diz-se mesmo que Sócrates acompanhou Arquelau a Samos; mas também aí nos encontramos em face de afirmações discutíveis pois que, segundo Platão, Sócrates nunca saiu de Atenas, salvo para as expedições militares e uma vez para se deslocar aos jogos ístmicos. No que concerne Anaxágoras não é impossível que Sócrates, ainda novo, o tenha ouvido falar em Atenas, mas se se acreditar na autobiografia de Sócrates numa passagem célebre do Fédon, Sócrates não deve ter admirado durante muito tempo o pensamento deste filósofo:

 «Um dia ouvi fazer uma leitura de um livro que era, dizia-se, de Anaxágoras, e onde estava contida esta linguagem: "Foi em definitivo o Espírito que tudo pôs em ordem, é ele que é causa de todas as coisas". Uma tal causa fez a minha alegria. [...] Pois bem! Adeus à maravilhosa esperança! Eu afastava-me dela perdidamente. Avançando com efeito na minha leitura, vejo um homem que não faz nada do Espírito, que não lhe imputa também nenhum papel nas causas particulares da ordem das coisas, que, pelo contrário, alega a este propósito acções do ar, do éter, da água, e uma quantidade de outras explicações desconcertantes.» ( in Jean Brun, página 29)  

Para Sócrates, uma tal explicação era tão pobre como aquela que diria que se Sócrates estava sentado neste momento na prisão, era unicamente porque os seus ossos e os seus músculos permitiam, pelas suas articulações, que ele ocupasse neste lugar a posição sentada.

Entre os mestres em contacto com os quais Sócrates teria formado o seu pensamento, Máximo de Tiro cita duas mulheres: Aspásia de Mileto, uma cortesã, Diotima de Mantineia, uma sacerdotisa. Da primeira Platão fala no Menéxeno mas é evidente que Sócrates ironiza fazendo dela uma professora de eloquência, Xenofonte fala igualmente dela a propósito de Sócrates, e segundo Ésquino foi ela que teria ensinado a Sócrates a doutrina do amor que torna os homens melhores. Quanto a Diotima, ela é sobretudo conhecida pela célebre passagem do Banquete onde a sacerdotisa de Mantineia faz o relato do nascimento do Amor, alguns só viram nela uma personagem lendária, outros, como R. Godel vêem nela uma iniciada nos mistérios, que teria desempenhado um papel importante na formação intelectual de Sócrates.  

Para terminar com este inventário das influências possíveis na educação e formação de Sócrates, diremos que, por muito que Sócrates tenha conhecido ou lido dos filósofos anteriores ou contemporâneos, não foi a partir do que predecessores lhe tenham podido legar que nós reencontraremos o sentido profundo da mensagem socrática, pois, como explicava Sócrates, o filósofo deve ser o próprio artesão da sua sabedoria (Xenofonte, Banquete).

   

  Vida Familiar

 

        Sobre a vida familiar de Sócrates possuímos alguns detalhes nem sempre concordantes, o que é certo é que Sócrates desposou Xantipa. Alguns autores pretendem que ele teria sido primeiro marido de Mirto, filha de ou neta de Aristides, o Justo, outros afirmam mesmo que ele teria sido simultaneamente o marido de Mirto e de Xantipa; sendo a monogamia uma instituição ateniense, pretendeu-se que Sócrates teria aproveitado um decreto excepcional que incitava os Atenienses à poligamia a fim de aumentar a taxa de natalidade de uma Atenas esgotada pela guerra e pela doença; na realidade parece mesmo que o decreto em questão reconhecia, em certas condições, o título de homens livres a filhos nascidos fora do casamento. O mau carácter de Xantipa era proverbial em toda a Antiguidade, ela deixou a reputação de uma mulher irascível. Xenofonte diz-nos que ela era a mais insuportável das mulheres passadas, presentes e vindouras e não faltam anedotas que no-la representam sempre a gritar, atirando um vaso de água à figura do seu marido ou virando a mesa ao contrário quando Sócrates convida um amigo para jantar. Sócrates teve a seu respeito uma atitude paciente e resignada e não viu provavelmente nela a ajuda que lhe era necessária para levar a bom termo o seu dever cívico de paternidade. Alcibíades espantava-se com a paciência de Sócrates perante esta esposa sempre ocupada em gritar: 

    «E tu, diz-lhe Sócrates, não suportas os gritos dos teus gansos? - Sim, responde Alcibíades, mas eles dão-me ovos e gansinhos. - Pois bem, replica Sócrates, Xantipa dá-me filhos.» Interrogado no sentido de se saber se o casamento era preferível ao celibato, Sócrates respondeu: «Qualquer que fosse o partido que escolhêsseis, vós arrepender-vos-íeis dele».  ( in Jean Brun, página 31)  

      É conhecida a passagem do princípio do Fédon, em que Sócrates vê a sua mulher pela última vez. Rodeada dos discípulos Xantipa proferiu maldições e discursos absolutamente do género habitual nas mulheres, ela disse:

     "Eis, Sócrates, a última vez que conversarão contigo os que te estão ligados, e tu com eles!"  ( in Jean Brun, página 31)  

        Sócrates lançou um olhar para o lado de Críton: "Críton, diz ele, levem-na para casa!"( in Jean Brun, página 31)  E enquanto que a levavam alguns dos homens de Críton, ela vociferava batendo-se no peito.»  

        Não é impossível, também, que a lenda tenha feito de Xantipa um carácter caricatural não sendo senão poucas relações com a verdade.

        Sócrates teve três filhos, o mais velho Lâmprocles, Sofronisco e Menéxeno; segundo certas tradições, uns seriam de Mirto e os outros de Xantipa, mas nada permite pronunciar-se sobre este ponto com certeza.

 

Vida Política

 

        A vida política de Sócrates é-nos melhor conhecida. Sócrates tomou parte em três campanhas militares na qualidade de hoplita, isto é de soldado de infantaria. No princípio da guerra do Peloponeso  esteve no cerco de Potideia, em Calcídica, de 432 (a.C) a 429 (a.C).
 

    Imagem da guerra do Peloponeso:

     Aí teve Alcibíades como companheiro de armas, salvou-o quando este, ferido, estava prestes a cair nas mãos dos inimigos; foi aliás a Alcibíades e não a si próprio, que Sócrates pediu que fosse atribuído o prémio da bravura que o exército queria conferir-lhe. N'O Banquete, Alcibíades fala-nos da conduta de Sócrates em Potideia: 

    «Primeiro que tudo não há dúvida que no resistir às fadigas, ele foi superior, não somente a mim, mas também, em bloco, a todos os outros! Sempre que as comunicações ficavam cortadas num qualquer ponto, como acontece em campanha, ficávamos forçosamente privados de mantimentos, os outros no suportá-lo não eram nada ao pé dele. [...] No suportar os rigores do Inverno (pois neste país os Invernos são terríveis), ele maravilhava. Assim um dia, entre outros, que tínhamos o mais terrível nevão que se possa imaginar e que cada um ou bem que se abstinha de deixar o abrigo ou então em todo o caso não saía senão coberto por um montão de coisas extraordinárias, os pés amarrados e enrodilhados em tiras de feltro ou de pele de cordeiro, ele ao contrário, nesta ocorrência, saía não tendo sobre ele outro manto senão aquele mesmo que costumava trazer anteriormente, e, pés nus, ele circulava sobre o gelo mais facilmente que os outros com as peúgas curtas: de modo que os soldados o olhavam sem levantar os olhos, convencidos de que a sua intenção era a de os humilhar.»  ( in Jean Brun, página 32)  

  Se quiser saber um pouco da biografia de Alcibíades clique em: Círculo de Amigos que se encontra no início desta página.

  

        Além disso a guerra não interrompeu as meditações de Sócrates; Alcibíades diz-nos que Sócrates ficou imóvel no mesmo local durante vinte e quatro horas, mergulhado nos seus pensamentos, não parecendo mesmo ver os soldados que o observavam estupefactos.

        Em 424 (a.C), cinco anos depois da peste de Atenas, encontramos Sócrates na batalha de Délio onde as tropas atenienses são esmagadas pelos Tebanos.  

         É lá que Sócrates salva a vida a Xenofonte que não era capaz de se livrar do seu cavalo que tinha caído sobre ele.     

  Se quiser saber um pouco da biografia de Xenofonte clique em: Círculo de Amigos que se encontra no início desta página.

         Sócrates livrou-o deste mau momento e transportou-o sobre os seus ombros durante um longo trajecto a fim de o subtrair aos inimigos. Alcibíades descreveu-nos Sócrates durante a retirada:

     «Eu tinha, sim, absolutamente a impressão de que, como diz este verso que é teu, Aristófanes, aí também ele circulava, exactamente como em Atenas: "empertigando-se e lançando olhares oblíquos", dirigindo com a calma a sua atenção para todos os lados, e para os amigos, e para os inimigos; não deixando dúvidas a ninguém, mesmo de muito longe, que, se o atacassem, ele era homem para se defender e com um sólido vigor! Era mesmo o que lhes garantia, a ele como a outro, a segurança da sua retirada; pois na guerra gosta-se pouco de provocar, por pouco que seja, os galhardos desta têmpera, enquanto que àqueles que fogem em desordem, perseguem-nos ardorosamente.» ( in Jean Brun, página 32)

        Enfim, em 422 (a.C), Sócrates toma parte na expedição de Anfípolis a respeito da qual não temos nenhum pormenor.

        Mas Sócrates não mostrou somente a coragem nas peripécias da guerra, ele deu igualmente provas dela por ocasião de várias circunstâncias da sua vida cívica. Em 406 as frotas de Atenas tinham trazido consigo uma vitória sobre os Lacedemónios, nas Arginusas, mas a tempestade tinha impedido que se recolhessem os corpos, ao que a lei ateniense obrigava sob pena de morte. Os generais foram tidos por responsáveis e chamados ao tribunal da pritania. Este tribunal era composto por cinquenta membros, escolhidos entre o Conselho dos Quinhentos, que ,durante cinco semanas, exerciam a sua função. O acaso fez que a tribo de Antióquides, de que Sócrates fazia parte, tivesse que exercer as suas funções nessa época; além disso, a sorte designou Sócrates como presidente da mesa. O povo e os acusadores queriam fazer condenar todos os generais por uma só e única sentença, o que era contrário à lei ateniense que exigia que houvesse um julgamento por acusado. Apesar dos protestos e das ameaças, Sócrates permaneceu inflexível e fez aplicar a lei exigindo tantos julgamentos quantos os acusados.

        Dois anos mais tarde, durante a tirania dos Trinta, quando estes procediam  a numerosos massacres, Sócrates recusou participar na detenção de Leão, o Salaminense, como os Trinta lhe tinham dado ordem,

     «pois eles frequentemente deram a muitos outros ordens deste género para associar à sua responsabilidade o maior número possível de cidadãos. Nesta circunstância, eu fiz ver ainda, não por palavras, mas pelos meus actos, que, se é que eu o posso dizer sem vos chocar, eu me preocupo com a morte como se de nada se tratasse e que a minha única preocupação, é a de nada fazer de injusto nem de ímpio. Por isso esse poder, por muito forte que fosse, não me impressionou ao ponto de me fazer cometer uma injustiça. Quando saímos de tholos (sala onde os prítanes exerciam as suas funções), os outros quatro partiram para Slamina e de lá trouxeram Leão, e no que me diz respeito eu voltei para minha casa. E eu talvez tivesse pago isso com a minha vida, se este governo não tivesse sido derrubado pouco depois» (Platão, Apologia de Sócrates). ( in Jean Brun, página 33)  

        Aliás Sócrates já se tinha defrontado com os Trinta; com efeito ele tinha-se indignado com os massacres ordenados por estes, se bem que Crítias - embora tivesse sido aluno de Sócrates - e de Cáricles, tivessem proibido Sócrates de falar aos jovens. Sócrates, com a sua habitual ironia, perguntou então qual deveria ser doravante a idade mínima dos seus interlocutores e quis saber se lhe seria possível perguntar o preço de uma mercadoria a um jovem mercador, ou responder a um jovem que desejasse conhecer a morada de Cáricles (Xenofonte, Memórias).   

 

Aparência Física de Sócrates

 

        Sócrates era feio, o que espantava fortemente os seus contemporâneos para quem o corpo era o envelope e a imagem da alma; a beleza física devia acompanhar a beleza moral. O próprio Sócrates admitiu ser feio, pois tinha o nariz achatado com os buracos à mostra, os lábios espessos, os olhos salientes e esbugalhados. A pessoa de Sócrates era pois uma espécie de escândalo pela sua própria manifestação tanto ela parecia trazer na carne os estigmas da paixão, e quando o fisionomista Zopiro o viu pela primeira vez declarou-o imbecil de nascença, inculto e imperfectível. 

                                              Imagem de Sócrates:


       

          Segundo Nietzche, o aspecto físico deste homem era escandaloso: «Sócrates era um plebeu inculto, e que não reparou pelo autodidatismo o que lhe faltou na instrução da sua juventude.»  

  Nietzche foi um Filósofo alemão que nasceu na Prússia em 1844. Rejeitou qualquer distinção entre diferentes tipos de realidade, representando de certo modo um retorno a Heraclito, com a valorização do devir. Acreditava que do mesmo modo como não existia uma realidade inteligível, única e imutável, também não existia uma verdade necessária e universal, mas diversas perspectivas sobre um real em permanente transformação. Morreu em 1900, deixando-nos diversas obras.

  

       Era preciso não confiar nas aparências enganosas que os homens, que se queriam medida de todas as coisas, tentassem apresentar-nos: a aparência de Sócrates nada tinha a ver com o seu ser, não era a face de Sócrates que estava à sua medida. O ser de Sócrates era um ser escondido. N'O Banquete, Alcibíades considerou Sócrates como extremamente feio, calvo, barbudo, gordo, baixo, com o nariz esborrachado,e que se  parecia com um sátiro ou um sileno. No entanto, depois de ter dito que Sócrates se parecia com o sátiro Mársias, precisou que ele era como aquelas estátuas de silenos que se abriam e que continham imagens de divindades, o rosto de Sócrates escondia a mais bela das almas. 
   
       A face de Sócrates simboliza as fealdades das contradições e das violências às quais nos condunam as aparências superficiais em que tudo é claro de uma falsa clareza. Mas, por detrás dessa face aparente, encontrava-se a alma luminosa de Sócrates que nos dá a compreender que a sombra é incapaz de se explicar por si mesma.

 No entanto, o rosto de Sócrates não deixava de escandalizar os Atenienses pois para eles a beleza física era o símbolo da beleza interior e nada mais incompatível com a fealdade de Sócrates e a sua pureza moral; Sócrates explicava por vezes esta «anomalia» dizendo que o seu rosto trazia as marcas das paixões que teriam sido suas se ele não se tivesse dedicado à filosofia.  Na página da morte de Sócrates é referido que muitos não perdoaram a Sócrates o seu aparecimento na cidade ateniense, devido à sua feia aparência. Sócrates parecia uma monstruosa excepção que tinha de desaparecer.

 

Para mais informações consulte o índice e clique em morte de Sócrates.

 

 Transcrição do Auto-retrato de Sócrates

 

          ..."Crês que a beleza existe só no homem ou ainda noutros objectos?

- Creio, naturalmente, que ela existe num cavalo, num boi e em muitos objectos inanimados, pois costumamos dizer "um belo escudo", "uma bela espada" ou "uma bela lança".

- Mas de que maneira poderemos explicar que objectos tão diferentes sejam igualmente belos?

- Se forem bem adaptados pela arte ou pela natureza ao destino que quisermos lhes dar uso no uso, são belos, diz Critóbulo.

- Sabes acaso porque precisamos de olhos?

- Evidentemente, é para ver.

- Assim sendo, pode acontecer que os meus sejam mais belos que os teus.

- Como?

- Pois os teus não enxergam senão em linha recta, ao passo que os meus também vêem de lado, pelo facto de estarem à superfície da cabeça.

- Segundo a tua teoria, dentre todos os animais o que possui os mais belos olhos é o lagostim.

- Seguramente, sem falar que os seus olhos são dotados naturalmente de uma força estupenda.

- Seja! Mas em questão de nariz, qual é o mais belo, o teu ou o meu?

- Penso que seja o meu, se for verdade que os deuses nos tenham dado o nariz para cheirar. Ora, tuas narinas são dirigidas para a terra, enquanto as minhas são arrebitadas, de maneira a receber os odores de qualquer parte que venham.

- Mas não é possível que um nariz chato seja mais belo que um nariz recto. Sim! pois, em vez de servir de obstáculo, permite, pelo contrário, aos olhos de ver primeiro o que querem, ao passo que um nariz proeminente separa-os como um muro.

- Quanto à boca, diz Critóbulo, cedo-te a palma: se é feita para morder, podes morder melhor do que eu; e, com teus lábios espessos, não achas que teus beijos sejam mais doces que os meus?

- Conforme o que dizes, eu teria então uma boca mais feia que a de um asno?"...

Xenofonte, Banquete, V.

 

  Carácter

 

        A coragem de Sócrates fazia par com uma paciência, uma simplicidade e um domínio sobre si próprio a toda a prova; a sua resistência à fadiga, vimo-lo, era célebre, mas esta resistência permitia a Sócrates fazer boa figura em todos os banquetes, ser um conviva agradável e jovial, bebendo tanto quanto  os seus companheiros sem nunca cair como eles na embriaguez, proeza que enchia Alcibíades de admiração. Reprovaram frequentemente Sócrates por ter tido como amigos debochados como Alcibíades, que o perseguia logo nos seus primeiros passos, ou Crítias, que havia de tornar-se um dos Trinta Tiranos, mas é preciso sublinhar com Xenofonte, que durante todo o tempo em que Alcibíades e Crítias seguiram o ensinamento de Sócrates, este conseguiu pôr um freio às suas paixões que não se desencadearam verdadeiramente senão a partir do momento em que eles se desligaram do seu mestre. A cólera, a irritação, o ódio eram desconhecidos para Sócrates; um dia um contraditor, já sem argumentos, deu uma bofetada em Sócrates e este respondeu-lhe tranquilamente:

     «É extremamente aborrecido não saber quando é que é preciso pôr um capacete antes de sair.»( in Jean Brun, página 34)  Como se espantavam com a sua resignação quando alguém acabava de lhe dar um pontapé, Sócrates justificava-se: «Mas o quê! Se fosse um burro que me tivesse dado um pontapé, iria eu mover-lhe um processo?» ( in Jean Brun, página 34)

        A apresentação de Sócrates era sempre modesta, simultaneamente porque Sócrates era pobre e porque era simples; nunca o viram entregar-se a qualquer exibicionismo do modo de vestir negligenciado como haviam de fazer os Cínicos. Sócrates não foi um vaidoso com uma qualquer fingida humildade. Os mantos de púrpura, os estofos de prata e de ouro são úteis a actores que vão representar a tragédia mas perfeitamente inúteis para a felicidade da vida, no entanto outros representam igualmente com andrajos e é por isso que Sócrates diz àquele filósofo cínico que exibia os buracos do seu vestuário:

     «Eu vejo a tua vaidade através dos buracos do teu manto.» ( in Jean Brun, página 34)  

        Sócrates não procurava provocar o escândalo, se a alguns ele parecia escandaloso, era sempre contra a sua vontade; nada lhe era mais estranho que a arrogância. Se Sócrates via alguns objectos expostos pelos mercadores dizia:

«Quantas coisas de que não tenho necessidade!»( in Jean Brun, página 35)  

    

                 Círculo de Amigos

 

        Sócrates era um ateniense que vivia na sua cidade, no meio dos seus contemporâneos, que sabia fazer reflectir os despreocupados como os pretensiosos e que nunca ficava vaidoso com o número de jovens que procuravam a sua companhia e as suas conversas simples, directas e profundas. Ao lado de pessoas com quem ele conviveu na ágora, Sócrates estava rodeado por um círculo de amigos fiéis entre os quais se encontravam grandes nomes. 
   
Encontravamos neste círculo Eurípides, cujas tragédias Sócrates ía ver e nas quais alguns afirmavam que colaborava, Alcibíades, cuja beleza era tão célebre como o foram os seus deboches, Crítias, que havia de tornar-se um dos Trinta Tiranos, o estratego Laques, Críton, Téages, Hermógenes, Menexeno, Teeteto, Cármides, Galcon irmão de Platão, Cherefronte, Símias, Cebes, Xenofonte. A maior parte destas personagens figuram nos diários de Platão. Ao lado destes encontramos  outros filósofos, amigos de Sócrates, que haviam de tornar-se célebres. Desde logo Platão, de longe o maior; Euclides, o Megárico, em casa de quem Platão e outros discípulos se refugiaram depois da morte de Sócrates; Antístenes, o fundador da escola cínica; Aristipo de Cirene, que tinha vinda de África atraído pela reputação do filósofo anteniense.

        Destacaremos alguns dos amigos de Sócrates que lhe eram mais chegados, fazendo uma breve descrição sobre os mesmos:  

ALCIBÍADES

          O «menino terrível» do século, que se lança em todas as causas perdidas com a insolência da sua beleza fatal. Filho de família, menino mimado, pupilo de Péricles, que deposita nele todas as suas esperanças, amado por Sócrates até ao desespero, rompe todos os cordões umbilicais e entra na política como quem entra na Comédie Française, para aí desempenhar todos os papéis: o conspirador, o vira-casacas, a quinta-coluna, o caudillo, o homem providencial, o dirigente de massas, o herói, o traidor e, apesar de tudo, o galã. As relações amorosas, filiais pedagógicas, mas sempre tempestuosas, entre Sócrates e Alcibíades eram um conhecido motivo de troça, mas também de reflexão: «Pode a 'virtude' transmitir-se?» Elas passaram a constituir um dos filões da literatura socrática: para além de dois diálogos que nos foram transmitidos (dos quais só o primeiro pode ser atribuído a Platão), havia pelo menos mais dois Alcibíades, o de Ésquines e o de Euclides.

 

     

ANTÍSTENES

       Um dos íntimos de Sócrates e um dos seus mais brilhantes discípulos, sem dúvida o único rival «filosófico» de Platão, que apenas lhe dedicou alusões obscuras sob máscaras diferentes. Discípulo dos Sofistas (nomeadamente de Górgias), cuja influência é ainda notória nas suas doutrinas posteriores, converte-se tardia e repentinamente ao socratismo, seduzido, segundo se diz, pela «resistência» e pela «impassibilidade» do mestre; permanecerá mais fiel ao seu discurso do que ao seu carácter (consta que era atrabiliário), ensinando a identidade da virtude e da felicidade e a unidade de ambas. A sua austeridade moral inspirou os Cínicos, mas o seu discurso era muito mais ambicioso do que o de um Diógenes. Aprofundando formalmente o «o que é?» socrático, interrogou-se sobre as condições da linguagem do enunciado definidor («a definição é aquilo que exprime o 'que era' ou o 'que é'») e chegou a uma lógica «nominalista» («vejo o cavalo mas não a 'cavalidade'») e «extensionalista» («para cada coisa o seu enunciado próprio»; «falar é referir-se a algo de existente»). Um dos eixos desta doutrina era o paradoxo (que atormentou uma geração inteira), segundo o qual «é impossível contradizer». Importante para a história da análise da proposição, a sua «lógica», que por vezes se destinguiu mal da dos Megáricos, era infelizmente pouco conhecida e poderia dar uma nova luz à «teoria das ideias» de Platão, contra a qual ele chegou a escrever o Sathon. Afirmava que a felicidade baseava-se na virtude e esta no conhecimento.

 

APOLODORO DE FALERO - O impagável primeiro da classe, cujo retrato nos por Platão no início do Banquete (172 a-173 e), aquele que sabe tudo de cor; o mesmo que chora mais alto que todos na prisão (Fédon, 117 d). Um incondicional.

 

ARISTIPO DE CIRENE - Não possuímos informações sobre este importante discípulo de Sócrates, fundador da escola de Cirene. Grande viajante (encontrará mais tarde Platão na corte de Dionísio de Siracusa), cedo abandonou o circulo familiar para se juntar a Sócrates, atraído pela fama de um homem que sabia curar os males da alma. Intimidado pelo pai a regressar ao lar sob pena de ser vendido como escravo, ter-lhe-ia respondido: «Deixa passar algum tempo... Quando me tornar melhor poderás vender-me mais caro!» Acerca dele contam-se, aliás, inúmeras histórias bastante mais duvidosas, atribuíveis à sua reputação de «amante de prazeres». Mas se a tese «Bem=Prazer» é da sua autoria e não de um dos seus sucessores (é possível que o tenham confundido com o seu neto homónimo), como se explica que Aristóteles não o cite quando procede à sua análise? Em todo o caso sabe-se que ele estava atento aos ardores do corpo («é belo vencer as paixões... não é bom extingui-las por completo») e que respeitava as artes mecânicas nas quais via, à semelhança do mestre, o modelo da actividade pautada pela obtenção do que é melhor» (Aristóteles, Metafísica, III, 2, 996 a 32 e seg.). Mas a sua obra, que incluía seis livros de «diatribes» (esta designação não possuía ainda o sentido que herdámos dos Cínicos) está, evidentemente, quase toda perdida. Este «humanista» (o termo poderia, aliás, ter sido inventado por ele) boémio e juvial resumia deste modo o que a filosofia lhe havia proporcionado: «o poder de dialogar livremente com todos» (Diógenes Laércio, Vida ... II, 68).

 

ARISTÓFANES ( 450 - 385 a. C) -  São poucos os dados que temos da sua vida. Comediógrafo grego. É considerado o mais brilhante autor de comédias da literatura grega.  Da sua obra depreende-se que era um homem de grande cultura literária e artística e que menospreza a ignorância e a rudeza. Intervinha nas lutas e polémicas de Atenas a favor do partido aristocrático, servia-se do teatro como campo de batalha.  Conservador nos seus gostos e na sua atitude política, Aristófanes transportou para o teatro as questões sociais, políticas, artísticas e religiosas da Atenas da sua época, criticou com dureza e humor satírico as novidades que considerou demagógicas e inoportunas. Dirigiu a sua enorme capacidade satírica contra os renovadores do pensamento, como Sócrates, e contra todos os inovadores do teatro, como Eurípides, que atacou pelas suas ideias democráticas. No decurso da guerra do Peloponeso, Esparta derrotou Atenas.

 

Imagem de Aristófanes na guerra do Peloponeso.

 

 Esta situação favoreceu o partido aristocrático, que se instalou no poder, mas a liberdade de expressão desapareceu, o que modificou a atitude de Aristófanes como escritor dado que o impedia que tratasse em cena temas políticos da actualidade. Este facto histórico determina a divisão das suas obras em dois grandes grupos: as escritas antes e depois do referido facto. Gozou da estima do público e ganhou em diversas ocasiões o concurso anual de teatro, mas nem sempre as suas obras tiveram êxito. Chegaram até aos nossos dias onze comédias inteiras, além de um milhar de fragmentos. 
        Da primeira época são Acarnenses, na qual manifesta a sua atitude antibélica; Cavaleiros, ataque contra o demagogo Cléon, que o Salsicheiro, demagogo mais hábil do que ele, e os cavaleiros da aristocracia derrotam; Nuvens, sátira das novas filosofia e pedagogia, em que ataca Sócrates e os sofistas; Vespas, sobre a paixão que os Atenienses mostram pelos processos judiciais; Paz, obra antibelicista; As Aves, em que descreve o fantástico reino dos pássaros, que dois atenienses dirigem e que, na forma como agem, conseguem suplantar os deuses; Lisístrata, obra especialmente alegre, em que as mulheres de Atenas, dado que os seus maridos não acabam com a guerra, resolvem que, entretanto, não há qualquer actividade sexual; Mulheres Que Celebram as Tesmofórias, paródia das obras de Eurípides; e Rãs, novo ataque contra Eurípides. 
        Da sua segunda época são Assembleia das Mulheres (em que Aristófanes satiriza um Estado imaginário administrado pelas mulheres, no qual tudo é de todos e as velhas têm prioridade para reclamar o amor dos jovens) e Pluto, fábula mitológica em que esta divindade da riqueza, que na sua cegueira favorece os malvados, recupera a vista. 
        A sua linguagem, de extraordinária riqueza, era rica em jogos de palavras, incongruências jocosas e alusões directas. Serviu-se sem temor da obscenidade e da escatologia.

É evidente que o estilo insólito de Sócrates, a originalidade por vezes chocante das suas interrogações e as modas intelectuais que agitavam os círculos que ele frequentava faziam dele um alvo preferencial para a comédia ateniense, muito mais crua e incisiva que todos os nossos cancioneiros. De todos os ataques anti-socráticos da época resta-nos apenas as Nuvens de Aristófanes. Nessa obra Sócrates aparece como o protótipo dos Sofistas. O avarento Estrepsíades vem aprender no «pesadouro» de Sócrates a fazer triunfar o «Raciocínio mais fraco» (=injusto) para confundir os seus credores. Sócrates, suspenso nas suas nuvens, procura iniciá-lo nos segredos de uma física ímpia. Mas o velho é pouco dotado. É o mandrião do seu filho que irá ser o hábil dialéctico na escola de Sócrates. Triste ideia a do pai, a de escolher um mestre tão pernicioso: as pancadas que o filho lhe dá, descarregadas com a temível força de convicção adquirida junto dos bem-falantes, despertam Estrepsíades da sua louca ingenuidade e levam-no a ir sabiamente incendiar o «pensadouro».

 

CÁRMIDES - Irmão de Pericioneia, pai de Platão, e primo coirmão de Crítias, seu tutor, que sem dúvida o introduziu no círculo socrático antes de o arrastar para o partido aristocrático e em seguida para a aventura dos Trinta (404). Nessa altura ele era comandante do Pireu; morreu nos últimos combates da guerra civil, em 403. A sua jovem beleza perturbou Sócrates e ofereceu-nos uma das cenas mais sensuais de Platão no diálogo com o seu nome (Cármides, 154 b-155 e). Em Xenofonte (Memoráveis, III, 7), não passou de um político tímido e inexperiente cujos escrúpulos o impediam de defrontar a Assembleia do Povo; Sócrates estimulou-o como um treinador antes do combate.

 

CRÍTIAS - Primo e tutor de Cármides e um dos maiores aristocratas da sua época (o seu avô, o Crítias do diálogo de Platão, era sobrinho de Sólon); o protótipo do gentleman sem escrúpulos. Dotado de uma inteligência glacial, frequentador de todos os círculos intelectuais, aderiu ao ensino dos Sofistas antes de se ligar a Sócrates, do qual esperou talvez alguns conselhos políticos (sabe-se que este foi um dos motivos subjacentes do processo de 399). Foi discípulo de Sócrates durante algum tempo. Mas «logo que se julgou superior àqueles que também recebiam lições do mestre, abandonou Sócrates para se lançar na política, que havia sido precisamente o objectivo da sua ligação com ele» (Xenofonte, Memoráveis, I, 2, 12).

 

CRÍTON - Este velho amigo de infância, que via em Sócrates o seu guia espiritual e o preceptor dos seus filhos, foi talvez, como afirma Platão, o delegado dos conspiradores que arquitectaram o plano de fuga. Eram-lhe atribuídos «dezassete diálogos reunidos num único volume».

 

DIÓGENES DE SINOPE (400-325 a.C.)  - Reencarnação caricatural de Sócrates, que aliás só conheceu através dos discursos do seu mestre Antístenes, ao que consta um tanto embaraçado com este «cão» um pouco incómodo, Diógenes ficou célebre pelas múltiplas excentricidades que nos transmite Diógenes Laércio (Vida ... VI, 2), cujo gosto pelos mexericos se expandiu alegremente à sua custa. Algumas dessas excentricidades são célebres e esclarecedoras: (o tonel, a taça, «afasta-te, não me tapes o sol», «procuro um homem»...), outras, obscenas ou escatológicas, são-no menos.

 

ÉSQUINES DE ESFETO  - Se a sua obra tivesse chegado até nós é possível que tivessem poupado milhares de teses aos investigadores em busca de especialização universitária. Porque este amigo dedicado, testemunha abandonará no processo (Apologia, 33e) que acompanhou as últimas horas do condenado (Fédon, 59b), escreveu sete «diálogos socráticos» (Alcibíades, Aspásia, Cálias, Milcíades, Rinon, Axíoco, Telauges) que aos olhos dos Antigos constituíam os retratos mais fidedignos do carácter do mestre. (Não confundir com o orador Ésquines, rival de Demóstenes.)

 

EUCLIDES DE MEGÁRA

Consta que este socrático vinha de longe (não devemos confundi-lo, evidentemente, com o seu homónimo matemático), desafiando a lei da sua pátria em guerra fria com Atenas, evadindo-se de noite de Mégara, vestido de mulher, para vir escutar Sócrates, foi seu discípulo. Contudo, pouco se sabe sobre este homem, que passava por ser sensível e generoso (aparece no prólogo do Teeteto e assiste às últimas horas do mestre no Fédon) e que devia ter conquistado suficientemente a confiança de Sócrates a ponto de lhe oferecer refúgio na sua Cidade, em caso de evasão. A escola que Euclides fundara em Mégara parece ter sofrido uma «dessocratização» ao longo do século IV, transformando-se num dos mais brilhantes centros de difusão da investigação lógica.

 

FÉDON -  Imortalizado pelo diálogo de Platão que apresenta o seu nome, era o fiel predilecto, cuja cabeleira Sócrates acariciava e que ele prometeu cortar em sinal de luto (Fédon, 89 a-b). Conta-se acerca dele uma história confusa e recambolesca: príncipe de estirpe nobre, teria sido prisioneiro por inimigos implacáveis, vendido como escravo por temíveis piratas, obrigado a prostituir-se num horrível lupanar de onde teria fugido rapidamente antes de entrar providencialmente em contacto com Sócrates, que o salvou da escravidão e graças a quem entrou na filosofia para não mais voltar a sair.

 

GÓRGIAS DE LEONTINO ( 483-375 a.C.) - Um dos grandes sofistas da primeira geração; herdou da sua Sicília natal os seus dotes de orador, que punha em prática em aparatosos discursos de estilo floreado (os «gorgianismos»). Menos filósofo mas mais corrosivo que Protágoras, seu rival contemporâneo, desprezava os «professores de virtude» (Ménon, 95 c) e subordinava o seu ensino ao ensino da arte e da teoria da linguagem. O encontro de Górgias com Sócrates (que, em princípio, o Górgias de Platão nos relata) pode ter ocorrido em 427 (a.C), quando, na qualidade de embaixador da sua Cidade, veio pedir o apoio de Atenas contra Siracusa. A sua personalidade, o seu estilo e o seu talento de orador deixaram uma marca indelével na juventude e nos escritos atenienses.

 

HÍPIAS DE ÉLIS - Este hábil mestre da sofística é-nos mais familiar através dos diálogos de Platão com o seu nome do que através dos raros fragmentos dos seus discursos que chegaram até nós. Desprezado durante muito tempo por ser o sabichão imbatível, o campeão de eloquência dos Jogos Olímpicos, o inventor de uma mnemotécnica impossível de fixar (Hípias Menor, 368 d), o rei dos subterfúgios que constrói toda a sua bagagem teórica de argumentação, em suma, o indivíduo enfatuado que tradicionalmente se opõe ao indivíduo inteligente (Sócrates), Hípias beneficiou da vaga geral de reabilitação do movimento sofista.

 

PLATÃO

(428/427-347 a.C.)

 

Platão nasceu em Atenas ( ou em Égina) em 428/427 a.C. O seu verdadeiro nome era Aristócles, nome do seu avô, sendo Platão um alcunha que lhe foi atribuído por ter testa e ombros largos ( platus, significa em grego largo).
        
Descendia da mais antiga nobreza ateniense, o pai Aríston, amigo de Péricles, descendia do último rei de Atenas; a mãe, Perrictíone, era descendente de um irmão ou de um amigo íntimo de Sólon, prima de Crítias e irmã de Cámides, que se encontravam entre os que tomaram o poder em Atenas em 404 a.C.
         
Platão foi discípulo de Sócrates. A condenação deste à morte, homem que ele mais admirava no mundo, considerando-o "o mais justo dos homens", contribuiu de forma decisiva para a sua entrada na Filosofia, morrendo asssim o desejo que acalentou durante a sua juventude, de seguir uma carreira política. 

Platão escreveu numerosas obras, a maior parte delas escritas em diálogo. Na maioria dos seus diálogos o interlocutor principal é Sócrates. Os comentadores distribuíram  as suas obras por quatro períodos: período da juventude; período de transição; período da maturidade e período da velhice. Obras:  Apologia de Sócrates;  Ménon;  Fédon; O Banquete;    A República;  Timeu;  Críton; Íon.

O maior de todos os socráticos, o verdadeiro filho do filósofo, e o verdadeiro pai da nossa tradição filosófica. Foi por volta dos vinte anos que, após estudos completos, se juntou a Sócrates, cujo «ensino» frequenta durante oito anos, ou seja, foi seu discípulo; vocacionado para a poesia lírica e para a tragédia, queima todos os seus rascunhos para se dedicar à filosofia. Do encontro inesperado entre o pensador popular e o aristocrata culto iria nascer uma dessas raras obras incontornáveis à qual os filósofos não deixam de regressar, e em relação à qual toda a reflexão terá de se definir. A morte do Mestre («o homem mais sábio e mais justo do seu tempo») e o destino dos seus discípulos afastaram Platão de uma carreira política ateniense, e ele foi então para Mégara, junto de Euclides, e em seguida para Cirene, junto do matemático Teodoro. Mas o seu interesse iria voltar-se sobretudo para a Sicília, onde esperava celebrar na corte de Dionísio a reconciliação entre a sabedoria e o Estado, a nova aliança entre o político e a filosofia, quebrada pela cicuta. Todavia, foi a Atenas que ele dedicou o seu ensino teórico, fundando a Academia, verdadeira universidade e cadinho de todas as investigações científicas: é lá que Aristóteles irá formar-se durante cerca de vinte anos, e tantos outros depois dele durante cerca de um milénio. Seria despropositado «resumir» o seu pensamento, somatório de todas as interrogações fundamentais, e que ele deu a público utilizando geralmente o género do «diálogo socrático»: é assim que sabemos, graças a esses Diálogos, integralmente conservados, que o velho de pés descalços entrou na História e que, possivelmente devido a uma simples homonímia, Sócrates-o-Sábio transformou-se para sempre em Sócrates-o-Filósofo.

 

POLÍCRATES - Seis anos após a condenação de Sócrates, o caso não está ainda encerrado: a querela dos «socráticos» e dos «anti-socráticos» renasce com a publicação de uma acusação dos Anti. Foi sem dúvida o êxito que a campanha dos discípulos alcançou junto da opinião pública que levou o orados Polícrates a escrever uma Acusação de Sócrates em 393, em que dizia que Sócrates era inimigo do povo, o conselheiro-sombra dos assassinos da democracia, um traidor ao regime, e os revisonistas que defendiam a sua reabilitação não passavam de reaccionários que sonhavam com a restauração da oligarquia. Grande parte da literatura socrática podia ser considerada como a resposta ao requisitório de Polícrates.

 

PRÓDIGO DE CEOS - Este excelente professor de ensino geral, talvez um tanto tacanho, seria considerado como o mais simplório dos Sofistas. Aos seus discípulos mais avançados que Pródico reservava os seus conhecimentos enciclopédicos sobre a retórica, a medicina, a astronomia, enfim, sobre todas as disciplinas que ele ensinava por meio de um método original baseado na lexicologia: ao estudar pela primeira vez a gama semântica dos termos e ao distinguir cuidadosamente os seus sinónimos, ele procurava na exactidão da expressão uma disciplina do pensamento racional. Este aspecto do seu ensino seduziu Sócrates e os intelectuais do seu círculo.

 

PROTÁGORAS DE ABDERA - Uma das grandes figuras do século V, o primeiro sofista a exercer o ofício de professor, e um dos pensamentos com o qual não deixarão de se confrontar Sócrates e em seguida Platão e Aristóteles. Pensa-se que o seu encontro com Sócrates ocorreu em 432 (a.C), inspirando o Protágoras de Platão, e que em 411 (a.C) decorreu o seu processo por impiedade («Quanto aos deuses, não sei se existem nem se não existem, nem qual poderá ser o seu aspecto»), tendo depois morrido num naufrágio. Pensador «trágico» («Em relação a qualquer questão é possível defender os prós e os contras com argumentos de força equivalente, mesmo em relação à questão de saber se é possível defender os prós e os contras de qualquer questão»), o seu campo de entendimento com Sócrates era aquilo que constituía, tanto para um como para o outro, o campo de entendimento universal: a «dialéctica», cujas regras codificou e cujos fundamentos teorizou.

 

QUEREFONTE - Este jovem doentio, «amarelo como buxo», que Aristófanes apelida de «morcego» porque fugia da luz, foi sem dúvida um dos primeiros convertidos, cuja devoção o levou a Delfos, a fim de consultar o famoso oráculo. Foi discípulo de Sócrates. Militante democrata, amigo de Trasíbulo, exilou-se durante o regime dos Trinta, regressou a Atenas com o restabelecimento da democracia (Platão, Apologia, 21 a) e morreu antes do processo; Sócrates não pode fazer mais do que invocar a sua memória para atestar a sua moralidade cívica.

 

XANTIPA - O machista de Xenofonte (Memoráveis, II, 7, Banquete, II, 10) faz dela uma megera rabugenta, e imagina-se um marido que suporta estoicamente as lamentações perpétuas ou que se refugia no ginásio para escapar às discussões dessa matrona. A galanteria de certos historiadores contemporâneos veio em seu socorro, mais por boa vontade, diga-se, do que propriamente com base em testemunhos, alegando circunstâncias atenuantes ou afirmando que a lenda do seu mau génio se devia à maledicência de Antístenes (cf. Banquete, de Xenofonte), sem dúvida ele próprio bastante rabugento. Seja como for, Sócrates casara, para bem ou para mal, em todo o caso bastante tarde (415?), e certamente não foi o marido exemplar que uma jovem poderia esperar, mesmo sendo ateniense. Tiveram três filhos (Lâmproco, Sofronisco e Menexeno), o mais novo dos quais era ainda de tenra idade por altura do processo (cf. Fédon, 60 a). Boatos contraditórios atribuem a Sócrates uma outra esposa, uma certa Mirto, que ele teria tido antes, depois ou simultaneamente.

 

XENOFONTE

Um dos mistérios de Sócrates é o de, já velho, ter conseguido cativar este jovem aristocrata, grande apreciador de cavalos e da vida militar. Foi discípulo de Sócrates. Um dia o impetuoso jovem, atraído pelos horizontes distantes, pretendeu alistar-se como «repórter» no exército do rei da Pérsia; o seu mentor pareceu discordar, mas apesar de tudo mandou-o consultar o oráculo de Delfos. Mais astuto que devoto, o jovem iludiu as respostas e acaba por partir (Anábase, III, 145). Muito mais tarde, após vários anos de errância mercenária, o aventureiro dos mares regressa ao lar; o reencontro de antigos companheiros recorda-lhe então a sua juventude de estudante e encoraja-o a colocar dignamente a sua língua clássica ao serviço da memória do seu velho mestre: daí a Apologia de Sócrates, o Banquete e os Memoráveis.

 

Mestre e Discípulo

 

         No século III a.C. o médico céptico Sexto Empírico formulou bem o problema das relações do mestre e do discípulo numa argumentação por vezes sofística mas de que é possível tirar reflexões significativas. Para Sexto Empírico das duas uma: ou a matéria a ensinar é clara e neste caso ela não tem necessidade de ser ensinada, ou é obscura e neste caso não pode ser ensinada. Por outro lado como é que pode haver ensinamento de um mestre a um discípulo? Com efeito ou bem que o hábil ensina o hábil, mas então este não tem de modo algum necessidade daquele, ou bem que o hábil ensina o inábil, mas então ou a coisa é para todo o sempre impossível e o discípulo, pois que inábil, não estará apto a receber o ensinamento do mestre, ou bem que a coisa é possível e é então a marca de que o inábil era na realidade hábil e não tinha por conseguinte necessidade de um mestre. A conclusão de Sexto é que: «Se não há nem matéria ensinada, nem mestre, nem discípulo, nem método de ensinamento, não há também nem instrução nem ensinamento», nem matéria a ensinar. Podemos mesmo ir mais longe e dizer que também não há mesmo diálogo possível, que já só há indivíduos de pé uns em frente dos outros não podendo comunicar entre si e não tendo finalmente outro meio de conhecimento senão o do recurso à força da qual se vão defrontar.

        O mestre não é aquele que transmite uma ordem de conhecimento a um aluno mais ou menos receptivo, o mestre não é essa personagem racionalista que ensina qualquer coisa a um aluno empirista, no decurso de uma espécie de monólogo em que um fala enquanto que o outro regista. Sócrates recusou ser um mestre que ensinava; ele não cessava de dizer e de repetir que nada sabia; no diálogo socrático não tratamos com um mestre que comunica qualquer coisa a um aluno; tratamos com dois homens que comunicam entre si, o diálogo faz surgir duas consciências em pé de igualdade na medida em que as duas são consciências que procuram e que se procuram. É por isso que não encontramos em Sócrates nenhum ensinamento dogmático que a história tenha podido conservar a transmitir-nos.

        Sócrates convidava pois o discípulo a uma viragem do avesso de si próprio, a uma «conversão», curando-o dos divertimentos múltiplos ao longo dos quais não podia senão perder-se desviando-se do essencial. Assim Sócrates nunca se fez passar por um mestre. Ora, ele encontrou constantemente interlocutores que se tomavam por mestres e que, como o célebre sofista Hípias, pretendiam que conhecem todas as coisas e que eram capazes de tudo ensinar a quem quisesse ouvi-los e pagar as suas lições; o objectivo do diálogo socrático, que muito frequentemente acabava com um ponto de interrogação, era precisamente o de permitir a Sócrates destruir o mestre no discípulo de forma a fazer nascer neste o desejo de um verdadeiro mestrado interior, conduzindo-o à autonomia que só o «conhece-te a ti próprio» lhe podia conferir.   

      


Frase Célebre
 

    Com certeza que a maioria de nós já ouviu ou leu algures a frase:

   "Não sou nem ateniense nem grego, mas sim um cidadão do mundo".

    Trata-se de uma frase célebre da autoria de Sócrates, que curiosamente se encontra numa das estações do metropolitano de Lisboa. Esta estação possui inclusivamente uma imagem de Sócrates representada em azulejo:

Imagem de Sócrates em azulejo:

 

Em relação à frase já mencionada aparece a seguinte imagem:

 

Imagem da frase célebre de Sócrates:

 


       
Se é sem dúvida positivo homenagear Sócrates desta maneira, também é legítimo salientar que Sócrates nada escreveu, e portanto não pode ser considerado como autor da frase. Torna-se imprescindível perceber que tudo o conhecemos de Sócrates foi-nos dado a conhecer fundamentalmente pelas obras de Platão, Xenofonte e Aristóteles.  Há que evitar confusões!

   Se quiser consultar mais informação sobre a não existência de obras realizadas por Sócrates, consulte o Problema de Sócrates  que se encontra no índice.

 

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt