3 - Juventude
Leituras
O gosto pela leitura e a busca do conhecimento sempre
estiveram presentes na vida de Marie-Jeanne. Em casa tinha uma pequena
biblioteca com livros elementares que devorava. O pai, de tempos a tempos,
fazia-lhe ofertas de alguns livros.
Quando acabava de ler os livros novos, voltava a ler os
que já tinha lido. “Lembro-me de ler a vida dos Santos, de uma
bíblia em velha linguagem, duma velha tradução das guerras civis de
Appien, dum teatro turco, em mau estilo, mas que reli algumas vezes. Li
também cómicas romanas de Scarron, e algumas colecções (...) As
memórias do bravo de Pontis e as da menina de Montpensier, da qual jamais
esqueci a altivez e o orgulho (…) A raiva de aprender era tanta que li
um tratado de arte heráldica. Tinha gravuras coloridas que me divertiam e
eu adorava saber como se chamavam essas figuras.” [pág.
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Fenelon comoveu o seu coração e Tasso acendeu a sua
imaginação. Algumas vezes, por ordem da mãe, lia em voz alta.
“...ao ler os episódios da ilha de Calipso a minha
voz e minha respiração elevavam-se e eu sentia um calor na cara. A minha voz alterava-se com as minhas agitações”. [pág.
39]
[topo]
Entrada para o convento
Na preparação para a comunhão começou a ler livros
de devoção. Leu avidamente as explicações das cerimónias da igreja e compreendeu o
seu significado místico. Pensou seriamente em ter um novo modo de vida dedicado à
religião.
“Imaginava-me na solidão do claustro, no seu
silêncio e nas grandes ideias românticas que a minha imaginação podia
enfatizar”. [pág. 47]
Um dia, pediu aos pais que a metessem num convento
porque queria fazer a primeira comunhão com todo o recato exigido. Os
conventos funcionavam como escolas externas para alunos do povo que eram
ensinados gratuitamente. Foi para o convento tinha 12 anos.
“Cheguei ao convento à tarde, ainda não conhecia os
meus colegas. Eram 34 numa sala, com idades entre os 6-18 anos, mas
divididos em duas mesas para a refeição e em dois sectores para a
resolução de exercícios. Juntei-me aos mais velhos. Era a mais nova
entre eles (…) O que a minha mãe me tinha ensinado sobre boas maneiras,
ser doce e correcta, não correspondia à brutalidade destes jovens. As
religiosas diziam que a minha educação podia servir de exemplo”. [pág.
49]
No convento, e apesar do contra-exemplo dos colegas,
manteve-se desperta para a leitura e para o conhecimento. Uma religiosa, com conhecimentos de ortografia,
geografia e história, apercebeu-se do seu gosto pelo estudo e, depois de
dar aula a toda a classe, ocupava-se dela em particular, fazendo-a
repetir a geografia, a história e a gramática. Era uma das melhores a
tudo.
Nas horas de recreio não ia correr ou brincar.
Retirava-se solitariamente para debaixo das árvores para ler ou para
sonhar. Era sensível à beleza das folhas, ao cantar dos pássaros. Os
sons majestosos do órgão, a voz tocante das jovens religiosas deixavam-na em êxtase. Em tudo, via a mão da providência.
Foi assim, com fervor e extrema devoção, que se
preparou para a sua primeira comunhão.
No convento, recebia todos os domingos a visita do pai
e da mãe que a faziam sair para passearem juntos no jardim.
A chegada de novos alunos ao convento era sempre uma
alegria. Numa dada altura chegou ao convento uma menina com uma fisionomia
doce e de nome Sophie Cannet. Esta menina não lhe foi indiferente e desde
logo procurou saber mais informações sobre ela. Tinha um ar dorido que
tocou toda a gente. Era tranquila, não seduzia ninguém.
“A sua tristeza e a sua maneira de ser, tocaram-me.
Senti que tinha encontrado uma companheira e que nos tornaríamos
inseparáveis”. [pág. 58]
No Inverno, pouco viu a sua mãe mas o seu pai vinha todos os domingos visitá-la e
davam os seus longos passeios no jardim. Eram passeios charmosos em que
liam versos de Thompson.
[topo]
A vida após o convento
Sabendo que a mãe negligenciava o seu apelo para a
religião tomou uma decisão: “Vou pôr termo ao sacrifício que me
fez separar da minha mãe”. [pág. 62]
A mãe anunciou-lhe que a avó paterna gostaria que lhe
fizesse companhia por uns tempos. A situação que lhe propunha era
verdadeiramente uma transição da sua separação com ela e da sua
aproximação a outra pessoa.
A sua avó paterna era uma senhora
de bom coração e de bom humor. Com maneiras agradáveis, linguagem
correcta e riso gracioso. Tinha 65 anos. Era amável para com as pessoas
novas. Ficou viúva ao fim de um ano de casamento. Passado algum tempo, passou a ser a
instrutora de Manon.
A paz da sua residência e a piedade da sua tia
Angélica, irmã da sua avó, combinavam com as disposições do convento.
Todas as manhãs, ia com a tia à missa e continuava a dar alguns passeios
ao convento para ver a sua amiga Sophie.
Mantinha um desejo secreto de se consagrar à vida
religiosa. Mas ao pensar que, sendo filha única, os seus pais nunca
aprovariam a sua ida para o convento antes de atingir a maioridade, resolveu manter silêncio acerca disto.
Da biblioteca da avó leu Saint
François-de-Sales e Santo Agostinho, que eram as suas
meditações favoritas, uma doutrina ao amor. Os velhos livrinhos de
viagem de forças mitológicas e as Cartas da Madame Sévigné
alimentavam a sua imaginação. A sua avó pouco viu do mundo, pois
raramente saiu, mas tinha um bom humor que animava as conversas enquanto
Manon fazia pequenos trabalhos manuais que ela lhe ensinava.
E assim passou os seus 12-13 anos com a avó paterna.
Ao fim deste tempo voltou para a casa dos pais, para
junto da sua mãe. Mas não foi fácil separar-se da avó, pois tinha-se
afeiçoado demasiado a ela. A sua despedida foi envolta num grande pranto.
Agora, de regresso, recorda com saudade os bons e tranquilos tempos que
passou na casa da sua avó, em Saint-Louis, e com a sua tia Angélica.
O seu lar paternal não tinha a acalmia solitária que
vivera em casa da sua avó. Assim que chegou, o mestre Cajon continuou a
ensinar-lhe música. Adorava ensinar-lhe a teoria e depois passava à
prática ensinado-lhe o instrumento e um pouco de composição. Mignard
começou a ensinar-lhe guitarra, e Mazon foi novamente
contratado para lhe ensinar e aperfeiçoar a dança. Ao senhor Durçais
também foram solicitados serviços para lhe ensinar aritmética,
geografia, história e a escrita.
O seu pai deu-lhe pequenas
obras para fazer. Em recompensa, comprava-lhe, no final da semana, um
livro que gostaria de ter.
O seu tempo era passado nas lições com os
mestres e, nos tempos livres, recolhia-se para ler,
escrever e meditar. À tarde executava trabalhos manuais, durante os quais
a sua mãe lia, em voz alta e com compaixão, algumas obras históricas,
como as dos tempos helénicos, facto que a deixava feliz. Estas leituras
não a deixavam “digerir” perfeitamente as coisas ao seu agrado mas
inspiravam-lhe a ideia de fazer extractos. Logo pela manhã procurava em
papéis o que mais a tinha entusiasmado, depois pegava num livro e lia
algumas passagens para poder apreender melhor as ideias.
Nos dias de descanso, iam ao passeio público e o seu
pai, agradado com estas ocasiões, conduzia-a a todas as exposições de quadros e diversos
objectos de arte, frequentes em Paris. Revelava, desta forma, o seu gosto
por aparecer em público, em especial de braço dado com uma jovem menina
bem parecida.
Mas Manon preferia muito mais passear no campo.
Sentia-se identificada com a natureza propícia à reflexão e em
harmonia com o seu coração sensível.
Aos 18 anos ficou doente com varíola. Época da qual
guarda recordações profundas, não pelas dores provocadas pela doença
mas pela solicitude da mãe. Durante um período de 4 a 5 meses não
pôde sair. O campo era essencial para se restabelecer, para respirar ar
puro. Em casa, o pai tinha apenas uma pequena biblioteca, da qual
Manon já tinha lido tudo.Chegou a ler obras de Direito e até sobre agricultura e
economia, que estudava em falta de outras, pois todos os dias necessitava
de aprender qualquer coisa.
Para si não havia como Rousseau. Era sem dúvida a sua
leitura preferida. Começou a ler alguns livros que pedia
emprestados e outros que alugava.
O abade Jay, homem grande em tamanho e em espírito, devido à sua idade avançada, pediu que um dos seus
parentes fosse para a sua residência afim de se ocupar dele. Esta tarefa
coube a Madame d’Hannaches, uma senhora rica, nobre e que demonstrava a
toda a gente os seus talentos económicos.
O abade tinha uma sala com uma biblioteca enorme a qual
Manon usava a seu belo prazer. Uma dada altura, Madame d’Hannaches
precisou de uma secretária e Manon ocupou esse cargo. Escrevia cartas,
copiava a sua árvore genealógica e acompanhava-a em visitas a diversas
pessoas. Ficava impressionada com a ignorância da Madame d’Hannaches e
com a sua má linguagem. Nestas alturas reconhecia e valorizava ainda mais
o facto de ter conhecimentos. Mas a morte do abade privou-a da frequência
da biblioteca onde encontrara livros sobre historiadores, contos
mitológicos e padres da Igreja. Naquela biblioteca aprendeu muita coisa.
Leu, entre outros, A História do povo de Deus, de Berruyer, o
poema de Joseph, algumas poesias de Voltaire, os Ensaios de moral
de Nicole, a Vida dos padres do deserto por
Adrien Baillet. Leu também a História Universal de Bossuet, as
Cartas de São Jerónimo e o romance de Dom Quixote, além de milhares de
outras coisas do mesmo género.
Em relação à religião que professava começou a
mostrar-se crítica. Dizia que a primeira coisa que a repugna é a
condenação universal de todos aqueles que a desconhecem ou ignoram os
mandamentos da Igreja.
Por vezes sentia uma necessidade de espírito difícil
de satisfazer. As obras críticas, filosóficas, moralistas e metafísicas
eram as suas leituras favoritas. Ocupava-se, essencialmente, com a sua
comparação e a sua análise.
O seu gosto pela leitura e a sua sede de conhecimentos
era uma fonte que não secava e por isso continuou a ler vários livros: O
tratado da tolerância; O dicionário filosófico; As questões
enciclopédicas; As cartas do espião turco; O sistema da natureza.
Aplicou-se, com igual atenção, a procurar o que devia
fazer e a examinar o que poderia querer. O estudo da filosofia passou a
constituir a base da sua felicidade.
Continuou a estudar metafísica e a aperfeiçoar-se a
ler poemas. Leu grandes tratados de história e as virtudes dos heróis
que os tornaram célebres. “Não houve um ponto de uma acção mais
interessante que eu não dissesse: é assim que eu quero agir. E com isto
apaixonei-me pelos republicanos, onde encontrei grandes virtudes que
suscitavam a minha admiração e homens dignos da minha estima. Deixei-me
persuadir pelo seu regime”. [pág. 94]
Em 1771, toma o
partido dos republicanos.
Com a morte de Victorin, seu confessor, teve
necessidade de encontrar um sucessor. O abade Morel era um homem pequeno
em estatura mas grande em espírito e professava uma grande austeridade de
princípios. Razão esta, determinante para que Manon o escolhesse.
Houve uma altura em que, no sono profundo, começou a
ter sentimentos esquisitos. O primeiro foi de medo, pois não era
permitido tirar do corpo qualquer espécie de prazer, excepto durante o
casamento legítimo.
“Aquilo que eu tinha sentido podia-se chamar de
prazer. Senti-me bastante culpada. Senti uma grande agitação no meu
pobre coração. Como evitar tal coisa? Enfim, não o poderia prever. Mas
no instante em que aconteceu não tive pena que tivesse acontecido. A
maneira que encontrei de me salvar foi pôr-me com os pés descalços no
chão frio de Inverno e com os braços em cruz. Pedi ao Senhor para me
salvar das tentações do demónio”. [pág. 87]
Da sua experiência, recordava que seriam sentimentos
como estes, que agora sentira, que teriam levado S. Bernardo a cobrir-se
algumas vezes com neve e S. Jerónimo a cobrir o seu corpo com silício.
Acusava-se a si própria por ter tido sentimentos contrários à castidade
cristã. Segundo a sua educação, confessou-se ao abade Morel com o qual
se comprometeu a não mais ter maus pensamentos.
Um genovês, relojoeiro, e das boas relações de seu
pai, ofereceu-lhe a sua biblioteca, para consulta. A física e depois a
matemática prenderam-na durante algum tempo. Nollet, Réaumur e Bonnet
leu-os todos. Leu também Rivard que a inspirava para a geometria.
[topo]
A vida em sociedade:
Nos jantares nada era esquecido: o ar burguês, a
aparência de riqueza, os vestidos brilhantes, as boas maneiras, a
própria linguagem que se fazia distinguir na trivialidade das
expressões. As conversas eram sobre assuntos financeiros, títulos de
fortuna, alianças, riquezas, ricos e seus afazeres.
Rapidamente Manon chegou à conclusão que o que
apreciava era diferente de tudo aquilo.
Os concertos da Madame Lépine apresentaram-lhe um
novo ponto de vista. Possuía um apartamento com uma enorme sala de
concertos com a vantagem de se poder ouvir música enquanto se viam
os actores e de se poder conversar nos intervalos. Junto de sua
mãe, mantinha-se em silêncio, pois assim era prescrito às
senhoras, e não cessava de observar e de ouvir. Mas quando estava a
sós com a Madame Lépine fazia questões e as respostas surgiam
claramente das suas observações. |
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Foi então que a Madame Lépine propôs à sua
mãe irem a uma “assembleia charmosa”. Nessas assembleias
reuniam-se pessoas esclarecidas, senhoras de bom gosto e faziam-se
leituras agradáveis. Era, a seu ver, “verdadeiramente delicioso”.
Os salões literários realizavam-se às quartas-feiras e a sessão abria
com a leitura de algumas peças em verso.
[topo]
Os primeiros pedidos de casamento
Manon foi educada de uma maneira austera e recatada. O carácter respeitável
de sua mãe, a aparência de alguma fortuna, a qualidade de filha única,
podiam ser qualidades sedutoras para alguns dos rapazes. O seu
pai todos os dias recebia cartas, para ela, de natureza amorosa. Mas para
Manon, a maneira como eram educados era muito mais importante do que ter
algum dinheiro. Para o seu pai o mais importante era a riqueza.
“Nenhum dos meus pretendentes me servia. Então, o
meu pai veio ter uma conversa comigo. Respondi-lhe que o homem que iria
escolher era aquele com quem pudesse comunicar, partilhar os meus
sentimentos e os meus pensamentos (...) Em resumo, apenas quero um homem a
quem possa amar”. [pág. 137]
Para si, que estava habituada a estudar, a regular as
suas afeições e a comandar a sua imaginação, era difícil ter que
encarar esta nova etapa pois teria que ser submissa aos deveres de esposa.
Depois de ter tido um ataque de paralisia, a sua mãe
teve uma conversa com Manon e disse-lhe que precisava de casar, uma vez
que já tinha passado os 20 anos e que os pretendentes cada vez seriam
menos. A mãe morreu quando Manon tinha 21 anos.
Seis meses após a morte de sua mãe, em Janeiro de
1776, conhece Jean-Marie Roland de La Platière, de 20 anos, com quem casa
quatro anos mais tarde.
Dirigiu as actividades de seu marido, Jean-Marie
Roland, quando este se tornou ministro do Interior em Março de 1792.
Tinha especial aversão a Danton, com quem chegara a rivalizar. Contribuiu
para mantê-lo afastado dos girondinos, célebre partido político da
Revolução Francesa, formado, quase todo, por deputados do Sul de
França. Os Girondinos opuseram-se às matanças de Setembro e
recusaram-se a votar a morte do rei. Os girondinos acabaram na guilhotina.
Madame Roland, sua mentora, foi presa em Junho de 1793. Vendo os sonhos da
gironda transformados em sangue, exclamou, antes de morrer guilhotinada: "Liberdade,
liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome". |