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Apontamentos para uma educação para o futuro

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"Mision de la Universidad", Madrid: Alianza Editorial, 1982, pp. 225-238

I

A Junta do Fund for the Advancement of Education1 comunica-nos a sua convicção de que «o problema principal no progresso da educação é o esclarecimento da filosofia da educação», mas que este é, por sua vez, impossível de atingir sem «um esclarecimento filosófico geral tão amplo e profundo como a esfera inteira das ideias fundamentais». A este raciocínio da Junta não parece poder opor-se qualquer objecção. A ideia de educação leva inevitavelmente à ideia de uma teoria da educação e esta reclama, por sua vez, com lógica inegável, uma teoria das coisas humanas, «um esclarecimento filosófico geral» no qual a teoria da educação apoia os seus sólidos fundamentos. Até aqui, seguimos um impecável movimento teórico que nos faz avançar de uma ideia a outra.

Mas, quando a Junta quer dar outro passo além no seu raciocínio, adverte que não o pode fazer, porque, ao buscar essa general philosophical clariphication2, chega à conclusão de que, em vez de uma, existem hoje várias, diferentes [umas das outras], contrapostas e que chocam entre si, tornando impossível uma orgânica ou doutrina sólida sobre a educação. Esta advertência não é já um mero passo no raciocínio puramente teórico, mas apenas o tropeçar numa realidade brutal, na realidade histórica em que estamos submergidos, aquilo a que a Junta chama «a diversidade histórica do nosso tempo». Isto leva-a, não a rectificar, mas sim a suspender o seu raciocínio anterior, convencida de que é impossível clarificar esta questão, as suas causas e consequências para a educação, antes de prosseguir a trajectória que começou a traçar. Por tudo isto, propõe-nos que nos ocupemos dela.

Se nos recordarmos agora qual foi o ponto de partida, descobrimos que chegámos a uma situação pedagógica e que teoricamente pareceria uma contradição, pois começámos por dizer que o «problema primário no progresso da educação» era «o esclarecimento da filosofia da educação», mas constatamos que, antes desse problema primário, existe outro ao qual não chegámos pela via da razão, mas que nos chegou sob a forma de facto bruto: «a diversidade filosófica do nosso tempo». Era um erro chamar àquele, problema primário, para quem quer trabalhar no progresso da educação? Creio que não; estava bem denominado assim, porque em boa ordem teórica, era o primeiro. No entanto, antes de toda a teoria, o homem depara-se sempre com um problema realmente anterior a todos os demais, problema a que chamaremos “prévio”. Com efeito, o homem encontra-se sempre com um problema prévio que é o seu tempo, o tempo em que vive, cujas características são sempre diferentes das de todos os outros tempos. O carácter histórico da realidade humana faz do homem, um servo inexorável do senhor (no original gleba) que é o «nosso tempo». Há momentos em que esse problema prévio apenas é apercebido, é um mero pormenor, mas há outros em que o «nosso tempo» se interpõe angustiosamente entre nós e tudo o que queremos fazer ou ser. Encontramo-nos hoje numa etapa desta última classe e, por isso, a Junta, ao querer começar a andar, teve que tropeçar com o «nosso tempo» no aspecto do que chama «diversidade filosófica» do presente.

Somos convidados a estudar essa «diversidade filosófica», cada um segundo a perspectiva que lhe pareça mais importante. O que acabo de dizer indica qual a perspectiva que vou considerar nas conversas destes dias e que pode formular-se do seguinte modo: muitas vezes na nossa História, houve «diversidade filosófica» mas, apesar de ter sido sempre um estorvo à educação, nunca ameaçou constituir-se como uma dificuldade tão grave como agora acontece. No presente, a «diversidade filosófica» mostra pois sinais de uma gravidade insólita, talvez única. Graves sinais que se originam na insólita situação global em que o homem se encontra hoje a qual só se pode clarificar se se tiverem em conta todos os traços particulares do nosso tempo.  

Com isto, surge antecipado o meu juízo sobre a nova Instituição que a Junta projecta. Esta deverá ser, na minha opinião, completamente distinta de todas as que existem, pois não parece haver necessidade de criar um outro organismo que continue a cultivar as disciplinas tradicionais, mas tem um problema enorme, urgente e angustioso que espera ser estudado a fundo, por uma equipa de pessoas capacitadas. É o problema do «nosso tempo». Como se poderá realizar isto concretamente, é algo que se tentará sugerir nas próximas sessões. A organização de uma Instituição intelectual, se esta é autêntica, justificada e original, vem dada pela peculiaridade do próprio problema que se lhe destina.  

II

Começo por supor que a Junta entende por filosofia, segundo o uso que a palavra tem na língua comum da América, toda a ideia ou interpretação geral do mundo e do homem. Neste sentido, uma religião é uma filosofia, apesar de existirem filosofias que não são religiões, mas sim corpos doutrinais que são, ou pretendem ser, científicos. «Diversidade filosófica» significaria que, numa colectividade, sociedade, povo, nação ou como se lhe queira chamar, existe uma pluralidade de tais interpretações do mundo e do homem. Neste sentido, a «diversidade filosófica» existiu quase sempre, pois em todas as partes, ao longo da história costumavam haver alguns indivíduos que pensavam sobre o homem e o mundo de forma distinta dos demais. Mas entendida assim, a «diversidade filosófica», não interessa ao nosso propósito. Só começa a interessar-nos quando cada uma dessas filosofias foi adoptada e é apoiada por uma porção significativa do grupo social. Então, a «diversidade filosófica» representa um indicador do estado de dissociação; de insuficiente coesão no grupo social. Isto é já mais grave que uma simples divergência nas maneiras de pensar.

Vista assim, no seu contexto histórico, a «diversidade histórica», apresenta-se com duas dimensões: uma, a extensão de cada uma das filosofias dentro do grupo social; outra, o grau de divergência e, portanto, de incompatibilidade entre elas. Estas duas magnitudes permitem-nos equacionar a importância que, em cada momento da história, teve a «diversidade filosófica».

Na Europa, até à Reforma, essas duas magnitudes, a saber: a incompatibilidade e a extensão das diversas filosofias, não tiveram verdadeira importância. O caso mais agudo, apesar de breve no tempo e reduzido territorialmente, foi a heresia albigense.

Mas a Reforma dividiu em duas facções várias nações da Europa e isto, no que dizia respeito a duas filosofias que tinham base comum – o Cristianismo. Não obstante, a cisão dos grupos sociais foi tão profunda que originou a época denominada “guerras de religião”. O cansaço da luta trouxe consigo que, pela primeira vez, surgisse na Europa o princípio da tolerância; ao qual o filósofo Locke deu expressão teórica.

No entanto, a tolerância, por sua vez, tornou possível que se expandisse por todo o Ocidente uma nova filosofia, que não era religiosa: o racionalismo do século XVIII. Esta filosofia transportava em si uma necessidade que até então não tinha tomado parte na história: a necessidade de reformar. Sempre se tinham feito reformas num determinado ponto da legislação e, por vezes, a reforma tinha sido de grandes proporções, mas nunca se tinha sido “reformista”. Isto é, nunca se tinha reformado por princípio e com vontade formal de reformar. Mais, as maiores reformas não tinham sido premeditadas, apesar de terem melhores resultados. A maior mudança na história antiga – a transformação da República romana em Império romano – não foi realizada segundo uma ideia preconcebida. A verdade é que ninguém, nem mesmo César e menos ainda Augusto, quis antecipadamente a estranha forma de Estado que foi o Império romano. Isto é a tal ponto verdade que quando hoje, retrospectivamente e com todos os factos à vista, tentamos defini-lo como instituição jurídica, não nos é possível. Foi um feito gigantesco que não foi nunca um “direito”.

O racionalismo do século XVIII propunha-se reformar radicalmente o Estado. Este propósito era em si mesmo revolucionário, pois equivalia a romper na ordem política toda a continuidade com o passado. Tal desejo tinha que resultar, por força, no terrível acontecimento que foi a Revolução francesa e nos outros, menores em aparência trágica, mas com o mesmo sentido, que se produziram em todas as nações do continente europeu. Este racionalismo reformista era menos compatível com as religiões tradicionais que estas entre si. Por isso, a Revolução deixou mais profundamente fraccionado o corpo social, em cada nação, que as guerras de religião. Esta divisão perpetuou-se até aos dias de hoje.

De qualquer forma, por muito divergente que tivesse sido o racionalismo reformista das filosofias religiosas, antes reinantes, a incompatibilidade não era extrema. Sob as suas profundas diferenças jazia, todavia, um subsolo de crenças comuns ao qual, em luta, se podia recorrer. Destas crenças comuns podem resumir-se três. Primeira, todos acreditavam na cultura, nas ciências, letras, artes e técnica; ainda que com algumas reservas, as religiões mantinham-se solidárias com isto a que acabo de chamar cultura. A segunda consistia na aceitação das normas morais que, nos séculos precedentes, se haviam estabelecido. A terceira crença era a ideia de pátria. Esta base comum, depois da turbulência revolucionária, permaneceu destacada e como que em primeiro plano, compensando a divisão efectiva que vinha existindo em cada povo. Assim foram possíveis as etapas de calma interior que as nações gozaram durante o século XIX.

O panorama até aqui traçado, não tem outra intenção que não seja tornar possível, por contraste, caracterizar em pouquíssimas palavras a «diversidade filosófica» actual.

 III

Que traços saltam mais à vista quando se querem hoje buscar as bases para uma filosofia da educação?

O racionalismo reformista era radical na execução do seu programa, mas o programa das suas ideias, pode dizer-se, a sua filosofia, não era radical pois, como foi dito, conservava uma base que era comum com as outras filosofias. A dissociação do corpo colectivo realizou-se profundamente; por assim dizer, os dois segmentos da nação permaneciam separados até ao solo, mas continuavam unidos no subsolo: na fé, na cultura, na adesão a uma moral comum, na fidelidade à pátria.

Comecemos pelo século XX, a expansão do socialismo inicia uma situação nova. O socialismo – e refiro-me à filosofia socialista – não reconhece os valores da cultura. Não aceita a ciência, a não ser na forma em que se põe ao serviço da classe proletária e adopta uma atitude análoga frente às letras e às artes. Também não se inclina perante a ideia de pátria. Pelo contrário, pede aos trabalhadores que se dissociem totalmente do resto da sua nação e se unam aos trabalhadores dos outros países. Com a agudização do socialismo, na forma do comunismo, dá-se o último passo no fraccionamento. O comunismo ataca inteiramente a moral estabelecida, substituindo-a por outra que lhe é contrária. Por exemplo, o filho tem a obrigação de denunciar o seu pai.

Com isto, desapareceu por completo aquele subsolo comum sobre o qual as nações do Ocidente – e refiro-me especialmente ao continente – podiam viver com um resíduo de unidade interior. Agora, a incompatibilidade das filosofias tornou-se extrema.

Podemos agora perceber o primeiro traço característico da «diversidade filosófica» no nosso tempo, a saber: o extremismo. Porque, inevitavelmente, o extremismo comunista motivou que as outras filosofias se tornassem extremistas. A negação extrema da ideia de pátria suscitou as filosofias nacionalistas, não menos extremistas e, inclusivamente, as religiões tradicionais começam a adoptar atitudes extremistas, onde quer que o poder público lhes seja favorável.

Não é, contudo, o extremismo a que acabo de referir-me o aspecto que me parece mais grave, apesar de ser muito [grave], na actual «diversidade filosófica». Há outro lado deste ingente fenómeno que nos deve preocupar mais.

Até ao começo deste século, o sistema de valores e de normas a que chamamos “cultura ocidental”, havia actuado como um travão que impedia as atitudes extremas. A cultura representava um reportório de instâncias últimas, a que era possível recorrer com a confiança de que impunha a sua autoridade sobre as almas. Por exemplo: o homem ocidental tinha fé na razão e fazia desta, uma instância suprema à qual devia submeter as contendas e as discrepâncias.

Mas o predomínio que adquiriram, em amplas proporções, os extremismos do mundo ocidental, demonstra que o travão da cultura se debilitou. Isto não poderia ter acontecido se a cultura ocidental, ela mesma, não se encontrasse num estado anormal. Por isso, parece-me difícil estudar adequadamente a actual «diversidade filosófica» se não se contempla esse estado anormal da nossa cultura, porque em todas as suas dimensões surgem fenómenos inquietadores desde há trinta ou quarenta anos.

Basta recordar o que é hoje a pintura, a música ou a literatura. Não está em causa a apreciação pessoal mereçam, o carácter inquestionavelmente estranho que ostentam, carácter onde se manifesta uma vontade de ruptura com a continuidade cultural, não só do Ocidente, mas talvez de toda a cultura conhecida. A questão é grave porque a arte, mercê de ser um elemento muito ténue, costuma ser a produção humana que mais rapidamente acusa as tendências profundas que germinam na humanidade, como o fumo das chaminés anuncia a mudança dos ventos. O que menos se pode dizer é que a arte do nosso tempo é o problema e que nela se manifesta também a condição de extremista; como se a arte houvesse chegado ao seu extremo.

O mesmo acontece com a técnica. O seu prodigioso avanço deu lugar a inventos nos quais o homem, pela primeira vez, cai aterrado com a sua própria criação. Em nada como aqui, aparece clara a situação actual do homem: é como se tivesse chegado à fronteira de si mesmo. A técnica que foi criando e cultivando para resolver os problemas – sobretudo materiais – da sua vida, converteu-se, ela mesma, prontamente, num angustioso problema para o homem.

Por fim, se dirigirmos o nosso olhar para as fundações mais íntimas das ciências fundamentais – Física, Matemática e Lógica – que são como barras de ouro que garantiam o crédito da nossa cultura, descobriremos sintomas em algo parecidos aos mais visíveis e grosseiros que acabo de recordar. Neste caso – e ele é mais uma prova do carácter exemplar destas ciências – esses sintomas de falta de amadurecimento não procedem de uma decadência das disciplinas citadas ou de que sejam cultivadas defeituosamente, antes pelo contrário. Foi o glorioso progresso que aquelas ciências produziram nos últimos tempos que produziu o fenómeno que se começa a chamar “a crise dos princípios” na Física, Matemática e Lógica.

Da maneira mais sublinhada, quis acolher o que neste caso se manifesta com perfeita claridade, a saber, que a situação difícil a que uma actividade humana chega, não significa, forçosamente, defeito ou degeneração, mas que pode ter-se originado no próprio progresso dessa actividade. Pela minha parte, generalizo esta advertência, extendendo-a a tudo o que disse antes. O inventário de caracteres problemáticos, que fiz, aludindo a fenómenos sobejamente conhecidos por todos, não implica pois uma visão pessimista do nosso tempo, mas leva, isso sim, à intenção de fazer notar o seguinte.

A dificuldade extrema, na actual «diversidade filosófica», em elaborar uma sólida filosofia da educação que oriente um importante progresso da educação não parece poder ser tratada de forma fértil e firme, se não se fizer antes um estudo profundo da situação humana, no nosso tempo. De tal modo esta é nova e problemática, que não pode ser interpretada e entendida, olhando-a desde o passado, com os conceitos já estabelecidos e mais ou menos tradicionais, mas exige ser considerada como um ingente problema de novo estilo. E o que surpreende é existirem tantos homens que têm clara consciência do problema do nosso tempo que se sentem, na sua vida prática, desorientados e, com frequência, gravemente angustiados, e não se ter tentado nunca estudar energicamente e em ampla colaboração o que é, no entanto, e porque é assim o nosso tempo.

Não creio que haja questão mais importante nem mais digna para ocupar a atenção de um organismo dedicado a tentar resolver o progresso da educação.

 IV

O Comité da Junta manifesta a sua convicção de que seria necessário criar uma nova instituição, com a finalidade de estudar a fundo todas as questões que é necessário esclarecer, se se quer constituir uma sólida filosofia da educação. Tanto no relatório do Comité, como noutras comunicações aparece, em muitas das formulações empregues, uma consciência muito viva de que nos encontramos numa situação de ideias que impede a prossecução, por si só, da elaboração de uma filosofia da educação. Mas, por outro lado, o Comité parece dirigir o seu projecto na figura da Royal Society e isto, no meu juízo, modifica por completo o sentido daquelas formulações. A criação da Royal Society não encontrou ante si uma situação confusa de ideias e atitudes mas, muito pelo contrário, uma fé precisa e clara na conveniência de fomentar o cultivo de certas disciplinas científicas que, durante o século anterior se tinham iniciado, e que, com efeito, viriam a ser, numa magnífica expansão, o tesouro mais característico da cultura ocidental na época moderna. Nem a Universidade, tal e como era então, nem fora da Universidade existiam organismos encarregados da investigação no sentido das novas ciências. Motivo semelhante levou à instauração do Collège de France. Este propunha estudar as novas disciplinas humanistas, frente à Sorbonne que perpetuava as tradições intelectuais da Idade Média.

Nesta ordem de ideias chegaríamos a que a Instituição projectada fosse apenas mais um entre outros organismos, hoje existentes, que se ocupam das ciências, já tradicionais para nós, e das suas crescentes especializações.

Sem dúvida, adicionar às já existentes uma outra Instituição deste tipo, é uma obra estimável, mas não parece que a sua criação e funcionamento modificassem, em medida apreciável, a configuração do nosso estado cultural.  

Reconheçamos – pois a evidência é bastante patente – que vivemos numa conjuntura cultural, aproximadamente inversa à que inspirou aquelas ilustres instituições. Não é hoje urgente criar um novo organismo para estimular, suportar e dar estado à investigação científica, pois há muitos que servem esta função. É sim urgente, por outro lado, como diz o relatório, «um esclarecimento das ideias e conceitos básicos da cultura ocidental». Este tema, devidamente especificado, é sim, uma matéria de grande magnitude histórica que não foi nunca estudada cooperativamente e cuja clarificação, seria uma das profundas consequências para o futuro próximo. Ter tido a consciência e a vontade de empreender a tarefa, bastaria para enaltecer o espírito na Junta.

No entanto, é preciso não confundir esse magnífico tema com o que habitualmente consiste no progresso das ciências. Este progresso é bem sustentado e o que, por outro lado, se mostra cada dia mais necessário e urgente, é um progresso na claridade sobre a situação presente do homem ocidental.

Devíamos surpreender-nos mais que não se tenha feito qualquer tentativa para reunir uns quantos homens de mentalidade adequada, para trabalharem colectiva e continuadamente sobre esta questão. Como se explica a falta de tal vontade? Talvez proceda de várias causas, mas há uma que me interessa designar.  

Nas ciências e nos homens que se interessam em fomentá-las, existe uma tendência a não reconhecer como problemas que podem e devem ser cientificamente estudados senão aqueles que surgem dentro do progresso interior de cada ciência. Um problema humano que sentimos actuar gravemente sobre as nossas vidas, mas que não se apresenta com um perfil que permita atribuí-lo a uma ciência determinada, fica fora de todo o tratamento intelectual rigoroso.

Mas o caso é que as ciências modernas – e algo semelhante caberia dizer das iniciadas na Grécia – nasceram da resolução que alguns homens tomaram de reflectir sobre problemas que não gozavam de prévia consagração teórica, mas que eram problemas da prática humana. Recorde-se Galileu, jovem, ocupando-se das gruas, cabrestantes e roldanas do porto. Ali surgiu a Física. A Biologia, que até muito tarde no século XVIII consistia quase exclusivamente em Anatomia e Taxonomia, pôs-se em movimento para ser uma ciência completa, graças ao esforço dos médicos – não os teóricos de Zoologia ou Botânica – para curarem os seus doentes, decidirem avançar hipóteses e investigações, das quais nasceu a Fisiologia e, com ela, o enorme desenvolvimento das disciplinas que estudam os corpos orgânicos.

Adiro completamente ao relatório do Comité quando diz que «o esclarecimento do pensamento educativo depende de um esclarecimento tão amplo e profundo como a esfera de todas as ideias fundamentais». No entanto, este empreendimento é tão extenso que ameaça com o perigo de que a nova Instituição se perca no seu vasto horizonte. É, pois, preciso proceder passo a passo e representar o trabalho que naquela se há de fazer, dividido em etapas sucessivas.

Por isso penso que o método prático para chegar a uma filosofia da educação, não é começar por obter esse «esclarecimento filosófico», cujo perfil de questões é difícil precisar de antemão. O primeiro, no meu juízo, é alcançar uma visão clara da figura concreta que tem hoje a vida do homem ocidental.

Não convém perder de vista a intenção original que é a educação. Trata-se de constituir um sistema educativo para as próximas gerações. Não é inelutável sentir-se na posse de uma ideia clara sobre qual vai ser, nas suas linhas gerais, a estrutura da vida dentro da qual vão formar-se essas gerações? Se acreditarmos que no presente predominam os traços tradicionais do que foi a existência para o homem ocidental, talvez pudéssemos não nos preocuparmos em fazer prognósticos para o futuro próximo. Mas a realidade é que o próprio presente nos é problemático. Isto obriga a estudá-lo o mais profundamente possível, porque o futuro fermenta no presente, de tal forma que, se se faz um sério diagnóstico da hora em que vivemos, há grandes probabilidades de que possamos formar um prognóstico acertado.

Não bastam as instituições fragmentárias deste ou daquele pensador individual, nem nos cabe contentarmo-nos com a fisionomia superficial do nosso tempo que os factos à vista oferecem. Há que proceder com rigor e amplitude ao seu estudo.

Por não se seguir este método, se fez quase constitutivo da pedagogia moderna um tenaz anacronismo (que, caso tenha ocasião, referirei nas nossas conversas) razão pela qual, ultimamente, as ideias educativas estão quase sempre atrasadas em respeito às formas de vida imperantes. Esquece-se que a educação consiste em preparar no presente, vidas futuras.

Pensando assim, representaria desta maneira a nova Instituição:

1º Começar-se-ia por reunir um grupo de umas quantas pessoas de superior capacidade, cuja primeira ocupação seria chegar, aproximadamente, a um acordo sobre quais são as características do nosso tempo, mais inquietantes e problemáticos.

2º Uma vez conseguido isso, o grupo inicial, juntamente com o Comité da Junta, encarregaria equipas de homens adequados de estudar, a fundo, cada uma dessas características.

Notas:

1Fundo para o Avanço da Educação (Em inglês no original, N.T.)   [voltar]

2 Clarificação filosófica geral (Em inglês no original, N.T.)   [voltar]

Tradução de Nuno Ferreira no âmbito da cadeira “História e Filosofia da Educação” no ano lectivo de 2003/2004. Revisão de Olga Pombo

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt