Educação para um Mundo Difícil in "Fact and Fiction", Londres: George Allen & Unwin Ltd, 1961
Os
jovens que não sejam completamente frívolos estão preparados para descobrir
que, no mundo de hoje, os seus impulsos de boa vontade fracassam na procura de
uma qualquer linha de acção que possa diminuir os perigos do tempo presente. Não
vou pretender que há uma resposta simples ou fácil para a sua desilusão, mas
penso que uma educação adequada poderia fazer com que esses jovens se
sentissem mais capazes de perceber os problemas e de, criticamente, julgar esta
ou aquela solução sugerida. Há
inúmeras razões que tornam os nossos problemas difíceis de resolver, senão
mesmo de entender. A primeira diz respeito ao facto de a sociedade e a política
modernas serem governadas por capacidades difíceis que poucas pessoas entendem.
O homem da ciência é o moderno curandeiro. Pode fazer todo o tipo de magia.
Pode dizer "Faça-se luz" e a luz aparece. Pode aquecer-nos no Inverno
e, no Verão, manter fresca a nossa comida. Pode transportar-nos através do ar,
tão depressa como um tapete mágico das “1001 noites”. Promete exterminar
os inimigos em poucos segundos e só nos desaponta quando lhe pedimos para
prometer que os nossos inimigos não nos irão exterminar. Tudo isto é
conseguido por meios que só para uma pessoa num milhão não aparecem como
completamente misteriosos. E quando os místicos nos contarem histórias de
maravilhas futuras, não saberemos dizer se é possível ou não acreditar. Um
outro aspecto que torna o mundo moderno estonteante é o facto de os
desenvolvimentos técnicos terem tornado necessária uma nova psicologia social.
Desde os tempos remotos até ao século presente, o caminho para o sucesso
consistia na vitória em competição. Descendemos de muitos séculos de
progenitores que exterminaram os seus inimigos, ocuparam as suas terras e se
tornaram ricos. Em Inglaterra, este processo deu-se no tempo de Hengist e Horsa[1].
Nos Estados Unidos, ocorreu nos séculos XVIII e XIX. Somos assim levados
admirar um certo tipo de carácter, nomeadamente, aquele que permite matar de
forma eficaz e sem ressentimentos. Os seguidores mais moderados desta crença,
contentam-se com infligir morte económica em vez de morte física, mas a
psicologia de ambos é muito parecida. No mundo moderno, como resultado do
aumento destas capacidades mosrtíferas, este processo já não se revela
satisfatório. No mundo moderno, mesmo os vitoriosos sofrem mais do que se não
tivesse havido guerra. Isto é óbvio para os britânicos, que estão a sentir
os resultados de duas vitórias totais em duas grandes guerras,. O que se aplica
na guerra, aplica-se também na esfera económica. Os vitoriosos numa competição
não enriquecem tanto como poderiam enriquecer pela união das duas partes
oponentes. Ora, a apreciação semi-consciente destes factos produz nos jovens
inteligentes um impulso para uma boa-vontade geral, impulso este que é anulado
pela hostilidade mútua dos grupos poderosos. Referimo-nos à boa vontade em
geral, não à boa vontade em particular. Um hindu pode amar a humanidade mas não
deve amar um paquistanês; um judeu pode acreditar que todos somos uma grande
família, mas não se deve atrever a incluir os árabes neste sentimento; um
cristão pode pensar que o seu dever é amar o próximo, mas apenas se o próximo
não for comunista. Perante estes conflitos entre o geral e o particular, é
impossível ter um qualquer princípio claro de acção. Dificuldade que se deve
a uma incapacidade geral para adaptar a natureza humana à técnica. Os nossos sentimentos
são apropriados a nómadas belicosos de regiões desertas. Mas, com a técnica
que hoje possuímos, a menos que os nossos sentimentos se tornem mais
cooperantes, seremos conduzidos ao desastre. A
educação, ao visar adaptar-se às nossas necessidades actuais, deve conduzir
os jovens à compreensão dos problemas levantados por esta situação. A
transmissão de conhecimento na educação teve sempre dois propósitos: por um
lado, fornecer capacidades científicas e técnicas[2];
por outro, dar algo vago a que podemos chamar sabedoria[3].
A parte da aquisição das capacidades, torna-se cada dia mais alargada, e ameaçada
cada vez mais, a parte devotada à sabedoria. Ao mesmo tempo, temos que admitir
que, no nosso mundo, a sabedoria é impossível, excepto para quem percebe quão
grande é o papel representado por essas capacidades, pois são elas a característica
distintiva do nosso mundo. Durante a última guerra, quando jantava com os Fellows
da minha faculdade, descobri que os cientistas estavam quase sempre ausentes
mas, nas suas raras aparições, vislumbrava-se um trabalho misterioso, que
poucas pessoas vivas podiam entender. Foi o trabalho de homens deste género que
foi determinante na guerra. Estes homens formam inevitavelmente uma espécie de
aristocracia, já que as suas capacidades são, e serão, raras pelo menos até
que, por algum novo método, se possam aumentar as aptidões congénitas da
humanidade. Por exemplo, há muito trabalho importante que apenas pode ser
realizado pelos que são bons em matemática avançada. E, a imensa maioria da
humanidade nunca será capz de se tornar boa em matemática avançada, mesmo que
a sua educação fosse direccionada para esse fim. Os homens não são iguais em
capacidades congénitas e qualquer sistema educativo que assuma o contrário
leva ao desperdício desastroso de bom material. Mas,
apesar de necessária, a capacidade científica não é de forma alguma
suficiente. Uma ditadura de homens de ciência depressa se tornaria horrível.
Seria fácil de comprovar que a capacidade científica sem a sabedoria pode ser
puramente destrutiva. Por esta razão, se não por outra, é de grande importância
que aqueles que recebem uma educação científica não sejam meramente
científicos, mas adquiram aquele conhecimento que, caso possa ser transmitido,
pode apenas sê-lo através do lado cultural da educação. A ciência
permite-nos conhecer os meios para qualquer fim escolhido mas não nos ajuda a
decidir que fins deveremos perseguir. Se se quiser exterminar a raça humana, a
ciência mostrará como fazê-lo. Se se quiser conseguir que a raça humana seja
tão numerosa que fique à beira da fome, a ciência mostrará também como o
fazer. Se se quiser assegurar prosperidade adequada a toda a raça humana, a ciência
dirá o que fazer. Mas a ciência não poderá dizer se um destes fins é mais
desejável do que o outro. Nem dará aquela compreensão instintiva dos seres
humanos que é necessária se não se pretende que as suas acções despertem
uma oposição violenta que, depois, apenas uma tirania feroz poderia fazer
parar. Não se pode ensinar paciência, não se pode ensinar simpatia, não se
pode ensinar o sentido do destino humano. Na educação formal, e na medida em
que estes aspectos podem ser ensinados, o mais provável é que resultem da
aprendizagem da História e da grande Literatura. A
familiaridade com a grande literatura foi um dos objectivos da educação
reclamados desde o tempo de Peisistrato[4].
De facto, os atenienses perseguiam sabiamente este objectivo: aprendiam Homero
de memória e eram capazes de apreciar os grandes dramaturgos, mesmo os seus
contemporâneos. Mas os métodos modernos suplantaram tudo isto. Deram-me,
quando era muito novo, um pequeno livro chamado A
Child's Guide to Literature[5].
Neste livro, guiada por alguma inteligência sobrenatural, as crianças faziam
perguntas acerca dos grandes escritores ingleses, na correcta sequência cronológica,
começando por "quem foi Chaucer?". Lamento dizer que nunca fui muito
adiante neste livrinho. Se tivesse avançado, teria sido capaz de dizer apenas
aquilo que os examinadores esperavam que fosse dito sem ter lido uma única
palavra dos autores implicados. Receio bem que a necessidade dos exames e a
extensão (desnecessária) dos currículos, tenham tornado demasiado comum
aquela forma de estudar literatura. Ora, uma pessoa pode tornar-se melhor por
ter lido Chaucer mas, se não o ler, sabendo apenas as datas e o que sobre ele
disseram críticos eminentes, isso não tornará ninguém melhor do que saber as
datas de um qualquer obscuro desconhecido. O bem que deriva da grande Literatura
só aparece em pleno naqueles que se lhe tornam familiares, que a deixam
penetrar na textura dos seus pensamentos quotidianos. Acho pois admirável que
as crianças representem Shakespeare na escola. Há então uma razão óbvia
para ficar a conhecê-lo bem e, além disso, a tarefa é cooperativa em vez de
competitiva. Estou certo que representar uma
das boas peças de Shakespeare é uma forma melhor para adquirir aquilo que é
valioso na educação literária do que uma leitura apressada de toda a obra.
Nas gerações passadas, as pessoas de expressão inglesa tinham o mesmo tipo de
treino em prosa através da familiarização com a Versão Autorizada da Bíblia
mas, desde que a Bíblia se tornou desconhecida, nada de tão excelente tomou o
seu lugar. Em
oposição à Literatura, no ensino da História a escassez pode ser de grande
utilidade. Para aqueles que não vão ser historiadores profissionais, aquilo
que nos Estados Unidos da América se chama um survey
course pode, se bem feito, dar um sentido valioso do processo mais vasto no
qual ocorrem os acontecimentos próximos e familiares. Esses cursos deveriam
lidar com a História do Homem, não com a História deste ou daquele país,
muito menos com a de cada um. Deveria começar com os factos mais antigos,
conhecidos através da Antropologia e da Arqueologia, e dar sentido à emergência
gradual daquilo que, na vida humana, dá ao Homem o lugar que merece. O ensino
da História não deveria apresentar como heróis mundiais aqueles que dizimaram
o maior número de "inimigos" mas, pelo contrário, aqueles que se
notabilizaram na expansão do capital mundial de conhecimento, beleza e
sabedoria. Um tal ensino, deveria mostrar o estranho poder de ressurgimento
daquilo que é valioso na vida humana, poder esse que desafiou o tempo, a
selvajaria e o ódio, mas que, ainda assim, emerge de novo na primeira
oportunidade possível, como a erva no deserto depois da chuva. Enquanto a
juventude possui alguma plasticidade de desejos e esperanças, deveria ser
desviada do desejo de vencer os outros seres humanos e despertada para a vontade
de vencer aquilo que, até agora, encheu a vida do homem de sofrimento e
tristeza – quer dizer, vencer as forças da natureza relutantes em dar os seus
frutos, as forças da ignorância militante, as forças do ódio e a profunda
subjugação ao medo, herança da original impotência da humanidade. Tudo isto
deveria e poderia ser dado por um survey em História. Tudo isto, se
entrar na textura diária do pensamento humano, tornará os homens menos
precipitados e loucos. Uma
das maiores capacidades que a educação pode e deve dar é o poder de
vislumbrar o geral no particular; o poder de sentir que, apesar de isto estar a
acontecer-me a mim, é muito parecido com o que acontece aos outros, com
o que aconteceu durante séculos e com o que pode continuar a acontecer. É fácil
sentir que a desgraça de cada um, as injustiças que sofremos ou as malevolências
de que somos alvo são especiais e peculiares. Isto aplica-se não só ao próprio,
como à sua família, classe, nação, ou mesmo continente. Porém, em resultado
da educação, é possível ver esses acontecimentos com justiça imparcial. De
outro modo, é improvável alcançar jamais essa imparcialidade. A
Educação pode conseguir tudo isto. Tudo isto deve ser feito pela educação.
Pouco disto é feito pela educação. [1]
Nomes dos dois irmãos que, de acordo com a tradição, lideraram a invasão
Jutish à Bretanha e fundaram o reino de Kent. (The
Columbia Encyclopedia, Sixth Edition. 2001, N.T.) [2] Skill em inglês (N.T.) [3] Wisdom, em inglês (N.T.) [4]
Peisistrato (605-527 B.c.), estadista ateniense, filho de Hipócrates. Foi
responsável pela proeminência de Atenas no mundo grego ao unificar a região
da Ática e ao melhorar rapidamente a prosperidade ateniense. Enalteceu o
prestígio cultural de Atenas com grandes festivais e construiu fontes e
templos (como o grande templo de Zeus em Atenas). (N.T.) [5]
Guia de Literatura para as Crianças
(N.T.)
Tradução de Nuno Ferreira no âmbito da cadeira “História e Filosofia da Educação” no ano lectivo de 2003/2004. Revisão de Olga Pombo |
Olga Pombo: opombo@fc.ul.pt
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