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Vida e Obra de Sanderson

"Sanderson & a Escola de Oundle" (excertos)

 

 

"Sanderson nasceu em Brancepeth, em 1857; era filho de um empregado da administração das propriedades de Lord Boyne e, quando chegou à idade dos estudos, pensou o pai em encaminhá-lo para uma profissão que não exigisse muitos anos de escola, nem a frequência de public-schools, que o orçamento caseiro não poderia comportar; professor de instrução primária seria já uma posição excelente e que lhe dava até possibilidade de continuar a instruir-se, se quisesse e pudesse fazê-lo.

Começou, pois, por o matricular na escola paroquial, na companhia dos mais pobres da terra, enquanto os meninos ricos se dirigiam para os colégios de nome; Sanderson revelou-se logo diferente do comum; estudava com uma atenção entusiasta e forte, dominando o trabalho com uma energia e um impulso de ataque que não eram muito vulgares na escola; tudo o que fazia, fazia com vontade, sem se deixar cair na passividade e nas mecânicas tarefas a que se entregavam os camaradas; as suas faculdades de compreensão e iniciativa moral que escapavam qual excediam em muito o nível vulgar.

Os seus triunfos nas aulas não se repetiam nos campos de jogos; era de saúde delicada, um pouco tímido ao ar livre e as partidas em que os companheiros disputavam a primazia desportiva deixavam-no quase indiferente; só mais tarde fará longos passeios de bicicleta, no encanto da carreira entre prados e bosques, e será bom adepto do ténnis e do alpinismo; por enquanto, à margem de toda a actividade física que ia para além da marcha, preocupa-se somente com o seu trabalho de estudante.

Feito o curso elementar, entrou como aluno-mestre na escola de Tudhol e aí, como acontecera na escola paroquial, rapidamente se pôs à frente dos colegas; notaram algumas pessoas influentes a inteligência e a vontade do rapaz e resolveram fazer o possível por o elevar a outro plano de vida; pensaram em que se faria dele um bom pastor e Sanderson, consultado, entusiasmou-se com a ideia; havia já no seu espírito um sentimento religioso profundo e um desejo de servir os outros que lhe pareciam indicar-lhe como a mais apropriada a carreira eclesiástica.

Obtida uma bolsa de estudo, frequentou a Universidade de Durham; tinha que fazer estudos teológicos e, de bom grado, se meteu pelo emaranhado das exegeses e das disputas metafísicas; simplesmente, afigurava-se-lhe de quando em quando, que os mestres não atingiam o sentido mais profundo dos textos e que os jogos de espírito iam talvez além da sinceridade de espírito; para si, pelo menos, o Velho e o Novo Testamento apresentavam uma actualidade e um imperativo social e moral que escapavam quase por completo aos sábios professores.

Por outro lado, a matemática interessava-o; nela encontrava uma precisão que a teologia nem de longe alcançava e uma clara, profunda beleza que o levava mais perto de Deus do que os silogismos e as meditações recitadas; era paradoxal, decerto, mas a ordem divina do universo, a criação maravilhosa, resplandeciam mais nítidas na geometria analítica do que no Prayer Book; a pouco e pouco se desprende dos teólogos; e, em Cambridge, para onde se transporta, entrega-se exclusivamente à matemática e às ciências naturais e físico-químicas.

Logo que a Universidade lhe concedeu um grau de saída procurou um lugar de professor; o seu pensamento ainda se não definira claramente, mas uma vaga voz lhe dizia que na sua actividade de mestre encontraria objecto e expansão para todos os anseios de serviço de Deus e de serviço dos homens que lhe andavam na alma; e que talvez fosse capaz de mostrar um dia a todo o mundo como a vida é templo mais largo e mais querido de Deus do que as igrejas e como só nela poderemos encontrar a suprema revelação do espírito.

Colocou-se como professor de física no colégio de Dulwich; a vida escolar agradou-lhe plenamente; dava as aulas com o fervor, o dom de si próprio, o amor vigilante com que celebraria um oficio religioso; sentia-se a colaborar na construção de um mundo novo que lhe não aparecia ainda em nítidas linhas, mas que se ia tornando cada vez mais diferente do mundo actual; a sua curiosidade não tinha limites; se lia os livros de física, alargava o seu interesse a todas as ciências, à história e à literatura, sobretudo à literatura moderna.

Era bem diferente dos seus colegas; quase todos consideravam a sua profissão como a pior das que havia no mundo e ansiavam pelo dia em que tivessem acumulado o capital suficiente para se libertarem da escola; o jornal ou a bibliografia das revistas satisfaziam o desejo de leitura da maior parte; os mais trabalhadores embrenhavam-se em questões puramente históricas sem nenhum interesse para a vida actual e, sobretudo, sem nenhum interesse para a vida futura; o saber e o entusiasmo de Sanderson davam-lhe na escola um lugar à parte; decerto o achavam um pouco estranho; mas estimavam-lhe a inteligência e o carácter.

Tinha 35 anos quando vagou a direcção do colégio de Oundle que pertencia à corporação dos merceeiros; no conselho de administradores alguém lembrou o seu nome; as informações tomadas não foram más; mas não se ocultara em Dulwich a extravagância de Sanderson e os dignos homens hesitavam em quebrar a sonolenta e cómoda monotonia em que até aí decorrera a vida de Oundle; por fim, com um grande esforço de progresso, o conselho escolheu Sanderson, por um voto de maioria.

A nomeação não agradou nem ao colégio nem à cidade; a tradição exigia um director versado nas línguas e nas literaturas clássicas e capaz de se comportar na vida com a dignidade fria e a severa moralidade de um clérigo; a ideia de que ia dirigir o colégio um professor de física, com as suas pilhas e balanças, as suas audácias científicas e, possivelmente, uma absoluta falta de boas maneiras, era-lhes absolutamente insuportável; os administradores tinham procedido muito mal; logo toda a gente, tácita ou expressamente, se combinou para lhe tornar a vida dura.

Foi Sanderson, porém, quem lhes tornou a vida dura; havia naquele mestre um ardor de batalha que, se multiplicou os conflitos, bateu sempre todos os adversários que ousaram apresentar-se; Sanderson não usou de nenhuma habilidade política; atirou-se ao combate com uma fúria e uma recta carreira de animal generoso; não perdia tempo a tornear obstáculos; demolia-os de qualquer modo; nos primeiros tempos a disciplina em Oundle foi mantida à pancada e num momento os alunos aprenderam a respeitar os ataques de cólera do novo director .

Foi uma luta em que tudo se podia ter perdido; Sanderson arriscou na empresa o seu lugar de director e todo o projecto de reforma que trouxera de Dulwich; outro, mais prudente e mais calmo, nunca se teria apontado tão francamente ao inimigo; diplomaticamente, teria cedido, teria procurado simpatias e depois sobre elas ergueria a sua construção; mas Sanderson sabia que tal caminho comportava maiores riscos e que, ao fim de uns anos de habilidades, de pequenas renúncias e de grandes mentiras, todo o seu poder criador desapareceria para sempre; e é o poder criador que se tem de guardar em todo o homem, através de tudo, como o mais belo dos tesouros.

Poderia também não ter trazido ao campo de batalha questões políticas e económicas, poderia ter-se limitado ao que dizia exclusivamente respeito à sua faina de director e de mestre; mas Sanderson não acreditava que um verdadeiro professor se possa alhear do que há de mais vivo e de mais urgente à sua volta e que haja maneira de separar uma atitude perante a escola de uma atitude perante o mundo; havia de triunfar como era, ou de cair; mas de cair como era.

Já, porém, se ia desenhando uma reacção e, até dos sectores donde tinham partido os ataques mais furiosos, a sinceridade de Sanderson, a sua vida estritamente coerente com as suas ideias, a audácia com que se afirmava, a firmeza com que se apegava às resoluções tomadas, quaisquer que fossem as barreiras que se lhe levantassem diante, a modéstia real que havia sob uma personalidade que aparecera despótica e dura, tudo lhe concitava simpatias activas que o ajudavam na tarefa e modificavam a atitude da massa.

Os rapazes começaram a vê-lo pelos melhores aspectos e o ensino de Sanderson inteiramente os conquistara; as aulas de física eram as melhores do colégio; o professor animava as lições com experiências que nunca se tinham feito e com uma constante ligação ao mundo real; decoravam-se poucas fórmulas, mas conheciam-se as aplicações industriais, as instalações fabris, as condições de trabalho; era como se tivessem aberto grandes janelas sobre o mundo e o mundo os viesse tomar num turbilhão de vida; sentiam-se ligados ao progresso e trabalhando, no que podiam, para que ele se firmasse e aumentasse.

Era uma outra disciplina que nascia - a do interesse e a do amor, não a do interesse artificial, suscitado pelos quadros de honra, nem a do amor resmungado e lamentoso do padre-capelão; era a do interesse e amor que se fundem numa chama de actividade, num esforço de colaboração para que o mundo se racionalize; os menos inteligentes e os menos trabalhadores se apresentavam para que lhes distribuíssem uma tarefa no trabalho comum; ninguém fugia, ninguém se negava; indo ao encontro dos interesses íntimos dos moços, Sanderson conquistava-os para a vida, revelava-lhes a vida; e, como por encanto, todo o motivo de castigo desaparecia da escola.

Durou 30 anos a direcção de Sanderson, com tal êxito que a frequência do colégio, reduzida a uma centena de alunos quando dele tomou conta, ascendeu rapidamente a seiscentos alunos: e, por falta de instalações, muitos dos candidatos tinham de esperar, durante anos, que uma vaga se abrisse; modernizaram-se os laboratórios, alguns dos quais, como o de biologia, eram dos melhores de Inglaterra e permitiam toda a espécie de trabalhos; montaram-se oficinas em que se construíam máquinas e que se puderam adaptar, durante a Grande Guerra, a fábrica de munições; alargaram-se os campos de jogos, instalaram-se no parque estufas e jardins botânicos; o colégio transformou-se inteiramente.

Ao mesmo tempo, Sanderson fazia a propaganda das suas ideias sobre organização pedagógica e social; assistia frequentemente a reuniões de operários e de patrões, realizava conferências nos organismos de cultura oficiais e particulares, estabeleceu relações com os guias do movimento de renovação, especialmente com H. G. Wells, cujo livro sobre Sanderson é a melhor fonte para o conhecimento da sua obra; e foi precisamente numa conferência presidida por Wells, em Londres, em 1923, que Sanderson caiu, com um ataque cardíaco, fulminado, como um herói antigo, em plena batalha". (Ibid., pp. 7-14)

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt