Olga Pombo

Resumo da Tese de Doutoramento

Unidade das Ciências e Configuração Disciplinar dos Saberes. Contributos para uma Filosofia do Ensino (1998)

O trabalho teve como seu objecto a questão da Unidade da Ciência, tema recorrente de toda a cultura ocidental. Trata-se de uma aspiração antiga que, em tensão e alternância constantes com a tendência contrária à especialização, atravessa toda a história do pensamento ocidental e que, após um período em que pareceu estar totalmente ultrapassada pela disciplinaridade crescente resultante do acelerado processo de especialização do conhecimento científico que se desencadeou no século XIX, é hoje de novo ressentida como exigência do próprio progresso dos saberes especializados e da inventividade dos seus investigadores. Assim nos parece, de facto, poderem ser interpretados diversos sinais que, das mais diversas formas, se têm vindo a fazer sentir, quer a nível da produção, quer da transmissão e aplicação do conhecimento científico: o apelo à interdisciplinaridade, a revigoração do movimento enciclopedista, a emergência de novas configurações disciplinares tais como a teoria dos sistemas, as ciências cognitivas, as ciências da complexidade, a reabilitação das categorias da globalidade, da interacção, da organização, da teleologia como objecto de uma investigação científica cada vez menos reducionista ou ainda os fenómenos da integração, universalização e mundialização da cultura. Eles seriam como que uma primeira e tímida manifestação institucional da racionalidade transversal que, cada vez mais, liga as várias disciplinas.

Quer isto dizer que, mais do que um tema entre outros – arcaísmo nostálgico, ideia bizarra e completamente ultrapassada – pensamos que a ideia de unidade da ciência se confunde com a própria ideia de ciência. Na verdade, na sua descrição mais breve, a ideia de unidade das ciências não é mais que a unificação dos saberes, dos dados, das experiências, das regularidades, das leis, das teorias. Conhecer o mundo significa ter dele uma descrição minimal, isto é, unificada, identificar similaridades e formular leis universais. Neste sentido, a unidade da ciência seria a tarefa cognitiva central da própria ciência. Na sua raiz, habita o projecto de não renunciar à totalidade sob o pretexto de ter que analisar cada uma das partes. A ela corresponde uma atitude de recusa activa dos limites que resultam da manifesta carência dessa unidade, uma reacção positiva face à especialização e à racionalidade instrumental que ela facilita.

Tomando Leibniz como fio de Ariana, perspectiva problemática e referência inspiradora, e tendo como campo de análise as transformações a que, ao longo dos séculos, a ideia de unidade das ciências tem sido votada, o objectivo central que presidiu à elaboração desta dissertação foi o de procurar ver de que modo o ensino, enquanto elemento mediador constitutivo do fenómeno contemporâneo de especialização e compartimentação disciplinar do conhecimento científico, intervém, quer na origem das diversas delimitações disciplinares, quer na situação actual e na reorganização futura dos saberes que a Escola está já a ensaiar e vai certamente ter que operar em breve de modo profundo.

De facto, se é hoje amplamente reconhecido que o processo de investigação científica só se torna possível a partir da constituição de uma estrutura teórica dotada de um mínimo de coerência institucional e consistência técnica, tais qualidades de coerência e consistência – nas quais unicamente se pode fundar a capacidade heurística da teoria – implicam a mediação dos mecanismos disciplinares e reguladores que operam no seio da instituição científica alargada no qual o ensino ocupa um lugar decisivo. Dito de outro modo, se é na coerência e consistência da teoria que heuristicamente se pode fundar a acção divergente da investigação científica, importa reconhecer que essa coerência e essa consistência – hoje e cada vez mais – supõem a acção normalizadora e geradora de consensos dos processos discursivos e dos mecanismos disciplinares que constituem a instituição científica na qual o ensino se inclui de forma específica e altamente diferenciada. Ora, ao reconhecer o lugar do ensino enquanto mecanismo disciplinar no processo de construção do conhecimento científico, ficamos em condições de esperar dele, não apenas uma acção de incentivo e reforço da fragmentação disciplinar, mas também um contributo válido na criação das novas formas de articulação dos saberes.

É certo que tanto a epistemologia como a filosofia e a sociologia do conhecimento contemporâneas chamaram já, e por diversas vezes, a atenção para o facto de a Ciência ser uma instituição que não dispensa a Escola. Thomas S. Kuhn, por exemplo, mostrou de que modo a ciência é estruturalmente dependente do ensino praticado pela instituição escolar e universitária. Aí se seleccionam, recrutam e formam, tanto aqueles que vão prosseguir a investigação no interior das balizas teóricas e técnicas em que foram dogmaticamente treinados, como aqueles que, precisamente porque educados do mesmo modo, estão preparados para reconhecer as anomalias do seu paradigma e, portanto, para explorar criativamente outras hipóteses explicativas. Numa palavra, o ensino das ciências é, para Kuhn, interior ao processo científico, constituinte da entidade epistemológica complexa que é um paradigma sem a qual não é possível qualquer investigação normal ou extraordinária. Mas, mesmo fora da epistemologia kuhniana, não será legítimo reconhecer a estreita articulação entre os dois registos? Mesmo sem aceitar a perspectiva epistemológica de Thomas Kuhn – tão profundamente anti-unitária, tão incapaz de dar conta da continuidade entre sistemas conceptuais que não apenas se sucedem e substituem uns aos outros, mas confrontam  os seus pontos de vista, discutem  as suas hipóteses, controlam os seus resultados, conjugam os seus esforços no sentido de um acréscimo de inteligibilidade – não será forçoso reconhecer a íntima solidariedade que, de forma cada vez mais decisiva, liga a construção do conhecimento científico ao mundo de significações, expectativas e interesses que, responsáveis pelo fechamento e relativa estabilidade da teoria, são simultaneamente o garante da sua coerência, consistência e capacidade heurística e que, em grande medida, são possibilitados pela existência de um sistema de ensino? E, ao reconhecer-se o carácter constitutivo do processo de ensino na produção do conhecimento científico, não se tornará necessário reavaliar a função geral da Escola, em particular da Universidade? Não será urgente reconhecer o seu papel não meramente reprodutor (como quis uma certa crítica vanguardista e desconstrutora) mas também cognitivo e heurístico? Numa palavra, não será necessário reconhecer a Escola como uma das figuras da unidade das ciências?

O nosso ponto de partida é pois o de que, se por um lado o ensino, enquanto modalidade particular do processo de discursivização científica, está dependente de uma investigação prévia cujos resultados (e processos) podem (e devem) ser assim reproduzidos/transmitidos, por outro lado, a investigação está também (e cada vez mais) dependente dos processos de discursivização (comunicação e ensino) mediante os quais são instituídos (formulados, defendidos e reproduzidos) os consenso teóricos e heurísticos necessários à realização da própria investigação. Por outras palavras, investigação e prática discursiva, invenção e comunicação, análise e símbolo, não são momentos sequencialmente determinados de um processo linear único mas processos paralelos e recorrentes de uma mesma tarefa: a constituição unitária (unificada) do saber só possível pela exploração diferida e plural da reciprocidade e correlação entre as duas grandes dimensões da actividade racional humana: as ordens cognitiva e comunicacional. Tal é a tarefa que aqui se defende ser a de uma filosofia do ensino que, recusando o mito de uma educação que dispensa o ensino (mito que retira sentido ao esforço dos estudantes e que atribui uma popularidade fácil aos professores), se dedique à articulação do par Ciência e Escola, isto é, uma reflexão epistemológica aplicada que estivesse atenta às complexidades educativas como forma de aceder à compreensão das características especiais que, em grande parte, definem o regime discursivo e a natureza dos dispositivos cognitivos de todos aqueles que criam e usam a ciência e a sua linguagem. Esta dissertação assume-se mesmo como um contributo para o delinear do que essa filosofia do ensino poderia ser enquanto esforço para pensar esse acto específico de comunicação e construção cultural que é o Ensino.

A Introdução foi dedicada à Interdisciplinaridade enquanto manifestação actual da ideia de unidade das ciências. Foi nosso objectivo caracterizar a actual situação disciplinar dos saberes, compreender e interpretar o “apelo interdisciplinar” que a atravessa, procurar as articulações que ligam essa situação à estrutura actual do ensino na generalidade das sociedades europeias. Aceitando a dispersão de discursos, projectos e contextos em que o conceito aparece, procurámos ilustrar as práticas e experiências a que ele tem dado origem, quer a nível da produção, quer da transmissão do conhecimento científico. Sem perder de vista a articulação – Ciência e Escola – constitutiva do núcleo de propósitos orientadores desta dissertação – procurámos acompanhar os seus desenvolvimentos tendo em vista a literatura existente, tanto na sua vertente epistemológica (aquela onde se encontra grande parte das reflexões mais consistentes sobre a problemática da interdisciplinaridade) como pedagógica.

No primeiro capítulo da I Parte, procurámos dar conta das mais importantes categorias, formas de teorização e linhas de fractura implicadas na análise da Ideia de Unidade das Ciências, determinar o seu estatuto enquanto processo real de unificação das diferentes disciplinas científicas que acompanha internamente o seu desenvolvimento histórico, ou acto de antecipação metodológica pelo qual se pretende desencadear, promover, facilitar a unificação das ciências particulares; questionar o seu fundamento, a sua relação com a filosofia das ciências, a metafísica, a lógica, a metodologia. Sem pretendermos fazer a história da ideia de unidade das ciências, ainda assim assinalámos quatro programas exemplares: um primeiro, anterior à constituição da ciência moderna, o programa medieval de unidade dos saberes, programa que visa a unificação, melhor dito, a subordinação de todos os saberes, não à Filosofia com saber racional, mas à Teologia; dois programas, contemporâneos da emergência da ciência no século XVII, em que a unidade da ciência tem como paradigma, num caso, a lógica indutiva, noutro, a matemática – os projectos seiscentistas de uma Instauratio Magna e de uma Mathesis Universalis; e um quinto que se desencadeia em torno da Física nos anos trinta do nosso século e no qual o projecto de unidade da ciência ganha contornos de um verdadeiro movimento  - o movimento neopositivista para a unidade das ciências. No segundo capítulo, apresentámos de forma tanto quanto possível sistemática, a diversidade de modos de conceber a realização da ideia de unidade da ciência distinguindo três grandes níveis: unidade das linguagens, unidade das leis e teorias e unidade dos métodos.

A II Parte foi dedicada à análise das Figuras da Unidade das Ciências, das materializações a que essa ideia tem dado origem, das estruturas institucionais em que se tem manifestado, dos mecanismos que foram desencadeados com o objectivo de a promover (escola, biblioteca, museu, república dos sábios e enciclopédia). Do reconhecimento das suas proximidades, fizemos decorrer uma análise relativamente detalhada das suas múltiplas articulações. Como procurámos mostrar, mais do que um simples jogo de complementaridades, essas articulações “poliédricas” (que têm na classificação das ciências o seu “operador transcendental”) revelam-se enquanto configuração estruturada, realidade orgânica dotada de capacidades descritivas e normativas.

Lugar privilegiado da unidade do mundo e da unidade do saber, à figura da Enciclopédia foi dedicada toda a III Parte. No âmbito da enciclopédia geral, acompanhámos com algum detalhe essa realização monumental que é a “Encyclopédie”, espécie de laboratório onde se jogam, com uma nitidez cristalina, todos os enredos, virtudes e dificuldades do projecto enciclopedista. Na enciclopédia filosófica, cuja especificidade procurámos estabelecer, um duplo objectivo orientou a nossa investigação: compreender os três grandes antecedentes que o projecto leibniziano recobre (Lull, Comenius e Bacon) de forma a poder avaliar o lugar ímpar que Leibniz ocupa na história do enciclopedismo; acompanhar os desenvolvimentos do movimento enciclopedista nos séculos XIX e XX, em especial no que diz respeito ao enciclopedismo positivista e neo-positivista. Num último capítulo, tentámos ainda perceber porque razão, face à morte anunciada do enciclopedismo, face ao seu previsível esgotamento decorrente do progresso acelerado e da especialização exponencial do conhecimento, se assiste hoje, não apenas a uma revigoração do projecto enciclopedista, como à aproximação vertiginosa do seu (quase) cumprimento na tecnologia das máquinas informáticas e da sua ambição totalizadora.

Finalmente, na Conclusão, apresentámos uma análise comparativa das Metáforas que têm sido encontradas para pensar a unidade das ciências: círculo, árvore, mapamundo, casa, rede. Figurações da imensidade mas também da ordem que o homem impõe ou descobre no Mundo, elas apontam para a constituição de um sistema racional que reuna todos os conhecimentos sobre o universo e que procure situar o homem nessa totalidade cognitiva. Nesse sentido, pudemos verificar que, entre uma categorização exaustiva dos princípios do saber e uma metafísica dos objectos desse saber, se abre hoje – sob os nossos olhos incrédulos e não habituados a ver ao perto – a realidade monadológica da entre-expressão infinita dos diversos domínios do saber. Assim interpretamos de facto a emergência da rede. Metáfora tornada coisa, a rede constitui hoje, a nosso ver, a materialização mais eloquente da unidade do saber. Nela se vêm conglomerar todas as restantes figuras da unidade da ciência. Por ela passam os destinos, não apenas da ciência, mas também da enciclopédia, cujo regime combinatório e heurístico a rede prolonga, da biblioteca que, sob os nossos olhos, vertiginosamente se transforma numa instituição electrónica universal, do museu (virtual) que ela tende a tornar universalmente acessível, enfim, da escola que ela está a transformar profundamente. Quando, como hoje, cada ciência parece valer apenas por aquilo que permite, pelos efeitos que desencadeia (na indústria, no mercado, no consumo), quando a ciência como cultura pode mesmo parecer estar ameaçada, é à rede que cabe – e porventura cada vez mais – um papel decisivo, tanto na reconfiguração das comunidades científicas (efeitos na comunicação entre pares), como na ligação com um público alargado (na escola e fora dela) que se possa rever na ciência do seu tempo, que possa exigir-lhe o cumprimento das suas funções explicativas, isto é, de um público que mantenha viva a esperança de que a ciência possa continuar a ser um instrumento de compreensão do mundo.

Palavras-chave: Filosofia da Ciência, Epistemologia, Unidade da Ciência, Interdisciplinaridade, Ciência e Escola, Ciência e Ensino das Ciências, Classificação das Ciências, Figuras da Unidade das Ciências, Metáfora da Unidade das Ciências.

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt