“Machina arithmetica in qua non additio tantum et subtractio sed et multiplicatio nullo, divisio vero paene nullo animi labore peragantur”
por
Gottfried Wilhelm Leibniz
Quando, há alguns anos atrás, vi pela primeira vez um instrumento que, quando transportado, gravava automaticamente o número de passos dados por um pedestre, ocorreu-me de imediato que toda a aritmética podia ser sujeita a uma máquinaria similar, não só para que a contagem, mas também a adição e a subtracção, a multiplicação e divisão, pudessem, através de uma máquina adequada e eficaz, ser fácil e rapidamente feitas e com resultados certos.
![]() |
Nessa altura, não conhecia a caixa de cálculos de Pascal. Creio
que não foi suficientemente publicitada. Quando reparei, contudo, no simples
nome de máquina de calcular no prefácio dos seus “pensamentos póstumos” (o seu
triângulo aritmético vi-o primeiro em Paris) imediatamente inquiri sobre ela
numa carta a um amigo parisiense. Soube por ele, que tal máquina existia. Pedi
então por carta, ao muito distinto Carcavius, uma explicação do trabalho que ela
era capaz de realizar. Ele respondeu que a adição e a subtracção eram
executadas directamente e que as outras operações eram realizadas através do
processo indirecto de repetição de adições e subtracções. Disse-me também que a
máquina de Pascal realizava já outros cálculos. Em resposta, escrevi-lhe que me
aventurava a prometer algo mais, nomeadamente, que a multiplicação podia ser
executada pela máquina tão bem como a adição, e com grande rapidez e eficácia.
Ele replicou que isto seria desejável e encorajou-me a apresentar os meus planos
à ilustre Academia Real daquele país.
Em primeiro lugar, importa frisar que a máquina tem duas partes, uma orientada
para a adição (subtracção), a outra para a multiplicação (divisão) e que essas
duas partes se devem ajustar (encaixar juntas).
A máquina de adição (subtracção) coincide completamente com a caixa de calcular
de Pascal. No entanto, algo teve que ser acrescentado em favor da multiplicação,
para que muitas, e até todas as rodas da adição, pudessem rodar sem perturbar as
outras, de tal forma que qualquer uma delas devia preceder a outra de modo a
que,
após uma volta completa simples, a unidade fosse transferida para a seguinte. Se
isto não era efectuado pela caixa de calcular de Pascal, pôde ser-lhe
acrescentado sem dificuldade.
A máquina de multiplicar consiste em duas filas de rodas, uma de rodas iguais e
outra de rodas desiguais. Desta forma, a máquina completa terá três tipos de
rodas: as rodas da adição, as rodas do multiplicando e as rodas do multiplicador.
As rodas da adição ou de “décadas” são agora visíveis na caixa de adição de
Pascal e são designados na figura seguinte pelos números 1, 10, 100, etc.. Todas
essas rodas têm dez dentes fixos.
As rodas que representam o multiplicando são todas do mesmo tamanho, igual ao
das rodas da adição, e são também providas de dez dentes cada, os quais contudo,
são móveis, para que a um tempo possam projectar 5, a outro 6 dentes, etc.,
conforme o multiplicando é para ser representado cinco vezes, ou seis vezes,
etc. Por exemplo, o multiplicando 365 consiste em três dígitos 3, 6 e 5. Daí ser
usado o mesmo número de rodas. Nessas rodas o multiplicando será formado, se da
roda direita se projectar 5 dentes, da roda do meio 6, e da roda da esquerda 3
dentes.
Por forma a isto ser realizado rápida e facilmente será necessário um arranjo
específico cuja descrição virá em seguida. As rodas do multiplicando devem ser
contíguas às rodas da adição de tal forma que a última corresponda à última, a
penúltima à penúltima, e a antepenúltima à antepenúltima, ou 5 deve corresponder
a 1, 6 a 10, e 3 a 100. Na caixa de adição, propriamente dita, deve ser exibido
através de pequenas aberturas o número definido como 0, 0, 0, etc. ou zero. Se
depois de tal arranjo supusermos que 365 é multiplicado por um, as rodas 3, 6, e
5 devem fazer uma volta completa (mas enquanto uma é rodada, todas precisam de
ser rodadas porque são iguais e estão ligadas por cordas como será esclarecido
mais à frente) e os seus dentes agora projectados voltarão ao mesmo número de
dentes fixos das rodas 100, 10, 1 e assim o número 365 será transferido para a
caixa de adição.
Assumindo,
no entanto que o número 365 vai ser multiplicado por um multiplicador arbitrário
(124) surge a necessidade de um terceiro tipo de rodas, as rodas do
multiplicador. Sejam nove essas tais rodas e enquanto as rodas do multiplicando
são variáveis, tal que a mesma roda pode num momento representar 1 e noutro 9,
conforme projecta mais ou menos dentes, as rodas do multiplicador, devem, pelo
contrário, ser designadas por números fixos, uma para o 9, uma para o 1, etc.
Isto é alcançado da seguinte forma: Qualquer uma das rodas do multiplicador está
ligada através de uma corda ou corrente a uma pequena polia (roldana) que é
afixada à correspondente roda do multiplicando: Desta forma a roda do
multiplicador irá representar um número de unidades igual ao número de vezes do
diâmetro do multiplicador – roda que contém o diâmetro da polia correspondente.
A polia irá rodar nomeadamente este número de vezes enquanto a roda gira apenas
uma. Assim, se o diâmetro da roda é quatro vezes o diâmetro da polia, então a
roda representará o 4.
Desta forma
com uma simples volta da roda do multiplicador à qual corresponde uma polia
tendo um quarto do seu diâmetro, a polia irá rodar quatro vezes e consigo também
a roda do multiplicando à qual (a polia) é afixada. Contudo quando a roda de
multiplicando é rodada quatro vezes os seus dentes encontrarão as
correspondentes rodas da adição quatro vezes e desta forma o número das suas
unidades será repetido essas tantas vezes na caixa da adição.
Um exemplo
vai clarificar melhor o assunto: Seja 365 multiplicado por 124. Em primeiro
lugar todo o número 365 tem de ser multiplicado por quatro. Roda-se manualmente
a roda multiplicadora 4 uma vez; ao mesmo tempo a correspondente polia irá rodar
quatro vezes (sendo esse número de vezes mais pequeno) e a roda do multiplicando
5, à qual está ligada também roda quatro vezes. Uma vez que a roda 5 tem cinco
dentes projectados em cada volta 5 dentes da roda correspondente da adição irão
rodar uma vez e desta forma na caixa da adição será produzido quatro vezes 5 ou
20 unidades.
A roda de
multiplicando 6 está ligada com a roda de multiplicando 5 por outra corda ou
corrente e a roda de multiplicando 3 está ligada à roda 6. Como são iguais,
sempre que a roda 5 roda quatro vezes, ao mesmo tempo a roda 6, por rodar quatro
vezes, irá dar 24 nas “dezenas” (nomeadamente atinge a roda “decadas”de
adição 10) e a roda 3 alcançando a roda de adição 100 irá dar mil e duzentos
pelo que se produzirá a soma de 1460.
Desta forma
365 é multiplicado por 4, que é a primeira operação. Em ordem a podermos também
multiplicar por 2 (ou então por 20) é necessário mover toda a máquina de adição
num passo por assim dizer, para que a roda multiplicando 5 e a roda
multiplicador 4 fiquem debaixo da roda de adição 10, tal com estavam
anteriormente debaixo do 1, e da mesma maneira 6 e 2 debaixo do 100 e também 3 e
1 debaixo do 1000. Depois de isto estar feito deixe-se a roda multiplicadora 2
ser rodada uma vez: ao mesmo tempo 5 e 6 e 3 serão rodadas duas vezes e a 5
alcançando duas vezes (a roda de adição) 10 dará 10 tens, 6 alcançando 100 dará
mil e duzentos e a 3 alcançando 1000 dará seis mil, tudo junto 7300.
Este número
é adicionado na mesma rodada ao resultado prévio 1460.
De forma a
realizar, como terceira operação, a multiplicação por 1 (ou então por 100),
move-se a máquina de multiplicação outra vez (é claro que as rodas
multiplicandas juntamente com as rodas multiplicadoras enquanto que as rodas de
adição continuam na mesma posição) de tal forma que as rodas 5 e 4 sejam
colocadas debaixo do 100 e da mesma maneira 6 e 2 debaixo de 1000 e 3 e 1
debaixo de 10000. Se a roda 1 for rodada uma vez ao mesmo tempo as rodas 3, 6 e
5 rodarão uma vez e assim adicionarão na caixa de adição essas tantas unidades,
nomeadamente 36500.
Como produto obtemos,
portanto:
É de
salientar aqui que para melhor conveniência as polias são afixadas às rodas
multiplicandas de tal modo que as rodas têm de se mover quando as polias se
movem mas que as polias não precisam de se mover enquanto as rodas dão a volta.
Caso contrário quando uma roda multiplcadora (por exemplo, 1) fosse rodada e
assim todas as rodas multiplicandas se movessem, todas as outras rodas
multiplicadoras (por exemplo, 2 e 4) ir-se-iam necessariamente mover, o que
aumentaria a dificuldade e perturbaria o movimento.
Deve-se
também notar que não faz qualquer diferença a ordem pela qual as rodas
multiplicadoras 1, 2, 4, etc. são dispostas mas podem muito bem ser colocadas em
ordem numérica 1, 2, 3, 4, 5. Porque até assim temos a liberdade de decidir qual
rodar primeiro e qual a seguir.
Por forma a
que a roda multipicadora, por exemplo a que representa 9 ou cujo diâmetro é nove
vezes maior que o diâmetro da polia correspondente, não deve ser demasiado
grande porque podemos fazer a polia tão pequena quanto necessário
preservando a mesma proporção entre a polia e a roda.
Para que nenhuma irregularidade provenha da tensão das cordas e para que o
movimento das finas correias de ferro, que constituem as polias, possa ser usado
no lugar das cordas e na circunferência das rodas e polias, onde as correntes
descansam deveriam ser colocados uns pequenos dentes de bronze correspondendo
sempre às ligações individuais das correntes; ou no lugar das cordas, podia
haver dentes fixados a ambas as polias e às rodas, de forma que os dentes da
roda múltipla apanhariam imediatamente os dentes da polia.
Se quiséssemos produzir uma máquina mais admirável, esta podia ser feita de
maneira que não fosse necessário à mão humana rodar as rodas ou mover a máquina
da multiplicação de operação para operação: as coisas poderiam ser feitas, desde
o início, de modo que tudo tivesse que ser feito pela própria máquina. Isto, no
entanto, tornaria a máquina mais cara e complicada e talvez não mais prática à
utilização.
Resta-me descrever o método da divisão nesta máquina que, acho eu, ninguém
conseguiu fazer apenas com uma máquina e sem qualquer tipo de trabalho mental,
especialmente se estivessem envolvidos números grandes.
Mas qualquer que seja o trabalho que ainda necessite ser feito, no caso da nossa
máquina, não pode ser comparado com aquele complicado labirinto da divisão comum,
que no caso dos números grandes é o procedimento mais tedioso e onde abundam
mais erros que alguma vez foi concebido. Olhai o nosso método de divisão! Deixe
que o número 45,260 seja dividido por 124. Comece como normalmente e peça o
primeiro quociente simples ou em quantas vezes 452 contém 124.
É tudo menos fácil para alguém com capacidade medíocre, estimar o quociente
correcto à primeira vista. Por isso, vamos deixar 452 conter 124 três vezes.
Multiplique o divisor inteiro por este quociente simples, o que poderá ser
facilmente conseguido através de uma volta simples na roda. O produto será 372.
Subtraia isto de 452. Combine os restantes 80 com o resto do dividendo 60. Isto
dará 8060. (mas isso será feito pela própria máquina durante a multiplicação, se
arranjarmos o dividendo de maneira a que o que quer que seja produzido pela
multiplicação seja automaticamente subtraído. A subtracção também tem lugar na
máquina se lhe arranjarmos o dividendo desde o início; as multiplicações
realizadas são então subtraídas dele e um novo dividendo é dado pela própria
máquina sem qualquer tipo de trabalho mental.)
De novo, divida isto (8060) por 124 e pergunte quantas vezes 806 contém 124.
Será óbvio para todos os iniciados, à primeira vista, que 124 é contido 6 vezes.
Multiplique 124 por 6 (uma volta na roda da multiplicação) dá 744. Subtraia este
resultado de 806, sobram 62. Adicione isto ao resto do dividendo, dando 620.
Divida este 3º resultado outra vez por 124. É imediatamente claro que é contido
5 vezes. Multiplica 124 por 5; isto dá 620. Subtraia este valor de 620 e não
resta nada. Como tal, o quociente é 365.
A vantagem desta divisão, em relação à divisão comum, consiste principalmente no
facto (aparte a infalibilidade) que no nosso método não há senão algumas
multiplicações, nomeadamente tantas quantos os dígitos do quociente inteiro, ou
tantos quantos em quocientes simples. Na multiplicação comum é preciso um número
muito maior, nomeadamente, tantos quantos forem dados pelo produto do número de
dígitos do quociente pelo número de dígitos do divisor. Assim, no exemplo
anterior o nosso método necessitou de três multiplicações porque o divisor
inteiro, 124, teve de ser multiplicado por cada um dos dígitos do quociente
365,- isto é, 3. No método comum, no entanto, cada dígito do divisor é
multiplicado por cada dígito do quociente e por isso há nove multiplicações no
exemplo dado.
Também não faz diferença se as poucas multiplicações forem grandes, mas no
método comum há mais e mais pequenas; Igualmente, poder-se-ia dizer que, também
no método comum, se poderiam fazer menos multiplicações, mas maiores se o
divisor inteiro fosse multiplicado por um número arbitrário do quociente. Mas a
resposta é óbvia, sendo a nossa única grande multiplicação tão fácil, mesmo mais
fácil que qualquer uma de outro tipo, não importa quão pequena. É efectuada
instantaneamente por uma simples volta na roda e sem qualquer tipo de medo de
errar. Por outro lado, no método comum, quanto maior for a multiplicação, mais
difícil é e mais sujeita a erros. Por essa razão, pareceu aos professores de
aritmética que na divisão deveriam ser usadas muitas multiplicações pequenas, em
vez de uma única multiplicação grande. Deverá acrescentar-se que a maior parte
do trabalho trivial consiste em acertar no número para ser multiplicado, ou para
mudar, consoante as circunstâncias, o número dos vários dentes nas rodas
multiplicativas. No entanto, ao dividir o multiplicando (isto é, o divisor)
permanece o mesmo, e apenas o multiplicador (isto é, o quociente) muda sem
necessidade de mexer na máquina. Finalmente, também é de acrescentar que o nosso
método não necessita de qualquer trabalho de subtracção; porque, enquanto se faz
a multiplicação na máquina, a subtracção é feita automaticamente. Do exposto
acima é notório que a vantagem da máquina se torna mais acentuada quanto maior
for o divisor.
Está suficientemente claro quantas aplicações podem ser encontradas para esta
máquina, como a eliminação de todos os erros e de todo o trabalho de cálculo de
números e é de grande utilidade para o governo e para a ciência. É sabido com
que entusiasmo as “réguas de cálculo” de Napier, foram aceites, no entanto, o
seu uso na divisão não dá resultados mais rápidos ou mais seguros que os
cálculos comuns. Pois na multiplicação de Napier é necessário adições constantes,
mas na divisão não é, de qualquer forma, mais rápido que no método normal. Assim,
as “réguas de cálculo” rapidamente caíram em desuso. Mas na nossa máquina não há
trabalho quando se multiplica e muito pouco quando se divide.
A máquina de Pascal é um exemplo do génio mais feliz mas enquanto facilita
apenas adições e subtracções, a dificuldade das quais não é muito grande, a
multiplicação e a divisão obrigam a um cálculo prévio, de forma que, se
recomenda mais como um requinte para o curioso, do que para o uso prático de
pessoas envolvidas em negócios.
E agora, que podemos dar um aplauso final à máquina podemos dizer que será
desejável para todos aqueles que estão envolvidos em computações e que, bem se
sabe, são os gerentes de todos os negócios financeiro, os administradores de
outros bens, mercadores, inspectores, geógrafos, navegadores, astrónomos, e (todos
relacionados) com qualquer profissão que use a matemática.
Mas, limitando-nos aos usos científicos, as velhas tabelas geométricas e
astronómicas poderiam ser corrigidas e poderiam ser construídas novas com a
ajuda das quais poderíamos medir todos os tipos de curvas e figuras, sendo elas
compostas ou decompostas e sem nome, com tanta certeza como a que somos agora
capazes de tratar os ângulos de acordo com o trabalho de Regiomontanus e o
círculo de acordo com o de Ludolphs of Cologne, da mesma maneira que linhas
rectas. Se isto acontecesse pelo menos para as curvas e para as figuras que são
mais importantes e usadas mais vezes, depois do estabelecimento de tabelas, não
só para linhas e polígonos, mas também para elipses, parábolas, hiperparábolas e
outras figuras de maior importância, sendo estas descritas pelo movimento ou por
pontos, poderíamos assumir então que a geometria era perfeita para o uso prático.
Além do mais, apesar da demonstração óptica ou observação astronómica ou a
composição dos movimentos nos trazer novas figuras, será fácil para qualquer
pessoa construir tabelas, para ela própria, de forma a conduzir as suas
investigações com pouco trabalho e com grande exactidão; porque é sabido dos
fracassos daqueles que tentaram a quadratura do círculo que a aritmética é de
certeza a guardiã da exactidão geométrica. Assim, irá compensar ter o trabalho
de ampliar o mais possível as tabelas pitagóricas principais; as tabelas
de quadrados, cubos e outras potências e as tabelas de combinações, variações e
progressões de todos os tipos, para facilitar o trabalho.
Certamente, também os astrónomos não terão que continuar a exercitar a paciência
que é requerida para o cálculo. É isto que os detém no cálculo ou correcção de
tabelas, da construção de Ephemerides, de trabalhar em hipóteses, e da discussão
de observações, uns com os outros. Porque é impróprio de homens excelentes
perder horas como escravos no trabalho do cálculo, que podia ser seguramente
delegado para qualquer outra pessoa se a máquina fosse utilizada.
O que disse acerca da construção e futuro uso (da máquina), deve ser suficiente,
e acredito que se tornará absolutamente claro para os observadores (quando
completo).
Tradução de Cleonice Narciso e Magda Lourenço realizada a partir da versão inglêsa do texto latino feita pelo Dr. Mark Holmes, David Eugene Smith (ed.), A Source Book in Mathematics, New York: Dover, 1959, pp. 173-181. Revisão de Olga Pombo