Advertência necessária àqueles que têm curiosidade de ver a Máquina Aritmética e de a usar.

por

Blaise Pascal

Querido leitor, este artigo servirá para informá-lo de que irei submeter ao público uma pequena máquina, da minha autoria, com a qual poderá, sozinho e sem qualquer tipo de esforço, realizar todas as operações de aritmética, sendo assim dispensado do trabalho que, tantas vezes, o cansa quando trabalha com o ábaco ou com a caneta. Sem vaidade, posso esperar que ela não o irá desiludir, já que Monseigneur le Chancelier a honrou, em Paris, com a sua opinião favorável e, desde então, os mais qualificados em Matemática não a deixaram de julgar merecedora dessa aprovação. No entanto, de modo a não parecer negligente ao obter também a sua opinião, senti-me obrigado a tornar claras todas as dificuldades que julgo capazes de serem confrontadas pelo seu entendimento quando se der ao trabalho de a considerar.

 Não tenho dúvidas a que, depois de vê-la, virá de imediato ao seu pensamento a ideia de que devia ter explicado por escrito, não só a sua construção, mas também o seu uso e, para tornar a explicação compreensível, deveria ter sido obrigado a representar por figuras , segundo o método dos “geómetras”(1) , as dimensões, a disposição e a relação de todas as partes e de como cada uma deverá ser colocada para compor o instrumento e para realizar o seu movimento na perfeição. Mas não pense que, depois de ter gasto tempo, trabalho e dinheiro para tornar a máquina utilizável, deixei de fazer tudo o necessário para o satisfazer nesse ponto - o que indicaria uma falha de realce se não tivesse sido impedido de o fazer por uma razão tão poderosa que, espero, o leve a desculpar-me. Acredito que o leitor aprovará a minha abstenção relativamente a esta fase do trabalho quando reflectir, por um lado, na facilidade com que podem ser explicados, numa pequena conferência, a construção e o uso deste máquina , e por outro lado, no acanhamento e na dificuldade que haveria em tentar expressar, por escrito, as dimensões, formas, proporções, posição e outras propriedades das diversas peças. Além do mais, poderá considerar o que significa aprender para todos aqueles que podem ser ensinados oralmente e, como uma explicação por escrito da minha máquina seria tão inútil como uma descrição escrita de todas as partes de um relógio, enquanto que, uma explicação verbal, é tão simples. É assim óbvio que uma apresentação escrita não provocaria outro efeito senão um desinteresse de grande parte das pessoas, levando-as a conceber mil dificuldades onde não existe nenhuma.

Agora, querido leitor, considero necessário dizer que prevejo duas coisas capazes de turvar o seu espírito. Sei que há algumas pessoas que têm como profissão encontrar erros em todo o lado e que, entre esses, se encontram aqueles que dirão que a máquina poderia ser simplificada. Este é o primeiro ponto que sinto necessidade de clarificar. Tal afirmação só pode ser feita por pessoas que têm, com certeza, algum conhecimento de mecânica ou de geometria, e que, não sabendo relacionar uma com a outra e ambas com a Física, se elogiam a si próprios ou são enganados pelas suas próprias concepções imaginárias acreditando que muitas coisas que não são possíveis o são. Um conhecimento incompleto, em geral, não é suficiente para permitir a essas pessoas prever o aparecimento de inconvenientes, quer pela natureza do caso, quer pelos espaços que as peças da máquina devem ocupar. Os movimentos dessas peças são diferentes e elas deverão estar soltas para que não interfiram umas com as outras. Portanto, quando aqueles cujo conhecimento é tão imperfeito propuserem que esta máquina seja simplificada, peço-lhe para lhes comunicar que, eu próprio, responderei se eles me perguntarem e lhes assegurarei que lhes permitirei ver, quando quiserem, muitos outros modelos, juntamente com o modelo perfeito, muito menos complexo, que eu tenho usado publicamente desde há seis meses. Pode parecer que estou ciente de que a máquina pode ser simplificada. Em particular, poderia, se assim tivesse desejado, colocar o movimento da operação na parte frontal (2). Mas, essa substituição só poderia ser feita com muitos inconvenientes e, como tal, coloquei-a na parte superior da máquina, com toda a conveniência que se deseje e prazer. Também poderá dizer-lhes que o meu projecto não tem sempre como objectivo a redução a movimentos controlados de todas as operações de aritmética. Desta forma, estou convencido que só terá sucesso se o movimento for simples, fácil, conveniente e de execução fácil e ainda se a máquina for durável, sólida e capaz de ser transportada sem sofrer alterações. Finalmente, pode dizer-se que, se essas pessoas tivessem pensado tanto neste assunto como eu, e tivessem considerado todos os meios que eu considerei para atingir o meu objectivo, a experiência ter-lhes-ia demonstrado que um instrumento mais simples não teria todas as qualidades que eu consegui, com sucesso, dar a esta pequena máquina.

Em relação à simplicidade do movimento das operações, concebi a máquina de forma a que, apesar das operações de aritmética serem opostas umas as outras -  como a adição e subtracção e a multiplicação e a divisão - serem todas realizadas nesta máquina por um único movimento. A facilidade deste movimento das operações é muito evidente, já que é fácil mexer mil ou dez mil (peças), todos ao mesmo tempo, se o desejo for fazer um único movimento de peças, apesar de todas elas realizarem o movimento perfeitamente (não sei se existe outro princípio na natureza como o princípio em que baseei esta facilidade de operação). Se quiser apreciar a máquina, para além da facilidade de movimentos na operação, poderá compará-la com o método do ábaco e com a caneta. Ao utilizar o ábaco, o calculador (especialmente quando é pouco experiente) é frequentemente obrigado, por receio de cometer um erro, a fazer uma longa e extensa série de contas, sendo de seguida levado a juntar e refazer aqueles cálculos que os calculadores, sem errar, acabam por verificar terem sido estendidos desnecessariamente, facto em que se vê como as duas tarefas são desnecessárias e como uma dupla perca de tempo. Esta máquina facilita o trabalho e elimina todas as tarefas desnecessárias. O mais ignorante encontrará tantas vantagens como o mais experiente. O instrumento compensa a ignorância e a falta de prática e, sem qualquer esforço do operador, torna possíveis atalhos por si própria, quando os números já estão dispostos. Da mesma maneira, você sabe que, ao operar com a caneta é necessário reter ou pedia emprestados os números necessários, e que os erros surgem nessas retenções e empréstimos, excepto quando há um treino muito longo aliado a uma concentração profunda que rapidamente cansa a mente. Esta máquina dispensa o operador dessa maçada. Basta ter discernimento. O operador é poupado às falhas de memória e, sem retenções ou empréstimos, faz por si próprio o que deseja, sem qualquer pensamento da sua parte. Há centenas de outras vantagens que lhe serão reveladas com a prática e cujos detalhes seria cansativo mencionar.

Em relação à quantidade de movimento (3), é suficiente dizer que esse movimento é imperceptível, indo da esquerda para a direita e seguindo o nosso método comum de escrita, excepto que se realiza em círculo.

Finalmente, a sua rapidez é evidente se comparada com os outros dois métodos, do ábaco e da caneta. Se desejar uma explicação mais detalhada dessa rapidez, direi que é igual à agilidade da mão do operador. Na verdade, a rapidez é baseada, não só na facilidade dos movimentos, que não tem resistência, mas também no reduzido tamanho das peças que são movidas pela mão. O resultado é que, com um teclado tão pequeno, o movimento pode ser feito em pouco tempo. Deste modo, a máquina é pequena e, assim, é facilmente manejada e transportada.

E em relação às características de longevidade e durabilidade do instrumento, a durabilidade do metal com que é feita deveria ser uma garantia suficiente. Só me permiti dar total garantia aos outros depois de ter a experiência de transportar o instrumento por mais de 250 léguas de estrada, sem que este demonstrasse qualquer estrago.

Desta forma, querido leitor, peço-lhe novamente para não considerar como defeito desta máquina ser composta por tantas partes porque, sem estas, não lhe poderia ter dado todas as qualidades que expliquei e que são absolutamente necessárias. Poderá encontrar nisto uma espécie de paradoxo, visto que, para tornar o movimento da operação mais simples, é necessário que a máquina seja construída de um movimento mais complexo.

A segunda possibilidade para descrédito, querido leitor, poderá decorrer das reproduções imperfeitas desta máquina que têm sido produzidas pela presunção de certos artesões. Nesses casos, imploro-lhe que considere o produto cuidadosamente, para se proteger de uma surpresa, para não levar “gato por lebre” e não julgar o original pelas produções imperfeitas resultantes da ignorância e audácia dos mecânicos. Quanto melhores forem na sua arte, mais devemos temer que as forças da vaidade os levem a considerar-se capazes de conceber e produzir novos instrumentos, com princípios e regras que ignoram. Inebriados por essa falsa persuasão, agem cegamente, sem medidas precisas e cuidadosamente determinadas e sem proposições. O resultado é que, depois de muito tempo e trabalho, não produzem algo igual ao que planearam, ou, no máximo, produzem uma pequena monstruosidade à qual faltam os principais membros e na qual os outros membros são disformes e sem qualquer proporção.

Essas imperfeições, que a tornam ridícula, nunca deixam de atrair o desdém de todos os que a vêem, e muitos deles culpam sem razão o inventor, em vez de se informarem sobre ele, para então censurarem a presunção desses artesões que, pela sua ousadia não justificada, realizam mais do que aquilo que podem, produzindo esses abortos inúteis. É importante, para o público, reconhecer as suas fraquezas e aprender que, relativamente a invenções, é necessário que a arte (4) seja ajudada pela teoria até que o uso tenha tornado as regras da teoria tão comuns que possam ser reduzidas a uma arte e até que a prática contínua tenha dado aos artesões o hábito de seguirem essas regras. Não estava nos meus poderes, com toda a teoria imaginável, executar sozinho o meu projecto, sem a ajuda de um mecânico que soubesse perfeitamente a utilização do torno, da lima e do martelo, para fazer as partes da máquina com as medidas e proporções que para ela defini. Igualmente, é impossível a um simples artesão, por habilidoso que seja na sua arte, realizar, de forma perfeita um novo instrumento que, como este, contém movimentos complicados, sem a ajuda de pessoas que, com as regras da teoria, lhe dêem as medidas e proporções de todas as peças com que a máquina deverá ser constituída.

Querido leitor, tenho uma boa razão para lhe dar este último conselho, depois de ter visto, com os meus olhos, uma reprodução errada da minha ideia, feita por um trabalhador da cidade de Rouen. Tratava-se de um relojoeiro de profissão que, de uma simples descrição que lhe tinha sido dada do meu primeiro modelo, feita alguns meses atrás, teve a presunção de conceber outra. E, o que é pior, com outro tipo de movimento. Já que o bom homem não tinha outro talento senão utilizar habilmente as suas ferramentas, e não possuía quaisquer conhecimentos de geometria e mecânica (apesar de ser muito habilidoso na sua arte e muito industrioso em muitas outras coisas não relacionadas), acabou por apenas fazer uma peça inútil, aparentemente verdadeira, polida e bem preenchida na parte de fora, mas tão imperfeita no interior que não tem qualquer uso. Em virtude da sua novidade, a dita máquina não deixou de ser apreciada por aqueles que não percebem nada do assunto e, não obstante todos esses defeitos essenciais que as provas demonstram, encontrou, na mesma cidade, lugar numa prateleira de um coleccionador que está recheada de outras peças raras e curiosas. A aparência daquele pequeno aborto desagradou-me tão imensamente e arrefeceu de tal modo a paixão com que tinha trabalhado na realização do meu modelo que, de uma só vez, dispensei todos os meus trabalhadores e resolvi desistir totalmente do meu empreendimento por causa da apreensão de que outros pudessem sentir ousadia semelhante e de que as falsas cópias que produzissem desta nova ideia pudessem arruinar o seu valor original e a sua utilidade para o público. Mas, algum tempo depois, Monseigneur le Chancelier, ao ter a gentileza de examinar o meu primeiro modelo e ao dar testemunho da consideração que demonstrou pela invenção, aconselhou-me aperfeiçoá-la. Com o objectivo de eliminar os medos que me travaram durante algum tempo, quis cortar o mal pela raiz, de forma a prevenir que a minha reputação fosse prejudicada e incomodado o público. Isto foi demonstrado na delicadeza que teve em conceder-me um privilégio (conceder a patente) fora do comum, o que à partida impediu todos os abortos ilegítimos que poderiam ser produzidos por outros e que não resultassem da legítima aliança da teoria com a arte.

De resto, se em qualquer outra altura o leitor ponderou na invenção de máquinas, posso rapidamente persuadi-lo que a forma do instrumento, no seu estado presente, não é a primeira tentativa que fiz nessa matéria. Comecei o meu projecto por uma máquina muito diferente, tanto no material, como na forma, que (apesar de ter satisfeito muitos) não me deu a mim total satisfação. O resultado foi que, ao alterá-la gradualmente, sem me aperceber concebi um segundo modelo, no qual ainda encontrei inconvenientes que não aceitei. Para encontrar uma nova solução, desenvolvi uma terceira máquina que trabalha com molas e que é de construção muito fácil. É com esta que, como acabei de dizer, já operei várias vezes, a pedido de várias pessoas, estando ainda a máquina em perfeito estado. No entanto, ao aperfeiçoá-la constantemente, encontrei razões para a alterar e, finalmente, ao reconhecer essas razões, quer na dificuldade de utilização, na dureza dos seus movimentos, na tendência para se desordenar facilmente com o tempo ou com o transporte, tive paciência para fazer um total de cinquenta modelos, totalmente diferentes, alguns de madeira, alguns de marfim e ébano e outros de cobre, antes de ter chegado à finalização desta máquina que agora dou a conhecer. Apesar de, como pode observar, ser constituída por diversas partes pequenas é ao mesmo tempo tão sólida que, depois da experiência de que falei antes, asseguro-lhe que todos os choques que receba no transporte, tão longe quanto este seja, não a irão desarranjar.

Finalmente, querido leitor, agora que a considero pronta para ser vista, e para que você a possa ver e operar com ela, se estiver interessado, rogo-lhe que me dê a liberdade de esperar que esta ideia, totalmente nova, de encontrar um terceiro método para realizar todas as operações de aritmética e que não tem nada em comum com os usuais métodos da caneta e do ábaco, receba da sua parte alguma estima e atenção. Espero que, ao aceitar o meu objectivo de lhe agradar e de o ajudar, esteja agradecido pelo cuidado que tive em, daqui em diante, tornar todas as operações que, com os métodos anteriores, são dolorosas, complexas, longas e incertas, em operações fáceis, simples, prontas e seguras. 

 

Notas: 

(1)   – geometer - palavra usada então para referir os matemáticos em geral.

(2)   − Pascal propõe aqui colocar o mostrador na face frontal.

(3)   − Pascal  faz referência ao movimento da alavanca ao mudar o número.

(4)   − “arte” como sinónimo de “técnica”.

 

Tradução de Cleonice Narciso e Magda Lourenço a partir das Oeuvres de Blaise Pascal editadas em 1908 por Brunschvieg e Boutroux, Paris: Les Grands Ecrivains de la France, vol.1, pp. 303-314. Revisão de Olga Pombo