Uma pequena análise ao conteúdo e “Conceitos Fundamentais da Matemática”

 

        O livro é constituído por três partes:

Parte 1: Números,

Parte 2: Funções,

Parte 3: Continuidade.

Na Parte 1 somos conduzidos para problemas de contagem, e medida, do campo real e dos números relativos. Com o objectivo de aproximar o leitor a todos estes conceitos e definições, Bento Caraça introduz um capítulo a que chamou “UM POUCO DE HISTÓRIA”. Aqui podemos ter contacto com Pitágoras de Samos e a sua Escola Pitagórica, com Parménides e Zenão e a Escola de Elea.

Nesta primeira parte, Bento Caraça explica o número, como e porquê ele surge.

O número, como em geral acontece com as coisas mais essenciais que foram inventadas, surgiu da necessidade. Da necessidade de estabelecer regras tanto sociais como individuais. Ou seja, à medida que a vida social foi evoluindo, foi havendo necessidade de estabelecer certas regras e leis. Por exemplo, fazer contagens, das cabeças de gado que um pastor possuía, medir os terrenos e determinar as suas áreas...

A título de curiosidade Bento Caraça lembra-nos, na página 5 do seu livro, que o nome dígito, “que designa os números naturais de 1 a 9, vem do latim digitus que significa dedo”, isto para dar ênfase ao factor humano que está associado ao aparecimento do número natural. De facto, ao longo do seu livro existe sempre a preocupação de ligar a matemática ao real, de mostrar que a matemática não é uma ciência formal e “fria” mas sim muito humana e que a partir dela surgiram várias outras ciências.

A evolução do número, a descoberta do conjunto dos inteiros, fraccionários, racionais, irracionais, está intimamente relacionada com o evoluir de uma civilização. Assim, hoje em dia existem povos primitivos que apenas têm conhecimento dos números naturais, uma vez que estes povos apenas necessitam de uma pequena parte do conjunto N  para resolver os problemas do seu dia a dia.

Introduzido o conceito de número é nos explicado as operações aritméticas, adição, subtracção, divisão e multiplicação bem como o seu surgimento no contexto histórico.

Numa perspectiva histórica, o desenvolvimento da Matemática acompanhou o desenvolvimento das civilizações e ousamos até em dizer que promoveu o desenvolvimento das civilizações. Estamos perante uma correspondência bijectiva uma vez que, como diz Bento Caraça, na página 63 do seu livro, “A ciência só desponta em estado relativamente adiantado da civilização.”, mas por outro lado o desenvolver da ciência adianta a civilização.

Assim, por exemplo, o problema da medida, tratado no capítulo II desta Parte 1, levou a um desenvolvimento da Geometria.  Ou seja, é a partir do conhecimento do número e da necessidade de medir terrenos para a determinação de áreas que surge a geometria. Como o próprio Bento Caraça exemplifica era necessário o cálculo de áreas de terrenos e de quantidades de sementes a semear, bem como realizar contratos de compra e venda de terras.

No capítulo IV, Bento Caraça contextualiza-nos na história do número, referindo que a evolução da ciência dependia de determinadas condições sociais. Por exemplo, na Grécia Antiga estabeleceram-se condições para o evoluir da matemática, havia pessoas com tempo livre para pensar e se dedicarem aos estudos, pessoas que beneficiavam de uma condição social mais alta.

A segunda parte dos conceitos fundamentais da matemática, intitulada Funções, está dividida em quatro capítulos. No primeiro capítulo Bento de Jesus Caraça começa por explorar as leis naturais fazendo assim um “Estudo matemático das leis naturais”. No segundo capitulo, Caraça leva-nos a fazer, como ele próprio indica, uma “Pequena digressão técnica”. Já no terceiro capitulo entramos, de uma forma mais profunda, nas “Equações algébricas e números complexos”. Por fim, como que querendo descansar um pouco, Caraça leva-nos numa “Excursão histórica e filosófica”.

No primeiro capitulo começa por lembrar a “mãe” da ciência e, portanto, da matemática. Como o próprio indica, a ciência provém da necessidade de compreensão e domínio da natureza, sendo a partir daí que toda a ciência se desenvolveu. “ O objectivo da Ciência é, portanto, a formação de um quadro ordenado e explicativo dos fenómenos naturais - fenómenos do mundo físico e do mundo humano, individual e social”. Quadro este que deve satisfazer varias exigências, tais como ser compatível com o que acreditamos  e vemos na natureza, ou sejs, com a realidade. Há, no entanto nesta realidade,  uma interdependência entre todas as coisas (animais, plantas,...), e uma fluência ,isto é, um constante desenvolvimento,  uma evolução permanente, o que cria algumas dificuldades, pois, como é possível estudar algo em permanente evolução e dependendo de todas as outras coisas?

No seguimento deste capítulo, Caraça dá-nos varias noções que mais tarde serão necessárias, como que uma introdução. Caraça prima pelos exemplos e simplicidade de escrita, fazendo com que o leitor interiorize bem estas noções importantes.

Caraça começa então, na página 125, a “ falar” de matemática, mais especificamente de funções. Começa por um exemplo pratico:” Suponhamos que se fizeram as medições de segundo em segundo e que se encontraram os valores seguintes:

Tempo (em segundos): 0   1       2      3      4         5...

Espaço (em metros) :    0  4,9  19,6  44,1 78,4  122,5...”

A partir daqui introduz a noção de variável e, seguidamente, a de função, dando logo exemplos, como é característico de Caraça.

Caraça é conhecido pelo seu grande mérito e sapiência, mas também por descrever a matéria  de forma linear e continua, o que não é muito vulgar em livros matemáticos. Apesar da sua escrita fluir e irmos aprendendo de forma continua com Caraça, este vê-se obrigado a recorrer à matemática típica dando, para terminar a seguinte: “Definição:- sejam x e y duas variáveis representativas de conjuntos de números; diz-se que y é função de x e escreve-se y=f(x) se entre as duas variáveis existe uma correspondência unívoca no sentido x®y. A x chama-se variável independente, a y variável dependente.” .Seguidamente mais uns exemplos, onde Caraça faz operações com funções e substitui valores.

Depois desta preparação, Caraça parte para a interpretação geométrica de uma função, dando primeiro a definição de sistema cartesiano no plano. Apresenta depois gráficos provenientes de funções dadas e faz um breve estudo sobre estes, calcula medidas de vectores e enquadra as coordenadas, sempre “lendo” os gráficos.

No fim deste capitulo, Caraça dá a conhecer ao leitor que toda a função tem uma respectiva interpretação geométrica, isto é :” Suponhamos que a função definida por uma expressão analítica – a imagem geométrica da função é a tradução, no campo geométrico, daquela lei analítica que a expressão analítica implica.”  . Há portanto uma unificação/correspondência das leis analíticas com as leis geométricas, como o próprio afirma.

No segundo capítulo, que Caraça intitula “Pequena digressão técnica”,  aprofunda o estudo de funções. 

Define, leis operatórias e polinómios inteiros. Depois de ter dado as bases necessárias para uma aprendizagem mais profunda da matemática, Caraça faz referencia a varias funções mais conhecidas e típicas da matemática, as funções racionais, algébricas, circulares e transcendentes, dando sempre, em cada uma delas, exemplos e aplicações.

Somos conduzidos no capítulo que se segue, o terceiro capitulo intitulado “Equações algébricas e números complexos”,  para as equações algébricas do primeiro, segundo e terceiro grau. Encontramos vários exemplos e exercícios e até, o que Caraça afirma ser “um pequeno embaraço” e “um grande embaraço”, que consiste num problema para o qual ainda não temos solução uma raiz negativa.

É partindo daqui que Caraça inicia o seu próximo tópico, “Números complexos”. Começa por dar a definição do que é um número imaginário e de como se constrói. Dá também alguma atenção à história do número complexo e das dificuldades que surgiram quando este apareceu. “...algebristas do século XVI. Sugestionados pelo aspecto, que consideravam artificioso e fora das possibilidades numéricas, da igualdade =-1 , consideraram os novos números como mero expediente de calculo, sem lhes conferirem dignidade numérica.  Este modo de ver arreigou-se de tal modo no espirito dos algebristas que, já no século XVII, Descartes usou, para designar os novos números, o nome de imaginários.”  (pag. 165 do livro Conceitos fundamentais da matemática). Depois desta explicação, Caraça volta à teoria dos números complexos. Mostra-nos a sua representação geométrica e  relações destes com triângulos e com funções trigonométricas.

Num terceiro tópico, “Interacção”, Caraça começa por nos falar do teorema fundamental da álgebra, dando um exemplo, e fazendo referência aos problemas que antigamente este tipo de situações criava. Fala-nos das complicações desses problemas consoante as alturas em que eles surgiam. Partindo destes problemas face aos números irracionais, sobre os quais faz um breve comentário. Este tópico acaba com um problema que tem por objectivo que o leitor continue a procurar saber mais sobre o assunto. Como Caraça o diz “ Continua a abertura de perspectivas”

Ao terminar este capítulo, Bento Caraça afirma: “ A noção de complexo e a noção de infinito são os dois principais instrumentos da Matemática moderna; no emprego generalizado desses instrumentos reside talvez a sua maior diferença em relação à Matemática antiga”.

No ultimo capitulo, capitulo IV, intitulado “Excursão histórica e filosófica”, Caraça faz uma breve analise à historia da matemática, desde a Grécia antiga ate aos nossos tempos. Descreve alguns dos problemas que existiram, fala de estudos abandonados  e que actualmente são muito utilizados, dá mais alguns exemplos de elipses e curvas com a intenção de explorar melhor as funções. No fim faz a historia de como e porque apareceram as funções, isto é, da evolução do conceito  de função. “O conceito ganhou assim em generalidade porque se libertou da eventual forma de estabelecer a correspondência das variáveis, mas essa mesma generalidade o obrigou a afastar-se das condições de que nasceu.” (Pág. 209) 

“Todas as coisas devem ser estudadas relativamente ao seu contexto. É nesse tribunal que devem ser julgados os resultados que os instrumentos analíticos, na sua forma mais geral, permitem adquirir.” Assim acaba Caraça este ultimo capitulo com intenção de esclarecer o leitor do porquê da existência de funções.

Na última parte a designação genérica é a continuidade e aqui são tratados assuntos como as séries, os limites e os infinitésimos.

Como é habitual nas partes anteriores, também aqui Bento apresenta a relação entre os conceitos e o seu contexto histórico, existem por isso enumeras referências a astrónomos e matemáticos como Da Vinci, Copérnico, Kepler, Galileu, Laplace, Newton e muitos outros.

Concluímos esta pequena análise com uma frase de Bento Caraça que se encontra no prefácio à primeira edição deste livro:

“ A Matemática é geralmente considerada como uma ciência à parte, desligada da realidade, vivendo na penumbra do gabinete fechado, onde não entram ruídos do mundo exterior, nem o sol, nem os clamores dos homens. Isto, só em parte é verdadeiro.”

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt