Elpino, Filóteo, Fracastório, Búrquio
ELP. Como é possível que o universo seja
infinito? FIL. Como é possível que o universo seja finito? ELP. Julgam que se pode demonstrar essa infinidade? FIL. Julgam que se pode demonstrar essa finidade ? ELP. De que extensão falas? FIL. E
tu de que limites falas?
FRA. Ad
rem, ad rem, si iuvat; demasiado tempo nos mantiveste na dúvida. BÚR. Apresenta já alguma argumentação, Filóteo,
pois vou-me divertir imenso ao escutar essa fábula ou fantasia. FRA. Modestius,
Búrquio: que dirás, se por fim a verdade te convencer? BÚR. Ainda que isso seja verdade, não quero crê-lo;
porque não é possível que esse infinito possa ser compreendido pela minha
cabeça, nem digerido pelo meu estômago; embora, na verdade, eu desejasse que
fosse como diz Filóteo, pois que, se por má sorte me acontecesse cair fora
deste mundo, encontraria sempre outras terras. ELP. Decerto, Filóteo, se nós quisermos fazer dos
sentidos juiz, ou dar-lhes a primazia que lhes cabe, pelo facto de todo o
conhecimento provir deles, concluiremos, talvez, que não é fácil encontrar
o meio para chegar ao que tu dizes, de preferência ao contrário. Agora, se
quiseres, começa por fazer-me compreender alguma coisa. FIL. Não existe sentido que veja o infinito, nem
sentido a que se possa pedir esta conclusão, porque o infinito não pode ser
objecto dos sentidos; por isso, quem procurar conhecê-lo por essa via, é como
quem quisesse ver com os olhos a substância e a essência; e quem a negasse por
não ser sensível, ou visível, viria a negar a própria substância e o ser.
Por conseguinte, deve haver cautela em recorrer ao testemunho dos sentidos, que
só admitimos em relação a coisas sensíveis, e ainda com certa dúvida, se não
concorrerem, juntamente com a razão, para o juízo. Ao intelecto compete julgar
e dar razão das coisas afastadas no tempo e no espaço. Quanto a isto, é
bastante elucidativo e testemunho suficiente, o facto de os sentidos não
terem força para nos contradizer, e ainda mais, evidenciando e confessando e
sua debilidade e insuficiência na aparência de finitude causada pelos limites
do seu horizonte; e até nisto se vê a sua inconstância. Ora, como temos por
experiência que eles nos enganam, com respeito à superfície deste globo em
que nos encontramos, muito mais deveríamos suspeitar deles, no que respeita ao
termo que nos fazem compreender na concavidade estrelada.
ELP. Diz-me então: para que nos servem os
sentidos?
ELP. Onde está, então? FIL. No objecto sensível, como num espelho; na razão,
sob o aspecto de argumentação e discurso; no intelecto, sob o aspecto de princípio
ou conclusão; na mente, como forma própria e viva.
ELP. Vamos, procede com os teus argumentos. FIL. Assim farei. Se o mundo é finito, e fora do
mundo está o nada, pergunto-te: onde está o mundo? Onde está o universo?
Responde Aristóteles: está em si próprio. O convexo do primeiro céu é lugar
universal; e ele, como primeiro continente, não está noutro continente,
porque o lugar não é senão superfície e extremidade de um corpo
continente; daí, o que não tem corpo continente, não tem lugar. Ora, que
queres tu dizer com isto, Aristóteles, que «o lugar está em si próprio?»
Que queres tu concluir com essa «coisa existente fora do mundo?» Se dizes que
está aí o nada: o céu, o mundo, não estarão certamente em parte alguma... FRA. Nullibi
ergo erit mundus. Omne erit in nihilo. FIL. O mundo será algo que não se encontra em
parte alguma. Se dizes (pois tenho a certeza que queres afirmar a existência de
qualquer coisa, para fugir ao vácuo e ao nada) que fora do mundo há um ente
intelectual e divino, Deus, que vem a ser lugar de todas as coisas, tu mesmo
ver-te-ás muito atrapalhado para fazeres compreender como uma coisa incorpórea,
inteligível e sem dimensões, possa ser lugar de coisas extensas. Se dizes que
as compreende como uma forma, pelo mesmo modo que a alma compreende o corpo, não
respondes à questão do estar fora, nem à pergunta do que se encontra para além
e fora do universo. E se te queres justificar com dizer que onde está o nada, e
onde não está coisa alguma, tão-pouco não existe lugar nem para além, nem
fora, não me satisfarás com isso; porque são palavras e desculpas que não se
podem realmente pensar. Pois é absolutamente impossível que, com qualquer juízo
ou fantasia (mesmo que outros juízos e outras fantasias surgissem), me possas
levar a afirmar, com real intenção,
que se encontra tal superfície, tal limite, tal extremidade, para além da qual
nem existe corpo nem vácuo; mesmo que ali estivesse Deus, pois não é tarefa
da divindade encher o vazio, nem por consequência pode de modo algum, sendo
incorpórea, delimitar o corpóreo, porque tudo o que se diz terminar, ou é
forma exterior, ou é corpo continente, e de qualquer modo que o quisesses
afirmar, serias julgado menosprezador da dignidade da natureza divina e
universal.
BÚR. Na verdade, creio que seria necessário
dizer-lhe que se uma pessoa estendesse a mão para além daquele convexo, ela não
estaria num lugar, nem em parte alguma, e por consequência não existiria. FIL. Acrescento, também, que não há engenho que
não perceba ser uma implícita contradição esta afirmação peripatética.
Aristóteles definiu o lugar não como corpo continente, não como certo espaço,
mas como uma superfície do corpo continente; acontecendo que o primeiro,
principal e máximo lugar, e aquele ao qual menos convém—ou por nada convém—tal
definição. Trata-se da superfície convexa do primeiro móvel que é superfície de um corpo, e de tal corpo, que
somente contém e não é contido. Ora, para que essa superfície seja lugar, não
se exige que seja de corpo contido, mas sim de corpo continente. Se é superfície
de corpo continente e não está junto, e continuada no corpo contido, é um
lugar sem lugar, atendendo que o primeiro céu não pode ser lugar, senão pela
sua superfície côncava que toca a convexa do segundo. Eis como aquela definição
é vã, confusa e destruidora de si própria. A tal confusão se chega pelo
inconveniente de se pretender que fora do céu esteja o nada.
ELP. Dirão os peripatéticos que o primeiro céu
é corpo continente pela superfície côncava, e não pela convexa, e por ela é
lugar. FRA. E eu acrescento que se encontra, pois, superfície
de corpo continente, que não é lugar. FIL. Em suma, indo directamente ao assunto,
parece-me ridículo dizer-se que fora do céu está o nada, que o céu está em
si próprio, localizado por acidente, e é lugar por acidente, idest com respeito às suas partes, E seja como for que se
interprete o seu «por acidente», não se pode fugir a que se faça de um,
dois; porque sempre é uma coisa o continente, e outra o conteúdo, e tanto
assim é, que para ele próprio o continente é incorpóreo, e o conteúdo é
corpo o continente é imóvel, o conteúdo móvel; o continente matemático, o
conteúdo físico. Ora, seja essa superfície o que se quiser, nunca me cansarei
de perguntar: o que é que está para além dela? Se se responde que está o
nada, então direi ser o vácuo, o inane, e um tal vácuo, um tal inane que não
tem limite nem qualquer termo ulterior, tendo porém limite e fim no lado de cá.
É mais difícil imaginar isto que pensar ser o universo infinito e imenso,
porque não podemos fugir ao vácuo se quisermos admitir o
universo finito. Vejamos agora, se é possível que exista o tal espaço em que
nada está. Neste espaço infinito encontra-se este universo (por acaso, ou por
necessidade, ou providência, por enquanto não nos interessa). Pergunto se
este espaço, que contém o mundo, tem maior faculdade de conter um mundo do que
outro espaço qualquer, existente mais além.
ELP. Nem tão-pouco falta de faculdade. E, das
duas, de preferência aquela do que esta. FIL. Dizes bem. Eu digo que, como o vácuo e inane
(que necessariamente resulta desta afirmação peripatética) não tem faculdade
alguma para receber, muito menos a deve ter para repelir o mundo. Mas, destas
duas faculdades, uma vemo-la em acto, a outra não a podemos ver, de facto, senão
com os olhos da razão. Como neste espaço, igual à grandeza do mundo (que os
platónicos chamam matéria), está este mundo, assim um outro pode estar
naquele espaço e em inumeráveis espaços para além deste, iguais a este.
FRA. Com certeza, podemos julgar com mais segurança
conforme o que vemos e conhecemos, do que contrariamente àquilo que vemos e
conhecemos. E pois que, a nosso ver e segundo a nossa experiência, o universo não
se acaba nem termina no vácuo e inane, e posto que não há disso conhecimento,
logicamente deveríamos concluir que assim é, porque, quando todas as razões
estivessem de acordo, nós veríamos que a experiência é contrária ao vácuo,
e não ao pleno. Falando assim, ficaremos sempre desculpados; mas falando doutro
modo, não fugiremos com facilidade a mil acusações e inconvenientes.
Continua, Filóteo. FIL. Portanto, do lado do espaço infinito, sabemos
com certeza que há a faculdade de receber o corpo, e nada mais. De qualquer
modo, bastar-me-á considerar que não lhe repugna recebê-lo, ao menos por esta
razão: onde está o nada, nada existe mais além que impeça e constitua
limite. Resta agora ver se é de admitir que todo o espaço seja pleno ou não.
E aqui, se considerarmos tanto o que este pode ser, como o que pode fazer,
sempre havemos de ver que não é lógico, mas necessário, que seja pleno. E,
para evidenciá-lo, pergunto-te se é bom que este mundo exista.
FIL. Logo é bom que este espaço, igual à dimensão
do mundo (a que quero chamar vácuo, semelhante e indistinto do espaço que tu
dirias ser o nada, para além da convexidade do primeiro céu) seja do mesmo
modo pleno.
ELP. Pois
é. FIL. Além disso, pergunto: acreditas que, assim
como neste espaço se encontra esta máquina chamada mundo, a mesma teria podido
ou poderia estar noutro espaço deste inane?
ELP. Direi que sim,
se bem que não veja como no nada, no vácuo, se possam estabelecer
diferenças. FRA. Continua. FIL. Portanto, assim como este espaço pode, tem
podido, e é necessariamente perfeito pela continência deste corpo universal,
como dizes, assim todo o outro espaço pode, e tem podido ser perfeito.
ELP. Concordo; e com isto? Pode existir e pode
estar. Existe, portanto? Está? FIL. Levar-te-ei, se estiveres disposto a confessá-lo
francamente, a dizer que pode existir, que deve existir, e que existe. Porque,
como seria mal que este espaço não fosse pleno, isto é, que este mundo não
existisse, não o seria menos, se todo o espaço não fosse pleno, em virtude da
sua igualdade; e por consequência, o universo será de dimensão infinita, e os
mundos inumeráveis.
ELP. Digo que é mal com respeito ao que está
neste espaço, pois de igual modo poderia estar noutro igual a este. FIL. Se bem considerarmos, vem a ser o mesmo:
porque a bondade do ser corpóreo que existe neste espaço, como poderia existir
noutro equivalente, é proporcional à bondade própria e à perfeição que
podem existir em tanto e tal espaço, quanto é este, ou outro igual a este, e não
àquelas que podem existir em outros e inúmeros espaços semelhantes a este.
Tanto mais que, se há razão para que exista um bem finito, um perfeito
terminado, há também razão para que exista um bem infinito, porquanto, onde o
bem finito existe por conveniência e razão, o infinito existe por absoluta
necessidade.
ELP. O bem infinito certamente existe, mas é
incorpóreo. FIL. Nisto estamos de acordo, quanto ao infinito
incorpóreo. Mas o que obsta a que o bem não seja de admitir como ente corpóreo
infinito? Ou que nos impede de pensar que o infinito, implícito no simplicíssimo
e único primeiro princípio, se explana neste seu simulacro infinito e
ilimitado, capaz de conter inumeráveis mundos, em vez de se exprimir em tão
estreitos limites que pareça vitupério o não pensar que este corpo, que se
nos apresenta como grandioso e vasto, em relação à divina presença não seja
senão um ponto, um nada?
ELP. Diremos que este mundo finito, com estes
astros finitos, compreende a perfeição de todas as coisas. FIL. Podes dizê-lo, mas não prová-lo: porque o
mundo, que está neste espaço finito, compreende a perfeição de todas as
coisas finitas que estão no mesmo espaço, mas não das infinitas que existir
possam noutros espaços inumeráveis.
FRA. Por favor, paremos aqui, e não façamos como
os sofistas que disputam para vencer, e, enquanto procuram alcançar o
triunfo, vedam a si próprios, e aos outros, a compreensão da verdade. Ora,
creio que não existe alguém tão teimoso e pérfido, que, acerca da questão
do espaço que pode infinitamente compreender, e acerca da questão da bondade
individual e numeral dos mundos infinitos que possam ser compreendidos,
exactamente como este único que conhecemos, queira deslealmente negar que cada
um deles tenha justa razão para existir, pois que o espaço infinito tem
infinita potência, e nela se louva o acto infinito da existência; pelo que não
se julga deficiente o eficiente infinito, cuja potência não é vã. Portanto,
Elpino, contenta-te com escutares outras razões, se ocorrerem a Filóteo. ELP. A falar verdade, vejo bem que dizer o mundo
ilimitado, como tu dizes o universo, não traz inconveniente algum, e até vem
libertar-nos de inúmeras angústias em que estamos envolvidos, ao afirmarmos o
contrário. Bem sei que muitas vezes, com os peripatéticos, nos acontece ter
que dizer coisas que não têm fundamento algum sob o nosso ponto de vista;
como, depois de termos negado o vácuo, tanto fora como dentro do universo,
pretendêssemos, todavia, responder à questão, onde está o universo, e
afirmar que está nas suas partes, por recear afirmar que não está em lugar
algum; como dizer: nullibi, nusquam.
Mas é evidente que de tal modo é forçoso dizer que as partes se encontram
num lugar qualquer, e o universo não existe em lugar e espaço algum; o que,
como se vê, não tem fundamento racional, mas significa expressamente uma
fuga pertinaz para não confessar a verdade, admitindo o mundo e o universo
infinitos, ou o espaço infinito; posições estas, que conduzem a dupla confusão
quem as sustentar. Daí, eu afirmar que, se o todo é um corpo, e corpo esférico,
por consequência figurado e limitado, é necessário que seja limitado no espaço
infinito; e temos de conceder que é verdadeiramente o vácuo, se quisermos
dizer que aí está o nada; e se de facto existe o vácuo, deve poder conter
mundos, nada menos do que esta parte onde vemos ficar este mundo; se não
existe, deve ser o pleno, e consequentemente o universo é infinito. E não é
conclusão menos estulta a de afirmar estar o mundo alicubi,
dizendo que fora dele está o nada, e que aí está nas suas partes, do que se
alguém dissesse que Elpino está alicubi,
porque a sua mão está no seu braço, os olhos no rosto, o pé na perna, a cabeça
no busto. Mas para chegar à conclusão e não me portar como um sofista,
firmando o pé na dificuldade aparente, e gastando o tempo em palavreado, afirmo
o que não posso negar: isto
é, que no espaço infinito poderiam existir infinitos mundos semelhantes a
este, ou que este universo podia estender a sua capacidade de compreensão a
muitos corpos como estes, denominados
astros; e ainda, que (semelhantes ou dissemelhantes que estes mundos sejam) a
existência não se ajustaria mais a um
do que a outro, porque a existência deste não tem menor razão que a
existência daquele, e também não a tem menor o ser de muitos que o ser de
cada um, e a existência de infinitos que a de muitos. Por isso, como a extinção
e o não ser deste mundo, seriam um mal, assim não seria bom o não ser de
outros inumeráveis. FRA. Explicaste-te muito bem, e mostraste compreender
bem os raciocínios e não ser sofista, porque aceitas o que se não pode negar. ELP. Todavia, gostava de ouvir o que resta acerca
das razões de princípio e causa eterna eficiente: se com esta se harmoniza um
efeito de tal modo infinito, e se de facto existe tal efeito. FIL. Era isso que eu devia acrescentar. Porque,
depois de ter dito que o universo deve ser infinito, pela capacidade e faculdade
do espaço infinito, e pela possibilidade e conveniência da existência de
inumeráveis mundos como este, resta agora prová-lo pelas circunstâncias do
eficiente, que de tal modo o deve ter produzido, ou mais rigorosamente, o
produzem sempre assim, e pelas condições do nosso modo de interpretar. Podemos
mais facilmente argumentar que o espaço infinito é semelhante a este que
vemos, do que argumentar que seja como o não vemos, nem por exemplo, nem por
comparação, nem por proporção, nem tão-pouco por qualquer imaginação que
por fim não se destrua a si própria. Ora, para começar: porque queremos ou
podemos pensar que a potência divina seja ociosa? Porque pretendemos afirmar
que a bondade divina, que se pode comunicar às coisas infinitas e difundir infinitamente, prefira ser escassa e quase reduzida a
um nada, visto que toda a coisa finita é nada, em relação ao infinito? Porque
pretender que o centro da divindade, que infinitamente se pode amplificar numa
esfera infinita se assim se pode dizer), prefira ficar estéril, como ínvido, a
tornar-se comunicável, pai fecundo, gracioso e belo? Prefira comunicar-se de
forma diminuta, ou, para melhor dizer, não se comunicar, do que fazê-lo
segundo a razão do seu ser e da sua gloriosa potência? Porque frustrar a
capacidade infinita, defraudar a possibilidade dos mundos infinitos que possam
existir, prejudicar a excelência da divina imagem, que devia antes
resplandecer num espelho ilimitado, segundo o seu modo de ser infinito e imenso?
Porque afirmar uma coisa que, a ser admitida, tantos inconvenientes arrasta
consigo, e sem de modo algum favorecer leis, religião, crença ou moralidade,
destrói tantos princípios de filosofia? E como queres tu que Deus seja
limitado quanto à potência, quanto à operação e ao efeito (que nele são a
mesma coisa), e como termo do convexo duma esfera, e não - se assim se pode
dizer - como termo sem termo, de coisa ilimitada? Termo, digo, sem termos, por
ser a infinidade dum diferente da infinidade do outro, pois que Deus é todo o
infinito implícita e totalmente, enquanto o universo está todo em tudo (se de
qualquer modo se pode afirmar a totalidade onde não existe parte nem fim),
explicitamente, e não totalmente. Portanto, um configura-se como termo, outro
como terminado, não já pela diferença que existe entre finito e infinito, mas
pela razão que um é infinito e o outro pende para a finidade, devido a existir
completo e totalmente em tudo aquilo que, embora seja todo infinito, não é,
porém, totalmente infinito, pois que isso repugna à infinidade dimensional.
ELP. Eu desejava compreender isto melhor. Por isso,
peco-te o favor de esclarecer mais o que dizes existir todo, e totalmente em
tudo, e todo, em todo o infinito e totalmente infinito. FIL. Digo que o universo é «todo infinito»
porque não tem limite, termo ou superfície, mas não digo que é «totalmente
infinito», porque cada parte que dele possamos tomar é finita, sendo também
finito cada um dos mundos inumeráveis que contém. Digo que Deus é «todo
infinito», porque exclui de si qualquer termo, e cada um dos seus atributos é
uno e infinito; e digo Deus «totalmente infinito», porque está inteiramente
em todo o mundo, e em cada uma das suas partes, infinita e totalmente; ao contrário
da infinidade do universo, que existe totalmente no todo, e não nas partes (se
se podem chamar «partes», referindo-se ao infinito) que nele podemos
compreender.
ELP. Estou a entender. Continua. FIL. Logo, por todas as razões segundo as quais se
diz ser conveniente, bom e necessário este mundo, entendido como finito, se
deve também afirmar serem convenientes e bons todos os outros inumeráveis, a
que, pela mesma razão, a omnipotência concede a existência; e sem os quais
ela — por não querer ou por não poder —, viria a ser criticada por deixar
um vácuo, ou se não queres dizer vácuo, um espaço infinito; pelo que, não só
seria subtraída a infinita perfeição ao ente, mas também a infinita
majestade actual ao eficiente, nas coisas feitas se são feitas, ou dependentes
se são eternas. Que razão nos convence que um agente, podendo fazer um bom
infinito, o faça finito? E se o faz
finito, porque devemos acreditar que o pode fazer infinito, sendo nele a mesma
coisa, o poder e o fazer? Porque, se é imutável, não há contingência nem na
operação nem na eficácia, mas de determinada e certa eficácia depende
imutavelmente determinado e certo efeito; daí não poder ser outra coisa senão
aquilo que é, nem poder ser aquilo que não é; nem pode ser senão aquilo que
pode, não pode querer outra coisa senão aquilo que quer, e necessariamente não
pode fazer outra coisa senão aquilo que faz; pois é próprio
somente das coisas transitórias ter a potência distinta
do acto.
FRA, Decerto, não é sujeito de possibilidade ou
de potência o que nunca existiu, não existe nem nunca existirá; e, na
verdade, se o primeiro eficiente não pode querer outra coisa senão o que quer,
também não pode fazer coisa diferente da que faz. Não vejo, pois, como alguns
entendem o que afirmam acerca da potência activa infinita, a que não
corresponde potência passiva infinita, pretendendo que Deus, que no infinito e
imenso pode fazer inumeráveis, faça apenas um e finito, tendo a sua acção o
atributo de necessidade, pois procede de tal vontade que, por ser imutabilíssima,
antes, a própria imutabilidade, é ainda a própria necessidade; logo, são a
mesma coisa liberdade, vontade, necessidade, e ainda o fazer, querer, poder e
ser. FIL. Tu concordaste e disseste muito bem. Portanto,
é necessário afirmar de duas, uma: ou que o eficiente, podendo dele depender o
efeito infinito, é reconhecido como causa e princípio dum universo imenso, que
contém mundos inumeráveis, não surgindo daqui qualquer inconveniente, antes,
tudo a propósito e segundo a ciência, as leis e a fé; ou que, dependendo dele
um universo finito, com estes mundos (que são os astros) de número limitado,
lhe seja atribuída uma potência activa finita e limitada, como é finito e
limitado o acto; pois que, tal é o acto, tal é a vontade e a potência.
FRA. Completando, eu formulo um par de silogismos
: — O primeiro eficiente, se quisesse fazer coisa diferente da que quer fazer,
poderia fazer coisa diferente da que faz; mas não pode querer fazer senão
aquilo que quer fazer; logo, não pode fazer senão o que faz. Portanto, quem
disser o efeito finito põe a operação e a potência finita. Ainda (que vem a
ser o mesmo): o primeiro eficiente não pode fazer senão o que quer fazer; não
quer fazer senão o que faz; logo, não pode fazer senão o que faz. Por
conseguinte, quem nega o efeito infinito nega a potência infinita. FIL. Estes silogismos, se não são simples, são
demonstrativos. É, todavia, louvável, que alguns dignos teólogos não os
"admitam; porque, considerando justamente, sabem que os povos rudes e
ignorantes vêm, com esta necessidade, a não poder conceber como podem existir
a eleição, a dignidade e os méritos de justiça; por isso, confiados ou
desesperados, com respeito a certo destino, são necessariamente capazes de
grandes crimes. Como às vezes certos corruptores de leis, crenças e religião,
querendo parecer sábios, corromperam tantos povos, tornando-os mais bárbaros e
criminosos do que eram, desprezando o bem fazer, peritos em todos os vícios e
velhacarias, por causa das conclusões que tiram de tais premissas. Por isso, a
afirmação contrária não é para os sábios tão escandalosa e detractora da
grandeza e excelência divina, quanto a verdade é perniciosa à civil conversação
e contrária ao fim das leis; não por ser a verdade, mas por ser mal
compreendida, tanto por aqueles que malignamente a manejam, como por aqueles que
não são capazes de a compreender, sem prejuízo dos costumes.
FRA. É verdade. Jamais se encontrou filósofo, sábio
ou homem de bem que, sob qualquer pretexto, quisesse tirar de tal proposição a
necessidade dos actos humanos, destruindo o livre arbítrio.
Como, entre outros, Platão e Aristóteles, que, pelo facto de considerarem
em Deus a necessidade e imutabilidade, não deixaram de considerar a liberdade
moral e a nossa faculdade de deliberar, pois que sabem e podem compreender bem
como esta necessidade e esta liberdade são compatíveis. Contudo, alguns dos
verdadeiros padres e pastores de povos, suprimem talvez esta conclusão, ou
outra semelhante, para não favorecerem os criminosos e mistificadores, inimigos
da civilização e do progresso geral, a tirarem conclusões perigosas, abusando
da simplicidade e ignorância daqueles que compreendem a verdade com
dificuldade, e têm uma grande disposição para se inclinarem ao mal. E
facilmente nos perdoarão por usarmos proposições verdadeiras, de que não
pretendemos inferir senão a verdade da natureza, e a excelência do seu autor,
e que não apresentamos ao vulgo, mas só aos sábios que podem aproximar-se da
compreensão dos nossos discursos. Infere-se deste princípio que os teólogos,
tão sábios como religiosos, jamais prejudicaram a liberdade dos filósofos, e
os verdadeiros, esclarecidos e polidos filósofos, sempre favoreceram as religiões;
pois que, tanto uns como outros, sabem que a fé se requer para a educação dos
povos rudes, que devem ser governados, e demonstração se requer para os iluminados,
que se sabem governar a si próprios e aos outros. ELP. Já se disse bastante acerca deste argumento.
Volta de novo ao assunto. FIL. Para concluirmos aquilo que pretendemos, digo que, se no primeiro
eficiente existe potência infinita, existe
também operação, da qual depende o universo de grandeza infinita e um número
infinito de mundos.
FIL. Na verdade, o argumento tem mais persuasão e
aparência que qualquer outro possa ter, e a sua essência evidencia-se
suficientemente, dizendo que se pretende que a vontade divina é reguladora,
modificadora e limitadora da divina potência. Surgem daí inúmeros inconvenientes,
pelo menos segundo a filosofia; ponho de parte os princípios teologais que,
todavia, não admitirão que seja mais a divina potência que a divina vontade,
ou bondade, e, em geral, que um atributo se ajuste à divindade com mais razão
do que qualquer outro.
ELP. Então, porque falam dessa maneira, se não
interpretam assim? FIL. Por carência de termos e de resoluções
eficazes. ELP. Pois tu, que tens princípios pessoais pelos
quais afirmas um, isto é, que a potência divina é infinita intensiva e
extensivamente, e que o acto não é distinto da potência, e por isso o
universo é infinito e os mundos inumeráveis ; e não negas o outro, que de
facto cada um dos astros ou céus, como te aprouver chamar, é movido no tempo e
não no instante, demonstra com que termos e com que resoluções salvas a tua
convicção, ou excluis as outras que, em conclusão, julgam o contrário do que
tu julgas. FIL. Para a solução do que procuras resolver,
deves primeiro considerar que, se o universo é infinito e imóvel, não há
necessidade de procurar o seu motor. Segundo, que sendo infinitos os mundos nele
contidos, tais como as terras, os fogos e outras espécies de corpos chamados
astros, todos se movem pelo principio interno que é a própria alma, como
noutro lugar provámos; por isso é escusado andar a investigar o seu motor extrínseco.
Terceiro, que estes corpos mundanos se movem na região etérea e não estão
pendurados ou pregados a qualquer corpo, assim como esta terra, que sendo um
deles, não está fixa em parte alguma; a qual demonstrámos girar à volta do
próprio centro e em torno do sol, movida pelo instinto animal interno.
Enunciadas tais advertências, segundo os nossos princípios, não somos obrigados
a demonstrar o movimento activo, nem o passivo duma eficiência infinita,
intensiva, pois que são infinitos o móvel e o motor, e a alma movente e o
corpo movido concorrem num sujeito finito, isto é, em cada um dos ditos astros
mundanos. Tanto assim, que o primeiro princípio não é o que move; mas, quieto
e imóvel, proporciona o movimento a infinitos e inumeráveis mundos, grandes e
pequenos animais postos na amplíssima região do universo, tendo cada um deles,
segundo a condição da própria eficiência, a razão da mobilidade, mudança
e outros acidentes.
ELP. A tua posição ideológica é muito forte,
mas nem por isso derrubas o edifício das opiniões contrárias, que têm por
famoso e como pressuposto que o óptimo máximo move tudo. Tu dizes que proporciona
o poder mover-se a tudo o que se move, e, contudo, o movimento sucede segundo a
eficiência do motor próximo. Em verdade, o que tu dizes parece-me preferível
à opinião comum, por ser mais lógico; todavia — pelo que costumas afirmar
acerca da alma do mundo e da essência divina que está toda em tudo, enche
tudo, e é mais intrínseca às coisas do que a própria essência delas, pois
que é a essência das essências, vida das vidas, alma das almas —, parece-me
que tanto podemos dizer que ele move tudo, como dá a todas as coisas a
possibilidade de se moverem. Por isso permanece a dúvida já expressa. FIL. Neste assunto posso convencer-te facilmente.
Digo-te, pois, que nas coisas há a contemplar, se assim o queres, dois princípios
activos do movimento: um, finito, segundo a razão do sujeito finito; este move
no tempo. O outro, infinito, segundo a razão da alma do mundo, ou seja da
divindade, que é como alma da alma, que está toda em tudo, e faz que a alma
exista toda em tudo;
e este move no instante. Portanto, a terra tem dois
movimentos. Assim, todos os corpos que se movem têm dois princípios de
movimento, sendo o princípio infinito o que simultaneamente move e moveu; por
essa razão, o corpo móvel não é menos estabilíssimo que mobilíssimo. Como
se verifica na presente figura (Fig. l), que representa a terra, que é movida
no instante, porquanto tem motor de eficiência infinita.
Ela, movendo-se com o centro de A
para E, e voltando de E
para A, realizando-se isto num
instante, está simultaneamente em A e
E, e em todos os lugares intermédios; por isso partiu e chegou
simultaneamente; acontecendo sempre assim, advém que está sempre estabilíssima.
Identicamente, quanto ao seu movimento à volta do centro, em que I
é o seu oriente, V o meio-dia,
o ocidente K, e meia-noite O.
Cada um destes pontos circula em virtude de impulso infinito; e cada um deles
partiu e voltou simultaneamente; por conseguinte, está sempre fixo, está onde
estava. De forma que, em conclusão, serem estes corpos movidos por eficiência infinita é o
mesmo que não serem movidos; porque num instante, mover e não mover, é uma e
a mesma coisa. Permanece, portanto, o outro principio activo do movimento, que
deriva da eficiência intrínseca, e por conseguinte existe no tempo, numa certa
sucessão; e este movimento é distinto da quietude. Eis, pois, como podemos
dizer que Deus move o todo, eis como devemos entender que dá a possibilidade de
se mover a tudo o que se move.
ELP. Agora, que tão alta e eficazmente me tiraste
desta dificuldade, eu cedo completamente ao teu juízo, e espero de futuro
receber sempre de ti semelhantes soluções; porque, se bem que até agora em
poucas coisas te tivesse interrogado e experimentado, aprendi e concebi,
todavia, bastantes coisas, e espero ainda mais proveito, porque, apesar de não
ver plenamente o teu ânimo, vejo pelo raio que difunde, que dentro encerra um
sol, ou uma fonte de luz ainda maior. E de hoje em diante, não com a esperança
de superar a tua capacidade, mas com a mira de oferecer ocasião às tuas
elucidações, voltarei a apresentar-te dúvidas, se te dignares fazer-te
encontrar neste lugar, à mesma hora, tantos dias quantos bastarem para ouvir e
compreender o suficiente para acalmar o espirito. FIL. Assim farei. FRA. Serás bem-vindo, e seremos todos ouvintes
muito atentos.
FIM DO DIÁLOGO PRIMEIRO |
Se gostou do 1º Diálogo, fica aqui o convite à leitura da obra completa. Por certo não se arrependerá!
Referência Bibliográfica: