DIÁLOGO PRIMEIRO

   

 

 

INTERLOCUTORES:

Elpino, Filóteo, Fracastório, Búrquio  

 

ELP. Como é possível que o universo seja infinito?

FIL. Como é possível que o universo seja finito?

ELP. Julgam que se pode demonstrar essa infini­dade?

FIL. Julgam que se pode demonstrar essa finidade ?

ELP. De que extensão falas?

FIL.  E tu de que limites falas?  

FRA. Ad rem, ad rem, si iuvat; demasiado tempo nos mantiveste na dúvida.

BÚR. Apresenta já alguma argumentação, Filóteo, pois vou-me divertir imenso ao escutar essa fábula ou fantasia.  

FRA. Modestius, Búrquio: que dirás, se por fim a verdade te convencer?  

BÚR. Ainda que isso seja verdade, não quero crê-lo; porque não é possível que esse infinito possa ser compreendido pela minha cabeça, nem digerido pelo meu estômago; embora, na verdade, eu desejasse que fosse como diz Filóteo, pois que, se por má sorte me acontecesse cair fora deste mundo, encontraria sempre outras terras.

ELP. Decerto, Filóteo, se nós quisermos fazer dos sentidos juiz, ou dar-lhes a primazia que lhes cabe, pelo facto de todo o conhecimento provir deles, con­cluiremos, talvez, que não é fácil encontrar o meio para chegar ao que tu dizes, de preferência ao contrário. Agora, se quiseres, começa por fazer-me compreender alguma coisa.

FIL. Não existe sentido que veja o infinito, nem sentido a que se possa pedir esta conclusão, porque o infinito não pode ser objecto dos sentidos; por isso, quem procurar conhecê-lo por essa via, é como quem quisesse ver com os olhos a substância e a essência; e quem a negasse por não ser sensível, ou visível, viria a negar a própria substância e o ser. Por conseguinte, deve haver cautela em recorrer ao testemunho dos sentidos, que só admitimos em relação a coisas sensíveis, e ainda com certa dúvida, se não concorrerem, juntamente com a razão, para o juízo. Ao intelecto compete julgar e dar razão das coisas afastadas no tempo e no espaço. Quanto a isto, é bastante elucidativo e testemunho sufi­ciente, o facto de os sentidos não terem força para nos contradizer, e ainda mais, evidenciando e confessando e sua debilidade e insuficiência na aparência de finitude causada pelos limites do seu horizonte; e até nisto se vê a sua inconstância. Ora, como temos por experiência que eles nos enganam, com respeito à superfície deste globo em que nos encontramos, muito mais deveríamos suspeitar deles, no que respeita ao termo que nos fazem compreender na concavidade estrelada.  

ELP. Diz-me então: para que nos servem os sentidos?

  FIL. Somente para excitar a razão; para, em parte, tomar conhecimento, indicar e testemunhar, não para testemunhar tudo; não servem para julgar, nem conde­nar. Porque, nunca, por mais perfeitos que sejam, são isentos de alguma perturbação. Por conseguinte, a ver­dade em mínima parte brota desse débil principio, que são os sentidos, mas não reside neles.  

ELP. Onde está, então?

FIL. No objecto sensível, como num espelho; na razão, sob o aspecto de argumentação e discurso; no intelecto, sob o aspecto de princípio ou conclusão; na mente, como forma própria e viva.  

ELP. Vamos, procede com os teus argumentos.

FIL. Assim farei. Se o mundo é finito, e fora do mundo está o nada, pergunto-te: onde está o mundo? Onde está o universo? Responde Aristóteles: está em si próprio. O convexo do primeiro céu é lugar universal; e ele, como primeiro continente, não está noutro conti­nente, porque o lugar não é senão superfície e extremi­dade de um corpo continente; daí, o que não tem corpo continente, não tem lugar. Ora, que queres tu dizer com isto, Aristóteles, que «o lugar está em si próprio?» Que queres tu concluir com essa «coisa existente fora do mundo?» Se dizes que está aí o nada: o céu, o mundo, não estarão certamente em parte alguma...

FRA. Nullibi ergo erit mundus. Omne erit in nihilo.

FIL. O mundo será algo que não se encontra em parte alguma. Se dizes (pois tenho a certeza que queres afirmar a existência de qualquer coisa, para fugir ao vácuo e ao nada) que fora do mundo há um ente inte­lectual e divino, Deus, que vem a ser lugar de todas as coisas, tu mesmo ver-te-ás muito atrapalhado para fazeres compreender como uma coisa incorpórea, inteligível e sem dimensões, possa ser lugar de coisas extensas. Se dizes que as compreende como uma forma, pelo mesmo modo que a alma compreende o corpo, não respondes à questão do estar fora, nem à pergunta do que se encontra para além e fora do universo. E se te queres justificar com dizer que onde está o nada, e onde não está coisa alguma, tão-pouco não existe lugar nem para além, nem fora, não me satisfarás com isso; porque são palavras e desculpas que não se podem realmente pensar. Pois é absolutamente impossível que, com qualquer juízo ou fantasia (mesmo que outros juízos e outras fantasias surgissem), me possas levar a afirmar, com real intenção, que se encontra tal superfície, tal limite, tal extremidade, para além da qual nem existe corpo nem vácuo; mesmo que ali estivesse Deus, pois não é tarefa da divindade encher o vazio, nem por consequência pode de modo algum, sendo incorpórea, delimitar o corpóreo, porque tudo o que se diz terminar, ou é forma exterior, ou é corpo continente, e de qualquer modo que o quisesses afirmar, serias julgado menosprezador da dignidade da natureza divina e universal.  

BÚR. Na verdade, creio que seria necessário dizer-lhe que se uma pessoa estendesse a mão para além daquele convexo, ela não estaria num lugar, nem em parte alguma, e por consequência não existiria.

FIL. Acrescento, também, que não há engenho que não perceba ser uma implícita contradição esta afirmação peripatética. Aristóteles definiu o lugar não como corpo continente, não como certo espaço, mas como uma superfície do corpo continente; acontecendo que o primeiro, principal e máximo lugar, e aquele ao qual menos convém—ou por nada convém—tal defi­nição. Trata-se da superfície convexa do primeiro móvel que é superfície de um corpo, e de tal corpo, que somente contém e não é contido. Ora, para que essa superfície seja lugar, não se exige que seja de corpo contido, mas sim de corpo continente. Se é superfície de corpo continente e não está junto, e continuada no corpo contido, é um lugar sem lugar, atendendo que o primeiro céu não pode ser lugar, senão pela sua superfície côncava que toca a convexa do segundo. Eis como aquela definição é vã, confusa e destruidora de si própria. A tal confusão se chega pelo inconveniente de se pre­tender que fora do céu esteja o nada.  

ELP. Dirão os peripatéticos que o primeiro céu é corpo continente pela superfície côncava, e não pela convexa, e por ela é lugar.

FRA. E eu acrescento que se encontra, pois, super­fície de corpo continente, que não é lugar.

FIL. Em suma, indo directamente ao assunto, parece-me ridículo dizer-se que fora do céu está o nada, que o céu está em si próprio, localizado por acidente, e é lugar por acidente, idest com respeito às suas partes, E seja como for que se interprete o seu «por acidente», não se pode fugir a que se faça de um, dois; porque sempre é uma coisa o continente, e outra o conteúdo, e tanto assim é, que para ele próprio o continente é incorpóreo, e o conteúdo é corpo o continente é imóvel, o conteúdo móvel; o continente matemático, o conteúdo físico. Ora, seja essa superfície o que se quiser, nunca me cansarei de perguntar: o que é que está para além dela? Se se responde que está o nada, então direi ser o vácuo, o inane, e um tal vácuo, um tal inane que não tem limite nem qualquer termo ulterior, tendo porém limite e fim no lado de cá. É mais difícil imaginar isto que pensar ser o universo infinito e imenso, porque não podemos fugir ao vácuo se quisermos admitir o universo finito. Vejamos agora, se é possível que exista o tal espaço em que nada está. Neste espaço infinito encontra-se este universo (por acaso, ou por necessidade, ou providência, por enquanto não nos interessa). Per­gunto se este espaço, que contém o mundo, tem maior faculdade de conter um mundo do que outro espaço qualquer, existente mais além.  

  FRA. Decerto, parece-me que não, porque onde está o nada, não há diferenças; onde não há diferenças, não há faculdades diferentes; e talvez não exista faculdade alguma onde não existe nenhuma coisa.  

ELP. Nem tão-pouco falta de faculdade. E, das duas, de preferência aquela do que esta.

FIL. Dizes bem. Eu digo que, como o vácuo e inane (que necessariamente resulta desta afirmação peripatética) não tem faculdade alguma para receber, muito menos a deve ter para repelir o mundo. Mas, destas duas faculdades, uma vemo-la em acto, a outra não a podemos ver, de facto, senão com os olhos da razão. Como neste espaço, igual à grandeza do mundo (que os platónicos chamam matéria), está este mundo, assim um outro pode estar naquele espaço e em inumeráveis espaços para além deste, iguais a este.  

FRA. Com certeza, podemos julgar com mais segu­rança conforme o que vemos e conhecemos, do que contrariamente àquilo que vemos e conhecemos. E pois que, a nosso ver e segundo a nossa experiência, o universo não se acaba nem termina no vácuo e inane, e posto que não há disso conhecimento, logicamente deveríamos concluir que assim é, porque, quando todas as razões estivessem de acordo, nós veríamos que a experiência é contrária ao vácuo, e não ao pleno. Falando assim, ficaremos sempre desculpados; mas falando doutro modo, não fugiremos com facilidade a mil acusações e inconvenientes. Continua, Filóteo.

FIL. Portanto, do lado do espaço infinito, sabemos com certeza que há a faculdade de receber o corpo, e nada mais. De qualquer modo, bastar-me-á considerar que não lhe repugna recebê-lo, ao menos por esta razão: onde está o nada, nada existe mais além que impeça e constitua limite. Resta agora ver se é de admitir que todo o espaço seja pleno ou não. E aqui, se conside­rarmos tanto o que este pode ser, como o que pode fazer, sempre havemos de ver que não é lógico, mas necessário, que seja pleno. E, para evidenciá-lo, per­gunto-te se é bom que este mundo exista.  

ELP. Muito bom.

FIL. Logo é bom que este espaço, igual à dimensão do mundo (a que quero chamar vácuo, semelhante e indistinto do espaço que tu dirias ser o nada, para além da convexidade do primeiro céu) seja do mesmo modo pleno.  

ELP. Pois é.

FIL. Além disso, pergunto: acreditas que, assim como neste espaço se encontra esta máquina chamada mundo, a mesma teria podido ou poderia estar noutro espaço deste inane?  

ELP. Direi que sim, se bem que não veja como no nada, no vácuo, se possam estabelecer diferenças.

  FRA. Eu estou certo que vês, mas não o ousas afir­mar, porque já te apercebeste onde nós te queremos levar.

  ELP. Afirma-lo seguramente; pois que é neces­sário dizer e compreender que este mundo está num espaço, que seria indistinto daquele que está para além do vosso primeiro móvel, se o mundo não existisse.

FRA. Continua.

FIL. Portanto, assim como este espaço pode, tem podido, e é necessariamente perfeito pela continência deste corpo universal, como dizes, assim todo o outro espaço pode, e tem podido ser perfeito.  

ELP. Concordo; e com isto? Pode existir e pode estar. Existe, portanto? Está?

FIL. Levar-te-ei, se estiveres disposto a confessá-lo francamente, a dizer que pode existir, que deve existir, e que existe. Porque, como seria mal que este espaço não fosse pleno, isto é, que este mundo não existisse, não o seria menos, se todo o espaço não fosse pleno, em virtude da sua igualdade; e por consequência, o universo será de dimensão infinita, e os mundos inumeráveis.  

 ELP. Qual a razão porque devem ser tantos, e não basta um?

  FIL. Porque, se é mau que este mundo não exista, ou que este pleno não se encontre, sê-lo-á com respeito a este espaço, ou a outro igual a este?  

ELP. Digo que é mal com respeito ao que está neste espaço, pois de igual modo poderia estar noutro igual a este.

FIL. Se bem considerarmos, vem a ser o mesmo: porque a bondade do ser corpóreo que existe neste espaço, como poderia existir noutro equivalente, é proporcional à bondade própria e à perfeição que podem existir em tanto e tal espaço, quanto é este, ou outro igual a este, e não àquelas que podem existir em outros e inúmeros espaços semelhantes a este. Tanto mais que, se há razão para que exista um bem finito, um perfeito terminado, há também razão para que exista um bem infinito, porquanto, onde o bem finito existe por conveniência e razão, o infinito existe por absoluta necessidade.  

ELP. O bem infinito certamente existe, mas é incorpóreo.

FIL. Nisto estamos de acordo, quanto ao infinito incorpóreo. Mas o que obsta a que o bem não seja de admitir como ente corpóreo infinito? Ou que nos impede de pensar que o infinito, implícito no simplicís­simo e único primeiro princípio, se explana neste seu simulacro infinito e ilimitado, capaz de conter inume­ráveis mundos, em vez de se exprimir em tão estreitos limites que pareça vitupério o não pensar que este corpo, que se nos apresenta como grandioso e vasto, em relação à divina presença não seja senão um ponto, um nada?  

  ELP. Como a grandeza de Deus de modo algum consiste na dimensão corpórea (escuso dizer que o mundo nada lhe acrescenta), não devemos pensar que a grandeza do seu simulacro consiste na maior ou menor grandeza de dimensões.

  FIL. Falaste muito bem, mas não respondeste ao ponto essencial do meu argumento, porque eu não exijo o espaço infinito, pois a natureza não tem espaço infinito pelo valor da dimensão e da massa corpórea, mas pelo valor das naturezas e espécies corpóreas; porque a excelência infinita se apresenta incompa­ravelmente melhor em inumeráveis indivíduos do que em finitos numeráveis. Por isso, é necessário que seja infinito o simulacro dum vulto divino inacessível, no qual, como membros infinitos, se encontrem mundos inumeráveis como são os outros. Assim, como inume­ráveis graus de perfeição devem explicar a excelência divina incorpórea, por modo corpóreo, devem existir inumeráveis indivíduos, que são estes grandes animais (um dos quais é esta terra, mãe generosa que nos deu à luz, nos alimenta e qualquer dia retomará) e, para os conter, é necessário um espaço infinito. É igualmente bom que existam, e bem podem existir, inumeráveis mundos semelhantes a este, da mesma maneira que este tem podido existir, pode existir, e é bom que exista.  

ELP. Diremos que este mundo finito, com estes astros finitos, compreende a perfeição de todas as coisas.

FIL. Podes dizê-lo, mas não prová-lo: porque o mundo, que está neste espaço finito, compreende a perfeição de todas as coisas finitas que estão no mesmo espaço, mas não das infinitas que existir possam noutros espaços inumeráveis.  

FRA. Por favor, paremos aqui, e não façamos como os sofistas que disputam para vencer, e, enquanto pro­curam alcançar o triunfo, vedam a si próprios, e aos outros, a compreensão da verdade. Ora, creio que não existe alguém tão teimoso e pérfido, que, acerca da questão do espaço que pode infinitamente compreender, e acerca da questão da bondade individual e numeral dos mundos infinitos que possam ser compreendidos, exactamente como este único que conhecemos, queira deslealmente negar que cada um deles tenha justa razão para existir, pois que o espaço infinito tem infinita potência, e nela se louva o acto infinito da existência; pelo que não se julga deficiente o eficiente infinito, cuja potência não é vã. Portanto, Elpino, contenta-te com escutares outras razões, se ocorrerem a Filóteo.

ELP. A falar verdade, vejo bem que dizer o mundo ilimitado, como tu dizes o universo, não traz incon­veniente algum, e até vem libertar-nos de inúmeras angústias em que estamos envolvidos, ao afirmarmos o contrário. Bem sei que muitas vezes, com os peripatéticos, nos acontece ter que dizer coisas que não têm fundamento algum sob o nosso ponto de vista; como, depois de termos negado o vácuo, tanto fora como dentro do universo, pretendêssemos, todavia, responder à questão, onde está o universo, e afirmar que está nas suas partes, por recear afirmar que não está em lugar algum; como dizer: nullibi, nusquam. Mas é evidente que de tal modo é forçoso dizer que as partes se encontram num lugar qualquer, e o universo não existe em lugar e espaço algum; o que, como se vê, não tem funda­mento racional, mas significa expressamente uma fuga pertinaz para não confessar a verdade, admitindo o mundo e o universo infinitos, ou o espaço infinito; posições estas, que conduzem a dupla confusão quem as sustentar. Daí, eu afirmar que, se o todo é um corpo, e corpo esférico, por consequência figurado e limitado, é necessário que seja limitado no espaço infinito; e temos de conceder que é verdadeiramente o vácuo, se quisermos dizer que aí está o nada; e se de facto existe o vácuo, deve poder conter mundos, nada menos do que esta parte onde vemos ficar este mundo; se não existe, deve ser o pleno, e consequentemente o universo é infinito. E não é conclusão menos estulta a de afirmar estar o mundo alicubi, dizendo que fora dele está o nada, e que aí está nas suas partes, do que se alguém dissesse que Elpino está alicubi, porque a sua mão está no seu braço, os olhos no rosto, o pé na perna, a cabeça no busto. Mas para chegar à conclusão e não me portar como um sofista, firmando o pé na dificuldade aparente, e gastando o tempo em palavreado, afirmo o que não posso negar: isto é, que no espaço infinito poderiam existir infinitos mundos semelhantes a este, ou que este universo podia estender a sua capacidade de compreensão a muitos corpos como estes, denominados astros; e ainda, que (semelhantes ou dissemelhantes que estes mundos sejam) a existência não se ajustaria mais a um do que a outro, porque a existência deste não tem menor razão que a existência daquele, e também não a tem menor o ser de muitos que o ser de cada um, e a existência de infi­nitos que a de muitos. Por isso, como a extinção e o não ser deste mundo, seriam um mal, assim não seria bom o não ser de outros inumeráveis.

FRA. Explicaste-te muito bem, e mostraste com­preender bem os raciocínios e não ser sofista, porque aceitas o que se não pode negar.

ELP. Todavia, gostava de ouvir o que resta acerca das razões de princípio e causa eterna eficiente: se com esta se harmoniza um efeito de tal modo infinito, e se de facto existe tal efeito.

FIL. Era isso que eu devia acrescentar. Porque, depois de ter dito que o universo deve ser infinito, pela capacidade e faculdade do espaço infinito, e pela possibilidade e conveniência da existência de inume­ráveis mundos como este, resta agora prová-lo pelas circunstâncias do eficiente, que de tal modo o deve ter produzido, ou mais rigorosamente, o produzem sempre assim, e pelas condições do nosso modo de interpretar. Podemos mais facilmente argumentar que o espaço infinito é semelhante a este que vemos, do que argumentar que seja como o não vemos, nem por exemplo, nem por comparação, nem por proporção, nem tão-pouco por qualquer imaginação que por fim não se destrua a si própria. Ora, para começar: porque queremos ou podemos pensar que a potência divina seja ociosa? Porque pretendemos afirmar que a bondade divina, que se pode comunicar às coisas infinitas e difundir infinitamente, prefira ser escassa e quase reduzida a um nada, visto que toda a coisa finita é nada, em relação ao infinito? Porque pretender que o centro da divindade, que infinitamente se pode amplificar numa esfera infinita se assim se pode dizer), prefira ficar estéril, como ínvido, a tornar-se comunicável, pai fecundo, gracioso e belo? Prefira comunicar-se de forma diminuta, ou, para melhor dizer, não se comunicar, do que fazê-lo segundo a razão do seu ser e da sua gloriosa potência? Porque frustrar a capacidade infinita, defraudar a possibilidade dos mundos infinitos que possam existir, prejudicar a exce­lência da divina imagem, que devia antes resplandecer num espelho ilimitado, segundo o seu modo de ser infinito e imenso? Porque afirmar uma coisa que, a ser admitida, tantos inconvenientes arrasta consigo, e sem de modo algum favorecer leis, religião, crença ou mora­lidade, destrói tantos princípios de filosofia? E como queres tu que Deus seja limitado quanto à potência, quanto à operação e ao efeito (que nele são a mesma coisa), e como termo do convexo duma esfera, e não - se assim se pode dizer - como termo sem termo, de coisa ilimitada? Termo, digo, sem termos, por ser a infinidade dum diferente da infinidade do outro, pois que Deus é todo o infinito implícita e totalmente, enquanto o universo está todo em tudo (se de qualquer modo se pode afirmar a totalidade onde não existe parte nem fim), explicitamente, e não totalmente. Portanto, um configura-se como termo, outro como terminado, não já pela diferença que existe entre finito e infinito, mas pela razão que um é infinito e o outro pende para a finidade, devido a existir completo e totalmente em tudo aquilo que, embora seja todo infinito, não é, porém, totalmente infinito, pois que isso repugna à infinidade dimensional.  

ELP. Eu desejava compreender isto melhor. Por isso, peco-te o favor de esclarecer mais o que dizes existir todo, e totalmente em tudo, e todo, em todo o infinito e totalmente infinito.

FIL. Digo que o universo é «todo infinito» porque não tem limite, termo ou superfície, mas não digo que é «totalmente infinito», porque cada parte que dele possamos tomar é finita, sendo também finito cada um dos mundos inumeráveis que contém. Digo que Deus é «todo infinito», porque exclui de si qualquer termo, e cada um dos seus atributos é uno e infinito; e digo Deus «totalmente infinito», porque está inteiramente em todo o mundo, e em cada uma das suas partes, infinita e totalmente; ao contrário da infinidade do universo, que existe totalmente no todo, e não nas partes (se se podem chamar «partes», referindo-se ao infinito) que nele podemos compreender.  

ELP. Estou a entender. Continua.

FIL. Logo, por todas as razões segundo as quais se diz ser conveniente, bom e necessário este mundo, entendido como finito, se deve também afirmar serem convenientes e bons todos os outros inumeráveis, a que, pela mesma razão, a omnipotência concede a existência; e sem os quais ela — por não querer ou por não poder —, viria a ser criticada por deixar um vácuo, ou se não queres dizer vácuo, um espaço infinito; pelo que, não só seria subtraída a infinita perfeição ao ente, mas também a infinita majestade actual ao eficiente, nas coisas feitas se são feitas, ou dependentes se são eternas. Que razão nos convence que um agente, podendo fazer um bom infinito, o faça finito? E se o faz finito, porque devemos acreditar que o pode fazer infinito, sendo nele a mesma coisa, o poder e o fazer? Porque, se é imutável, não há contingência nem na operação nem na eficácia, mas de determinada e certa eficácia depende imutavelmente determinado e certo efeito; daí não poder ser outra coisa senão aquilo que é, nem poder ser aquilo que não é; nem pode ser senão aquilo que pode, não pode querer outra coisa senão aquilo que quer, e necessariamente não pode fazer outra coisa senão aquilo que faz; pois é próprio somente das coisas transitórias ter a potência distinta do acto.  

FRA, Decerto, não é sujeito de possibilidade ou de potência o que nunca existiu, não existe nem nunca existirá; e, na verdade, se o primeiro eficiente não pode querer outra coisa senão o que quer, também não pode fazer coisa diferente da que faz. Não vejo, pois, como alguns entendem o que afirmam acerca da potência activa infinita, a que não corresponde potência passiva infinita, pretendendo que Deus, que no infinito e imenso pode fazer inumeráveis, faça apenas um e finito, tendo a sua acção o atributo de necessidade, pois procede de tal vontade que, por ser imutabilíssima, antes, a própria imutabilidade, é ainda a própria necessidade; logo, são a mesma coisa liberdade, vontade, necessidade, e ainda o fazer, querer, poder e ser.

FIL. Tu concordaste e disseste muito bem. Por­tanto, é necessário afirmar de duas, uma: ou que o eficiente, podendo dele depender o efeito infinito, é reconhecido como causa e princípio dum universo imenso, que contém mundos inumeráveis, não surgindo daqui qualquer inconveniente, antes, tudo a propósito e segundo a ciência, as leis e a fé; ou que, dependendo dele um universo finito, com estes mundos (que são os astros) de número limitado, lhe seja atribuída uma potência activa finita e limitada, como é finito e limitado o acto; pois que, tal é o acto, tal é a vontade e a potência.  

FRA. Completando, eu formulo um par de silo­gismos : — O primeiro eficiente, se quisesse fazer coisa diferente da que quer fazer, poderia fazer coisa diferente da que faz; mas não pode querer fazer senão aquilo que quer fazer; logo, não pode fazer senão o que faz. Portanto, quem disser o efeito finito põe a operação e a potência finita. Ainda (que vem a ser o mesmo): o primeiro eficiente não pode fazer senão o que quer fazer; não quer fazer senão o que faz; logo, não pode fazer senão o que faz. Por conseguinte, quem nega o efeito infinito nega a potência infinita.

FIL. Estes silogismos, se não são simples, são demonstrativos. É, todavia, louvável, que alguns dignos teólogos não os "admitam; porque, considerando justa­mente, sabem que os povos rudes e ignorantes vêm, com esta necessidade, a não poder conceber como podem existir a eleição, a dignidade e os méritos de justiça; por isso, confiados ou desesperados, com respeito a certo destino, são necessariamente capazes de grandes crimes. Como às vezes certos corruptores de leis, crenças e religião, querendo parecer sábios, corromperam tantos povos, tornando-os mais bárbaros e criminosos do que eram, desprezando o bem fazer, peritos em todos os vícios e velhacarias, por causa das conclusões que tiram de tais premissas. Por isso, a afirmação contrária não é para os sábios tão escandalosa e detractora da grandeza e excelência divina, quanto a verdade é perniciosa à civil conversação e contrária ao fim das leis; não por ser a ver­dade, mas por ser mal compreendida, tanto por aqueles que malignamente a manejam, como por aqueles que não são capazes de a compreender, sem prejuízo dos costumes.  

FRA. É verdade. Jamais se encontrou filósofo, sábio ou homem de bem que, sob qualquer pretexto, quisesse tirar de tal proposição a necessidade dos actos humanos, destruindo o livre arbítrio.   Como, entre outros, Platão e Aristóteles, que, pelo facto de consi­derarem em Deus a necessidade e imutabilidade, não deixaram de considerar a liberdade moral e a nossa faculdade de deliberar, pois que sabem e podem com­preender bem como esta necessidade e esta liberdade são compatíveis. Contudo, alguns dos verdadeiros padres e pastores de povos, suprimem talvez esta conclusão, ou outra semelhante, para não favorecerem os criminosos e mistificadores, inimigos da civilização e do progresso geral, a tirarem conclusões perigosas, abusando da simpli­cidade e ignorância daqueles que compreendem a verdade com dificuldade, e têm uma grande disposição para se inclinarem ao mal. E facilmente nos perdoarão por usarmos proposições verdadeiras, de que não pretendemos inferir senão a verdade da natureza, e a excelência do seu autor, e que não apresentamos ao vulgo, mas só aos sábios que podem aproximar-se da compreensão dos nossos discursos. Infere-se deste princípio que os teólogos, tão sábios como religiosos, jamais prejudicaram a liberdade dos filósofos, e os verdadeiros, esclarecidos e polidos filósofos, sempre favoreceram as religiões; pois que, tanto uns como outros, sabem que a fé se requer para a educação dos povos rudes, que devem ser governados, e demonstração se requer para os ilumi­nados, que se sabem governar a si próprios e aos outros.

ELP. Já se disse bastante acerca deste argumento. Volta de novo ao assunto.

FIL. Para concluirmos aquilo que pretendemos, digo que, se no primeiro eficiente existe potência infinita, existe também operação, da qual depende o universo de grandeza infinita e um número infinito de mundos.  

 ELP. O que disseste é bastante persuasivo, se é que não contém mesmo a verdade. Todavia, eu afir­marei ser verdadeiro o que agora me parece apenas muito verosímil, se me puderes esclarecer a respeito de um importantíssimo argumento, segundo o qual Aristóteles ficou reduzido a negar a potência divina intensiva, se bem que a concedesse extensivamente. A razão da sua negação era que, sendo em Deus potência e acto a mesma coisa, e podendo assim mover infinita­mente, moveria infinitamente com vigor infinito; se isto fosse verdade, seria o céu movido num instante, pois que, se o motor mais forte move mais velozmente, o fortíssimo move velocíssimamente, e o infinitamente forte, instantaneamente. A razão da afirmação era que Deus move regular e eternamente o primeiro móvel, segundo a razão e a medida com que o move. Vês, portanto, por que motivo lhe atribui infinidade extensiva e intensiva, mas não infinidade absoluta. Dai, pretendo concluir que, assim como a sua potência infinitamente motriz é contraída no acto do movimento, segundo velocidade finita, assim a mesma potência que faz o imenso e os inumeráveis, é limitada pela sua vontade ao finito e aos numeráveis. Quase o mesmo pretendem alguns teólogos, que, além de concederem a infinidade extensiva, que perpetua sucessivamente o movimento do universo, requerem também a infinidade intensiva, com que pode fazer mundos inumeráveis, mover mundos inumeráveis, movendo simultaneamente num instante cada um deles, e todos eles; todavia, assim moderou com a sua vontade a quantidade da multidão de mundos inumeráveis, como a qualidade do movimento intensíssimo. Daí, como este movimento, não obstante pro­ceder de potência infinita, é conhecido corno finito, assim facilmente se pode crer determinado o número de corpos mundanos.

FIL. Na verdade, o argumento tem mais persuasão e aparência que qualquer outro possa ter, e a sua essência evidencia-se suficientemente, dizendo que se pretende que a vontade divina é reguladora, modificadora e limi­tadora da divina potência. Surgem daí inúmeros incon­venientes, pelo menos segundo a filosofia; ponho de parte os princípios teologais que, todavia, não admitirão que seja mais a divina potência que a divina vontade, ou bondade, e, em geral, que um atributo se ajuste à divindade com mais razão do que qualquer outro.  

ELP. Então, porque falam dessa maneira, se não interpretam assim?

FIL. Por carência de termos e de resoluções eficazes.

ELP. Pois tu, que tens princípios pessoais pelos quais afirmas um, isto é, que a potência divina é infinita intensiva e extensivamente, e que o acto não é distinto da potência, e por isso o universo é infinito e os mundos inu­meráveis ; e não negas o outro, que de facto cada um dos astros ou céus, como te aprouver chamar, é movido no tempo e não no instante, demonstra com que termos e com que resoluções salvas a tua convicção, ou excluis as outras que, em conclusão, julgam o contrário do que tu julgas.

FIL. Para a solução do que procuras resolver, deves primeiro considerar que, se o universo é infinito e imóvel, não há necessidade de procurar o seu motor. Segundo, que sendo infinitos os mundos nele contidos, tais como as terras, os fogos e outras espécies de corpos chamados astros, todos se movem pelo principio interno que é a própria alma, como noutro lugar provámos; por isso é escusado andar a investigar o seu motor extrín­seco. Terceiro, que estes corpos mundanos se movem na região etérea e não estão pendurados ou pregados a qualquer corpo, assim como esta terra, que sendo um deles, não está fixa em parte alguma; a qual demons­trámos girar à volta do próprio centro e em torno do sol, movida pelo instinto animal interno. Enunciadas tais adver­tências, segundo os nossos princípios, não somos obri­gados a demonstrar o movimento activo, nem o passivo duma eficiência infinita, intensiva, pois que são infinitos o móvel e o motor, e a alma movente e o corpo movido concorrem num sujeito finito, isto é, em cada um dos ditos astros mundanos. Tanto assim, que o primeiro princípio não é o que move; mas, quieto e imóvel, proporciona o movimento a infinitos e inumeráveis mundos, grandes e pequenos animais postos na amplíssima região do universo, tendo cada um deles, segundo a condição da própria efi­ciência, a razão da mobilidade, mudança e outros acidentes.  

ELP. A tua posição ideológica é muito forte, mas nem por isso derrubas o edifício das opiniões con­trárias, que têm por famoso e como pressuposto que o óptimo máximo move tudo. Tu dizes que propor­ciona o poder mover-se a tudo o que se move, e, contudo, o movimento sucede segundo a eficiência do motor próximo. Em verdade, o que tu dizes parece-me prefe­rível à opinião comum, por ser mais lógico; todavia — pelo que costumas afirmar acerca da alma do mundo e da essência divina que está toda em tudo, enche tudo, e é mais intrínseca às coisas do que a própria essência delas, pois que é a essência das essências, vida das vidas, alma das almas —, parece-me que tanto podemos dizer que ele move tudo, como dá a todas as coisas a possibilidade de se moverem. Por isso permanece a dúvida já expressa.

FIL. Neste assunto posso convencer-te facilmente. Digo-te, pois, que nas coisas há a contemplar, se assim o queres, dois princípios activos do movimento: um, finito, segundo a razão do sujeito finito; este move no tempo. O outro, infinito, segundo a razão da alma do mundo, ou seja da divindade, que é como alma da alma, que está toda em tudo, e faz que a alma exista toda em tudo; e este move no instante. Portanto, a terra tem dois movimentos. Assim, todos os corpos que se movem têm dois princípios de movimento, sendo o princípio infinito o que simultaneamente move e moveu; por essa razão, o corpo móvel não é menos estabilíssimo que mobilíssimo. Como se verifica na presente figura (Fig. l), que representa a terra, que é movida no instante, porquanto tem motor de eficiên­cia infinita.  Ela, movendo-se com o centro de A para E, e voltando de E para A, realizando-se isto num instante, está simultaneamente em A e E, e em todos os lugares intermé­dios; por isso partiu e chegou simultaneamente; acontecendo sempre assim, advém que está sempre estabilíssima. Identica­mente, quanto ao seu movimento à volta do centro, em que I é o seu oriente, V o meio-dia, o ocidente K, e meia-noite O. Cada um destes pontos circula em virtude de impulso infinito; e cada um deles partiu e voltou simultaneamente; por conseguinte, está sempre fixo, está onde estava. De forma que, em conclusão, serem estes corpos movidos por eficiência infinita é o mesmo que não serem movidos; porque num instante, mover e não mover, é uma e a mesma coisa. Permanece, portanto, o outro principio activo do movimento, que deriva da eficiência intrínseca, e por conseguinte existe no tempo, numa certa sucessão; e este movimento é distinto da quietude. Eis, pois, como podemos dizer que Deus move o todo, eis como devemos entender que dá a possibilidade de se mover a tudo o que se move.

 

 

ELP. Agora, que tão alta e eficazmente me tiraste desta dificuldade, eu cedo completamente ao teu juízo, e espero de futuro receber sempre de ti semelhantes soluções; porque, se bem que até agora em poucas coisas te tivesse interrogado e experimentado, aprendi e concebi, todavia, bastantes coisas, e espero ainda mais proveito, porque, apesar de não ver plenamente o teu ânimo, vejo pelo raio que difunde, que dentro encerra um sol, ou uma fonte de luz ainda maior. E de hoje em diante, não com a esperança de superar a tua capacidade, mas com a mira de oferecer ocasião às tuas elucidações, voltarei a apresentar-te dúvidas, se te dignares fazer-te encontrar neste lugar, à mesma hora, tantos dias quantos bastarem para ouvir e compreender o suficiente para acalmar o espirito.

FIL. Assim farei.

FRA. Serás bem-vindo, e seremos todos ouvintes muito atentos.

 BÚR. E eu, embora pouco entenda, se não com­preender os sentimentos, escutarei as palavras: se não escutar as palavras, ouvirei a voz. Adeus!  

FIM DO DIÁLOGO PRIMEIRO

  (Bruno, 1984, p. 27-48)

 

 

 
Se gostou do 1º Diálogo, fica aqui o convite à leitura da obra completa. Por certo não se arrependerá!

 

Referência Bibliográfica: