ACERCA DA PERSONALIDADE DE HENRI POINCARÉ

 

  O aspecto exterior de Poincaré poderia parecer, para um observador superficial, relativamente vulgar. De corpulência e estatura médias, a face colorida, caminhava com a cabeça inclinada para a frente, as costas ligeiramente curvadas. O seu olhar, por vezes, parecia fixo. Contudo, um observador atento rapidamente reconheceria algo de muito particular, uma vida interior intensa, uma individualidade acentuada.

    Se o estereótipo tradicional do matemático é o sonhador distraído – de barba, de óculos, sempre à procura desses óculos, sem se dar conta que estão no nariz - e se poucos dos grandes matemáticos se adaptam inteiramente a este estereótipo, a verdade é que Poincaré o fazia na perfeição.

    Na verdade, desde a infância, que Poincaré era distraído. Por exemplo, uma das suas distracções habituais consistia em não saber se tinha almoçado. Essas múltiplas distracções, que lhe valeram a denominação de "sonhador distraído", não eram mais do  que o resultado de um pensamento intenso aplicado a um objecto abstracto, distinto das realidades materiais imediatas. Como escreveu um dos seus alunos, M. Buhl, "porquê insistir nas distracções de um espírito genial, quando é evidente que elas são exteriores a este espírito. O que se deve propor à admiração de todos é o trabalho produzido por essa inteligência quando perde a consciência do mundo vulgar. Imagino que um homem destes deve ter tido frequentemente a sensação de não ser mais que um pensamento". (Cit. in Appell, 1925:90)

    Neste sentido, o reitor da faculdade de Caen caracterizou-o, no ano de 1881, do seguinte modo: "M. Poincaré é um matemático de grande mérito, sempre obcecado pelo objecto das suas investigações". (Cit. in Appell, 1925:34)

    Desde cedo, a clareza do seu raciocínio despertava admiração. Ainda estudante, respondia às questões dos professores suprimindo os raciocínios intermédios, com uma brevidade e uma concisão desconcertantes. Digamos que em Poincaré brilhava em todo o seu esplendor a capacidade intuitiva. "E depois, de repente, aproximava-se da mesa e, sem se sentar, pousava um joelho na cadeira, agarrava na pena com a mão direita ou com a esquerda ao acaso, escrevia algumas palavras ou algumas linhas, e tornava a andar de um lado para o outro." (Testemunho de um seu colega de liceu, Xardel, cit. in   Appell, 1925:15)

    Para além dos dotes intuitivos que cedo se destacaram, Poincaré era detentor de um memória invejável. Conta-se a este propósito que, ao regressar de uma viagem, por mais demorada que tivesse sido, sabia dizer o nome de todas as estações atravessadas. "Poincaré maravilhava-me não apenas pelos seus dotes intuitivos, mas também pela sua imperturbável memória; conhecia todas as datas importantes da história, todos os horários dos comboios." (Lecornu cit. in Appell, 1925:30)

    Poincaré compriu até ao fim o seu dever, trabalhando para a verdade, para a ciência, mas também para a pátria. O seu amor pela França transparece nestas palavras: "quando nos pedem para justificar as razões do nosso amor pela pátria, podemos ficar muito embaraçados. Contudo, se imaginarmos o nosso exército vencido, a França invadida, todo o nosso coração se erguerá, as lágrimas subir-nos-ão aos olhos e não pensaremos em mais nada. E se, hoje, algumas pessoas fazem prova de tantos sofismas é certamente por não terem imaginação suficiente; mas, se alguma infelicidade ou algum castigo dos céus quisesse que eles vissem com os seus próprios olhos, a sua alma  revoltar-se-ia à semelhança da nossa". (Cit. in Appell, 1925:119)

    Finalmente, um outro traço da sua personalidade era a modéstia, característica de todos os verdadeiros sábios. Como o próprio Poincaré escrevia: "quando nos comparamos a um ideal elevado, não podemos senão acharmo-nos pequenos". (Cit. in Appell, 1925:91) E acrescenta: "os sábios são optimistas porque a sua paixão lhes traz alegrias frequentes evitando-lhes tristezas; não desesperam por nunca alcançar a verdade e recompõem-se facilmente por nunca estarem privados do prazer da investigação. A grande maioria permanece jovem no coração. Talvez nunca tenham sido tão jovens quanto os outros, mas permanecem-no durante mais tempo. A sua ingenuidade, que transparece aos olhos de todos, é um sinal de juventude. Talvez seja porque só a tristeza envelhece enquanto que a paixão acarreta alegrias sem dor". (Cit. in Appell, 1925:91)

    "Não podia ter havido homem mais singelo, mais bondoso, mais incapaz de fazer sentir a alguém a sua superioridade". (Testemunho de um antigo assistente cit. in Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia:328)

 

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt