A NATUREZA DOS AXIOMAS

 

    A figura de Jules-Henri Poincaré encontra-se profundamente ligada a uma página importante da Filosofia da Matemática. De entre as inúmeras questões que por ele foram discutidas, destacamos uma de particular relevância.

 

Qual a natureza dos axiomas geométricos?

    Serão julgamentos sintéticos a priori, como defendia Kant?

    Se assim fosse, argumenta Poincaré, "impor-se-iam a nós com uma força tal que não nos seria permitido conceber sequer uma proposição contrária e, muito menos, construir sobre ela um edifício teórico." (Poincaré, 1968:74) Neste caso, como explicar as  geometrias não euclidianas.

    Poderemos então concluir que os axiomas geométricos são verdades experimentais? Mas, como  alerta Poincaré, a experimentação em rectas ou circunferências ideais é impossível. Apenas os objectos materiais se podem oferecer à nossa sensibilidade. Sobre o que é que incidem então as experiências que servem de fundamento à geometria? A resposta revelou-se clara. Atendendo a que um matemático raciocina constantemente como se as figuras geométricas se comportassem de forma análoga aos sólidos, o que a geometria tira da experiência são as propriedades desses corpos. Não obstante, subsiste uma dificuldade inultrapassável. Se a geometria fosse uma ciência experimental, ela não poderia ser uma ciência exacta e seria passível de uma continua revisão. Mais, nesse caso, ela estaria condenada ao erro, uma vez que não existem sólidos rigorosamente invariáveis.

    Desta forma magistral, Poincaré conclui que "os axiomas geométricos não são, nem juízos sintéticos a priori, nem factos experimentais". (Poincaré, 1968:75)

 

    São convenções, "produto da livre actividade do nosso espírito que, neste domínio não conhece qualquer obstáculo. Assim sendo, o nosso espírito pode afirmar porque decreta." (Poincaré, 1968:24) Se Poincaré limitasse a sua posição a estas considerações estaria do lado do puro axiomatismo. Contudo, Poincaré levou a sua posição mais além, questionando-se acerca da arbitrariedade de tais decretos. Neste sentido escreve: "Não [são arbitrários], se assim fosse seriam estéreis. A experiência deixa-nos a livre escolha, mas é ela que a guia ajudando-nos a discernir o caminho mais cómodo. Os nossos decretos são portanto como os de um príncipe absoluto, mas sábio que consultaria o seu Conselho de Estado." (Poincaré, 1968:24) Nesta magnífica passagem, Poincaré apresenta de forma metafórica um príncipe absoluto, que representa a liberdade do espírito, mas que, sabiamente, consulta o seu Conselho de Estado, que é a experiência. A nossa escolha é livre para imaginar  todas as convenções possíveis, mas, nessa escolha é  guiada pelos factos experimentais. Desta forma, Poincaré salvaguarda a liberdade do espírito humano na escolha dos axiomas, liberdade essa apenas limitada pela necessidade de evitar a contradição, e, ao mesmo tempo, explica a aplicabilidade da matemática  ao real. Por outras palavras, Poincaré defende um axiomatismo "refinado":  "os axiomas da geometria não passam de definições mascaradas". (Poincaré, 1968:76)

O valor atribuido por Poincaré à experiência poderia levar-nos a pensar que, relativamente à origem dos seres matemáticos, Poincaré  defenderia uma posição empirista. Se o fizesse atribuiria a origem dos seres matemáticos à experiência sensível. Ora, ao contrário, considera-os seres ideais. Contudo, Poincaré não era platonista. Para Platão o real é imagem do ideal, ao passo que para Poincaré o ideal é que é imagem do real. Os seres matemáticos existem em potência no nosso espírito, desde a nascença, e vão sendo actualizadas pela intuição. Mais uma vez, a sua posição é dificilmente enquadrável nos esquemas clássicos. Sem perder a sua especificidade, ele situa-se algures no espectro de um inatismo virtual.

    Em suma, embora Poincaré não defenda uma posição empirista, confere alguma importância à experiência. Com efeito, considera-a indispensável por dois motivos. Por um lado, é ela que permite tornar actual o que é virtual. Por outro, é ela que nos permite escolher de entre as múltiplas virtualidades as que melhor se adaptam à nossa realidade, ou seja, as mais cómodas.

    Nunca antes de Poincaré alguém tinha apontado com tanta clareza a ideia de virtuais inesgotáveis. A matemática é inesgotável: a que conhecemos hoje é apenas o conjunto de virtuais que já foram alvo de actualização.

   

    Assim sendo, podemos ser levados a questionarmo-nos acerca da veracidade da geometria euclidiana. Mas, para este eminente pensador, esta questão não fazia nenhum sentido. Seria como perguntar se as coordenadas cartesianas são verdadeiras e as polares falsas. "Nenhuma geometria é mais verdadeira do que outra; apenas é mais cómoda e vantajosa." (Poincaré, 1968:76)

    O que acontece é que a geometria euclidiana é e permanecerá a mais cómoda: em primeiro lugar, por ser a mais simples em si mesma;  em segundo lugar, por ser a que melhor se articula com as propriedades dos sólidos naturais.

 

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Olga Pombo opombo@fc.ul.pt