A Filosofia da Educação não é uma Ciência da Educação

 

“Les valeurs de l'éducation”, in A. Jacob (org.), L'Univers Philosophique. Encyclopédie philosophique universelle, Paris: Puf, 1989, pp. 197-202.

por

Olivier Reboul

 

DAS CIENCIAS NO PLURAL

Desde o final do século XIX, houve a vontade de criar uma ciência da Educação, inspirada para uns na psicologia, para outros na sociologia. A nossa época deu um passo, sem dúvida muito positivo, ao passar do singular ao plural. Hoje há ciências da educação. Em França foram introduzidas na Universidade em 1967. Este reconhecimento oficial teve alguma importância pois obrigou os investigadores a precisarem os seus objectivos, os seus métodos e as relações das suas respectivas disciplinas. No entanto, estas ciências dão ainda a impressão de uma certa desordem. Pertencem às "Ciências da Educação" inquéritos estatísticos e panfletos contra a escola, pesquisas hipertécnicas e relatos tão entusiastas como incontroláveis. A única unidade destas ciências parece ser o seu objecto. Resta dizer que não existe ciência senão quando existe uma teoria, isto é, um conjunto coerente de hipóteses explicativas ou interpretativas apoiada sobre uma pesquisa de factos susceptíveis de a verificarem ou infirmarem. Uma teoria sem factos não é ciência, assim como não o é uma descripção de factos sem explicação ou interpretação.

Existem pois actualmente ciências da educação, aliás repartidas em dois grupos de estatuto epistemológico muito diferente consoante a educação é o seu objecto parcial ou exclusivo.

O primeiro grupo é constituído pelas ciências humanas aplicadas à educação: fisiologia, economia, história, etnologia, psicologia, psicanálise, linguística, etc, da educação. Trata-se de disciplinas teóricas que preexistem ao seu objecto. Dito de outra forma, de ramos das respectivas ciências que exigem autênticos especialistas: o historiador e o fisiólogo da educação são, antes de mais, historiador e fisiólogo. Mas, sendo estas ciências "da educação", tratam problemas específicos que lhes são colocados pelo seu objecto o que lhes permite enriquecer as suas respectivas ciências-mãe. Porque têm um objecto comum, a educação, estas ciências são necessariamente interdisciplinares; o psicólogo deve ter em conta a sociologia e a fisiologia da educação e vice-versa.

O segundo grupo engloba as ciências que nasceram da própria prática educativa enquanto tentativas para analisar e, se possível, melhorar essa prática. São ciências especificamente pedagógicas, que partem de problemas práticos, como o insucesso escolar, a avaliação dos alunos e dos professores, o movimento (no desporto), a planificação escolar, etc. Assim, após a já antiga psicopedagogia, apareceram a pedagogia experimental, a docimologia (ciência da avaliação escolar), a taxonomia (classificação de objectivos), a higiene escolar, a planificação, sem falar das investigações nascidas a partir da educação física.

As ciências da educação são portanto não apenas plurais mas duplamente plurais. Este estatuto possui um significado filosófico que importa ter presente: nenhuma delas pode pretender apreender a globalidade dos factos educativos, nem mesmo de um facto educativo único na sua totalidade pelo que são forçosamente interdisciplinares. A não ser assim, corre-se o risco de se cair no "sociologismo", no "psicologismo" ou no "pedagogismo", prontos a reduzir em vez de explicar. É o que acontece quando se tem a tentação de explicar o insucesso escolar unicamente por factores sociais, psicológicos ou fisiológicos.

Eis portanto como se poderão definir as ciências da educação: conjunto de disciplinas que têm por objecto, parcial ou específico, o conhecimento ou a explicação de tal ou tal aspecto da educação, constituindo efectivamente o seu conjunto uma totalidade interdisciplinar.

De notar ainda que há aspectos da educação que estas ciências não podem explicar, mesmo no seu conjunto. Vejamos, pelo menos, os dois seguintes.

Em primeiro lugar o facto educativo é, enquanto tal, inesgotável. A pedagogia, por mais científica que a pretendamos, não pode conhecer, de forma total, o resultada que um determinado ensino exeerce sobre um determinado aluno, pelo menos no que respeita a saber se esse ensinamento é profundo e duradoiro e, portanto, relamente educativo ! Que restará deste curso de Alemão no espírito deste aluno daqui a vinte anos ? Em que terá ele contribuído para a formação da sua personalidade global, para o tornr mais humano ?

Em segundo lugar, todo o facto educativo implica uma finalidade. Não apenas se aprende alguma coisa mas aprende-se para qualquer coisa; não existe educação, ensino, formação sem fins e sem posições de valor quanto a esses fins. Quando se toma, por exemplo, o 'insucesso escolar' como objecto de uma pesquisa social ou técnica, já está pressuposto um juízo de valor, uma vez que o insucesso é o que não devia acontecer. Ora, a ciência tem por objecto explicar factos, não determinar fins. A ciência ignora os juízos de valor.

 

VALORES E FILOSOFIA

É aqui que intervém a filosofia da educação. Ela não é uma ciência de fins, o que seria contraditório nos termos. É uma reflexão sobre os fins (finalidades) da  educação, a sua definição, a sua hierarquia, a sua coerência. A filosofia é, simultâneamente, a epistemologia que interroga as ciências da educação e a axiologia que as prolonga. Tem no entanto a filosofia da educação de se submeter, ela mesma, à interdisciplinariedade sem a qual não existiriam ciências da educação.

Podemos colocar aqui uma questão: Com que direito pretende o filósofo impor os seus fins (finalidades) aos educadores?  Quem é ele para se autorizar uma tal missão?

Precisemos, antes de mais, que não se trata para o filósofo de 'impor'. Os fins (finalidades) da educação são inerentes à própria educação, uma vez que aprendemos sempre para qualquer coisa. O papel do filósofo é antes o de determinar o valor desses fins (finalidades).

Tomemos, por exemplo, a leitura:

De há três séculos para cá, os pedagogos questionam-se a si próprios qual o melhor método para aprender a ler. 'PARA': é, portanto, obvio que todos estão  de acordo em considerara o facto de saber ler  como um fim. Mas, em nome de que valor ? Pode-se responder de forma funcional: saber ler é o 'pré-requesito' para aprender tudo o resto, assim como para sobreviver no mundo actual. Certo. Mas, então, saber ler não é senão um fim relativo, um meio para atingir outros fins. Ora, pode pensar-se que saber ler é também um fim que tem valor em si.

Recuemos aos nossos druídas e, mais geralmente, às culturas orais que podem ter sido muito ricas e refinadas. Simplesmente, na falta do livro, tudo está confinado à memória; tudo aquilo que não é retido, perde-se iremediavelmente. Esta cultura toma, portanto, uma forma 'memotécnica', transmite-se por provérbios, poemas, imagens tocantes como metáforas e alegrias. E esta forma, própria para vencer o esquecimento, é inseparável do fundo cultural. De facto, a cultura oral pode ser bela, poética, rica em sabedoria prática, mas favorece muito pouco o espiríto critíco e a inovação uma vez que cada mudança, cada interrogação, se arrisca a destruir a mensagem. De uma forma breve, trata-se de um ensino que dá lugar grande lugar ao 'saber de cor', uma cultura que só pode sobreviver sendo conservadora, o que equivale a dizer que é sagrada.

O facto de ler introduz uma mutação fundamental na cultura. Ler é poder comunicar com interlocutores longínquos, quer no tempo quer no espaço, libertar-se do 'aqui e do agora' e aceder aos pensamentos mais diversos. Ler é também poder reler; a mensagem oral desaparece à medida que ocorre a sua emissão e 'escutar' é sempre 'correr sem nunca parar'. (Alain, Propos sur l'éducation, nº 44). O leitor tem o poder de reanalisar aquilo que lhe parece obscuro ou essencial. Ler é apoiar-se sobre referências imutáveis, ainda que, em número indefinido, como datas, histórias, lugares geográfico que permitem estruturar objectivamente o tempo e o espaço. Ler permite passar do mito à ciência. Por fim, a leitura introduz uma distância entre o saber e o seu sujeito; a mensagem oral (provérbio, conto, mito, ... ) existe apenas na medida em que subsiste em nós, em que cada um a retém e a incorpora. Contrariamente, o texto escrito, e sobretudo o impresso, está diante do sujeito como um objecto que temos o poder de aceitar ou reter: este enfrentamento com o texto permite analizá-lo, destinguir a sua forma e o seu sentido, traduzi-lo, etc.

A leitura permite, portanto, o afastamento em relação à mensagem, a análise conceptual, o espírito crítico e a mudança. Uma civilização oral pode dar origem a epopeias como a Ilíada  mas nunca a obras racionais como os Elementos de Euclides ou as Meditações cartesianas. O ensino oral encerra tesouros de sabedoria prática mas não se presta à ciência, nem à filosofia nem à história. O conhecimento é fixado graças à sua forma. A necessidade de repetir sem ler conduz o receptor a identificar-se com a mensagem que repete. O simples facto de ler, por contrário, liberta-nos da mensagem, dando-nos a possibilidade de a julgar.

Saber ler tem, portanto, um valor per si; aprender a ler é adquirir uma certa liberdade. Mas, ao abandonar a cultura oral ou, mais concretamente, renunciando o que se transmite 'de cor', não se terão perdido algumas riquezas?

Surge aqui um segundo problema filosófico: A compatibilidade dos valores entre si. Poderemos conciliar o valor dos mitos, carregados de poesia e de sabadoria humana, mas funcionalmente conservadores e irracionais, com os valores da cultura moderna tais como a objectividade científica e a autonomia pessoal? Em caso afirmativo, é necessário definir ou redefinir a cultura.

Resta por fim a questão da hierarquia que decorre da própria definição de valor.

Valor: aquilo que vale a pena, o que merece um sacrifício; sendo o próprio sacrifício um valor no caso de aquilo que se perde ser um valor. Assim, sacrifica-se o prazer por um valor superior, como a justiça ou o amor. O mesmo se passa no ensino. Todos concordam em atrubuir valor ao desenvolvimento intelectual e fisíco; mas, a qual dos dois devemos atribuir maior importância? A preferência por um deles implica o sacrifício (ao menos parcial) do outro. O filósofo, mais do que qualquer outra pessoa, não contesta os valores mas interroga-se sobre a hierarquia que se estabelece entre eles e sobre o sentido dessa hierarquia, sobre a 'escolha da sociedade' que essa hierarquia implica.

Filosofia:  antes de mais, trabalho de elucidação.

 

 

ELUCIDAÇÃO FILOSÓFICA NOS DEBATES ACTUAIS SOBRE EDUCAÇÃO

 

Mostremos em que consiste o trabalho de elucidação em relação a dois pontos decisivos no debate actual sobre educação, as técnicas pedagógicas e a linguagem da educação.

AS TÉCNICAS PEDAGÓGICAS (EDUCATIONAL TECHNOLOGY).

As técnicas pedagógicas multiplicam-se desde há cinquenta anos: ensino programado, avaliações por QCM; audiovisuaais, pedagogia por objectivos, ensino assistido por computador,videoscopia,etc...

Notemos no entanto que, desde sempre, existiram técnicas na educação: tabuada, abecedário, manuais, procedimentos didácticos, são outras tantas técnicas ou seja métodos codificados permitindo atingir um objectivo definido. O nosso problema não é o da técnica em si, mas aquilo que Neil Postman chama a 'tecnização', o facto de a técnica, pela sua própria eficácia, tender a tornar-se ela própria como um objectivo em si. Assim, a circulação, que em princípio não passa dum meio, tende a tomar valor de fim  quando se destroiem os quarteirões mais antigos das cidades, se devastam florestas, se alteram as paisagens, etc, numa palavra, quando se reduz 'o que resta' à categoria de meio, ou de obstáculo (sendo que 'o que resta ' é a vida dos homens).

A educação não escapa a essa alienação. O facto não é novo. Na Antiguidade, a retórica e a dialéctica tornando-se meios importantes de ensino, tão importantes e eficazes que se tornaram rapidamente fins em si.; em lugar de formar homens, formaram-se retóricos e dialécticos  e toda a cultura intelectual se viu modelada em consequência disso. Segue-se o mesmo caminho nos nossos dias, apesar de as nossos técnicas educativas serem mais numerosas e sobretudo bem mais exteriores a nós. Como se caracteriza então a tecnização? A nosso entender, por cinco pontos:

1) O postulado de que a técnica pode resolver todos os problemas. Insucesso escolar? Basta defini-lo como um desvio entre os resultados dos alunos e os objectivos fixados, analizar os factores que provocam esses desvios e modificá-los em consequência.

2) A exigência de um contrôle total de resultados. Assim como o industrial deve saber aquilo que sirá das suas fábricas, da mesma maneira o educador deve prever e controlar o 'output', as mudanças que provoca a sua acção sobre aqueles que educa. O incontrolável é eliminado. Ora, o incontrolável é o acaso e também a liberdade.

3) Em consequência disto a redução do real àquilo que é observável, mensurável e quantificável. A inteligência definir-se á pelo QI, o conhecimento de uma lingua pelo facto de se ter passado num teste padronizado.

4) A supressão da escolha das técnicas. Não há senão um método para aprender a montar os pneus de uma bicicleta, a ler, a entender-se com as crianças, a falar uma lingua , a ensinar... Observação simples: os filmes em câmara lenta mostraram que os grandes campeões de ciclismo possuem cada um o seu próprio método para escalar montanhas e o mesmo se passa sem dúvida alguma com outros exemplos. Mas a tecnização impõe, em nome da eficácia, o monopólio de uma técnica.

5) Poder-se-ia pensar que a tecnização elimina todo o valor. Não é assim. Ela coloca como supremo a eficácia. Esta determina-se, em princípio, em relação aos objectivos pretendidos. Mas, por uma mutação tão implícita como real, os objectivos que retemos são aqueles que a eficácia permite atingit com segurança. Os fins não são mais que os meios de ser eficaz! Assim, formar um médico ou um professor é um fim, mas a videoscopia tentará impor aos estudantes a imagem padrão do bom médico, do bom professor e 'ajustar' os seus comportamentos a esses modelos.

Da mesma forma com as QCM (questões de escolha múltipla). Encontrar a ideia directora de um texto é um objectivo tão louvável como difícil de avaliar. Ora, se se apresentam ao estudante cinco frases e se se lhe pede que assinale a certa, aquela que exprime a ideia directora de um texto, deixa de existir problema; a eficácia do teste está garantida. Vê-se deste modo como é que a tecnização pode engendrar o dogmatismo e o conformismo. Podemos utilizar estas técnicas de outro modo, mas somos sempre tentados a tomá-las segundo a máxima eficiência. A tecnização cria os fins que lhe permitem atingir a sua própria eficácia,  inquietando-se tão pouco com 'o resto' como os construtores das autoestradas.

Repitamos: não se trata de recusar a técnica; ela é indispensável à educação como a todas as empresas humanas. Trata-se de mostrar quais as transformações que a tecnização introduz nas escalas de valores e, racionando a contrario, quais os valores que ela pretende salvar.

Assim, a tecnização pretende estar segura dos seus resultados para, no limite, evitar todo o insucesso escolar. Ora, no mito de Er, Platão apresenta-nos um indivíduo que escolhe nitidamente a recompensa de um tirano poderoso para, em seguida, se aperceber que este prémio o vai conduzir a crimes bárbaros, tais como comer os seus próprios filhos. Curiosamente, esse homem era daqueles 'que vinha do céu e passou a sua vida anterior numa cidade bem governada; mas a virtude que lhe foi transmitida era devido ao hábito e não à filosofia' (República, X, 619 c-d). O falhanço mais grave da educação pode ser o seu aparente sucesso, sucesso programado que mata a liberdade.

 

 

A  LINGUAGEM  DA  EDUCAÇÃO

 

Uma segunda aproximação crítica, consiste em analisar a linguagem da educação para conhecer os valores que ela veícula. A 'análise lógica', praticada sobretudo em países anglo-saxónicos, parte assim da ideia que a linguagem comum encerra nela própria uma sabedoria e que a sua análise pode servir-nos de guia, aquilo que se pode dizer seria a norma do que se deve fazer.

Quais são por exemplo os valores que veícula a palavra 'ensino'. Para uns, reduz-se a uma 'transmissão' e a uma 'inculcação'. Não se vê então quais as diferenças entre ensino e doutrinação. Mas, partamos então de um exemplo banal, de um desses exemplos de análise lógica. Se eu indico o caminho a um estrangeiro, podemos dizer que se trata de um 'ensinamento'? Não, de uma simples informação. Que distingue então 'ensinar' de 'informar'? Precisamente aquilo que exprime o nosso exemplo: a duração (não se aprende inglês num curto espaço de tempo), o programa, o método, a instituição, por fim, e sobretudo, o valor do resultado uma vez que aquilo que se ensina é um conteúdo transferível, que se aplica a um número indefinido de situações diferentes daquelas em que foi adquirido. Deste modo, dizer ao transeunte: 'é a terceira rua à direita', tem para ele um valor imediato, mas não lhe servirá em nenhum outro lugar. Enquanto que ensinar a ler um mapa tem como finalidade permitir a leitura de um infinidades de outros mapas. Dito de forma breve: o ensino permite ao ensinado uma verdadeira competência que transcende toda a 'transmissão' ou 'inculcação'. Longe de prender, o ensino liberta. Este é o seu valor específico.

As construções gramaticais são igualmente instrutivas. Suponhamos que se pretende restabelecer a instrução cívica. Coloca-se um problema: que vamos ensinar? Mas, outro problema se colocaigualmente: o que é ensinar neste caso ? Na verdade, é preciso destinguir entre 'ensinar que', dar informações sobre a constituição, as leis , etc, o que não garante que os alunos terão uma atitude mais civica, 'ensinar a', praticar a democracia, o que induz uma pedagogia essencialmente prática e activa (cooperativas, coogestão) e, enfim, 'ensinar porquê',  fazer compreender que a democracia implica deixar falar o adversário, não fazer justiça com as próprias mãos, etc. Dito em poucas palavras: estamos perante três tipos de ensino que não têm, por certo, o mesmo valor.

A análise lógica permite também encontrar a ambiguidade que os valores comuns possuem. tal é o caso de expressões 'polisémicas' como 'escola na vida', 'democratizar o ensino', expressões cujo conteúdo vago permite ligar os públicos mais diversos. Tal é igualmente o caso daquelas metáforas sorrateiras em que o pedagogo ao falar de 'equilibrio', de 'transmissão', de 'desabrochar, está a empregar termos próprios a uma determinada ciência - daí o seu prestígio - mas para os transportar para dominíos onde a sua pertinência não é tão obvia. Pode-se efecetivamente 'transmitir-se um saber? Um ser humano 'desabrocha' como uma flôr ?, etc. Enfim, o caso das falsas alternativas: tendencialmente maniqueista, decididamente, o discurso pedagógico porta-se como se não houvesse mais que dois termos: ensino tradicional ou inovação, constrangimemto ou liberdade. O que acontece é que assim se exclui a possibilidade mesma de intermediários ainda que, porventura, os intermediários sejam a própria pedagogia.

Em suma, a análise lógica é um instrumento que procura os valores investidos na linguagem corrente e que permite clarificá-los. Esses valores são os da nossa cultura, aqueles que a nossa lingua exprime.

Veja-se a análise que fazem Hirst e Peters da palavra 'punishment' (castigo), eles mostram que a punição existe como "conecção entre o facto de infringir as regras e o de infligir qualquer coisa de desagradável ao transgressor". Mas, saber se a punição é útil à educação não faz parte das atribuições da análise lógica, é um problema empiríco que pertence ao psicólogo ou outros especialistas. Seja. Mas, pode ir-se ainda mais longe e perguntar se o enunciado segundo o qual a pena aplicada ao transgressor (aquele que ofende) não será ela própria empiríca, uma vez, que muitas culturas e religiões admitem o castigo em substituição da culpa colectiva (falamos ainda disso 1945!). A ligação entre a pena e o transgressor não é de ordem lógica mas cultural e doutrinal. Quanto ao valor educativo do castigo, sobre o qual Platão tanto insistiu no Górgias, valor esse que a análise lógica não pode certamente estabelecr, nem por isso deixa de se ser um problema fundamental da filosofia da educação.

É aqui que é necessário fazer intervir outros métodos, não de análise mas de sintese, como a dialéctica.

Mostrámos que a noção de valor é inerente à noção de educação. Nesse dominío, como em todos os de acção humana, o juizo de valor não é uma flôr rara crescendo, não se sabe muito bem como, num solo de juízos da realidade. O juizo de valor é tão comum que chega ao ponto de se confundir com o julgamento em geral. 'Este trabalho vale dez valores', 'estas crianças são retardadas': aqui, o juizo de realidade passa a ser um juizo de valor neutralizado e relativisado pela ciência, aliás muitas vezes de forma ilusória. Um Q.I., uma taxa de insucesso escolar não são outra coisa senão juizos de valor quantificados.

Ora, como procurámos demonstrar, os valores em educação raramente são de ordem utilitária. Certamente que podemos desejar fazer bons técnicos tal como se fabricam boas viaturas; determinar as performances de um campeão como se determina as dos seus skis. Mas ninguém, mesmo na nossa sociedade, verá tais tentativas com fins da educação. Os fins da educação podem ser diversos, a transmissão de saberes e de normas, o julgamenti livre, o desabrochar da criança, a formação do trabalhador e do cidadão, ..., mas todos têm algo em comum - o facto de transcenderem a ordem funcional. Mesmo uma educação que pretende fazer do homem um instrumento (da nação ou de Deus), refere-se a um fim que ela considera, não como útil, mas como sagrado.

Falta a questão fundamental, verdadeiramente fundamental, colocada de ínicio:

Para lá de todas as variações de valores, será possivel encontrar um invariante ?

O invariante resulta da nossa própria definição de educação como aquilo que permite à criança aceder à humanidade. Porém, o conteúdo que se atribui à humanidade varia muito. É necessário concluir pela relatividade dos valores ? Apenas duas observações:

Em primeiro lugar, uma educação que reduzisse a humanidade a uma sociedade particular - raça, nação, religião - não seria senão uma ou doutrinação ou endoutrinamento. Segunda observação: o homem cultivado é capaz de compreender os valores muito diversos, mesmo aqueles que não defende. Apesar de tudo, César compreendia as motivações dos druídas.

E nós também.

          (Tradução de Romeu Rita Afonso de Barros, processamento de texto de Carlos José dos Santos Prado, revisão  de Olga  Pombo)