Filosofia da Educação: objecto e métodos

 

 

“Postface”, in La Philosophie de l'éducation, Paris: PUF, 1971, pp. 133-139.

por

Olivier Reboul

 

Escrito em 1971, o livro A Filosofia da Educação tinha como objectivo maior mostrar a existência do seu objecto e provar essa existência filosofando sobre a educação. Hoje em dia, essa existência é reconhecida mesmo em França embora, infelizmente, nem sempre se esclareça de forma suficiente em que consiste a filosofia da educação .

Creio, portanto, que não será inútil debruçarmo-nos uma vez  mais sobre a breve introdução deste livro e insistir sobre a especificidade da filosofia da educação. Ela é específica, antes de mais, pelo seu objecto e, depois, pelo seu método .

 

Fins, meios e objectivos

 

Como procurei mostrar, o objecto da filosofia da educação consiste em determinar as finalidades da educação. Gostaria agora de apresentar dois novos esclarecimentos sobre este ponto.

1º Não se deve confundir a ideia de finalidade com a de objectivo pedagógico, hoje em dia tão em voga. O objectivo é um resultado preciso, observável e passível de medição, realizado pelo próprio aluno, cujas condições de aquisição se podem determinar e que, por sua vez, permite atingir outros resultados. A pedagogia por objectivos é assim uma técnica que torna possível a progressão metódica e a avaliação objectiva . Quer o aluno regrida ou progrida, ele sabe porquê e em quê. A este título, a pedagogia por objectivos é interessante. No entanto, como todas as técnicas, tem os seus limites .

Em primeiro lugar, não contêm nela própria a garantia de ser educativa. Podemos conceber uma pedagogia por objectivos da domesticação, da endoutrinação, da lavagem ao cérebro . Trata-se de saber quais as finalidades de que esses objectivos são meios .

Em seguida, mesmo quando ao serviço da verdadeira educação, a pedagogia por objectivos não diz respeito senão a uma pequena parte daquela, nomeadamente, ao ensino dos saberes-fazer e dos saberes. Apesar do que pertendem certos autores americanos, a educação moral, política e estética não é da competência desta pedagogia .

Enfim, mesmo quando está apenas ao serviço do ensino, podemos pensar que ela termina no ponto exacto onde este começa. Verbos como "enumerar", "situar", "identificar", "seriar", designam excelentes objectivos, actos observáveis e mensuráveis, realizados pelo aluno. Em contrapartida, verbos como "compreender", "inventar", "criar", designam actos difíceis de observar, e mais ainda de medir, actos que não constituem objectivos nem sequer o resultado da confluência de vários objectivos . E, no entanto, quem diria que compreender, inventar e criar não são as finalidades maiores do ensino . Para falar como os linguístas, a pedagogia por objectivos recai sobre as performances e não sobre a competência . Ora, a competência é de facto a finalidade de todo o ensino, em todas as disciplinas .

2º Da definição de educação, resulta que esta é simultaneamente, um processo e um resultado, uma finalidade e os meios para a atingir. Quer isto dizer que a educação não tem nenhuma finalidade exterior a ela própria, que ela é a sua própria finalidade. O que equivale a dizer que um meio, para ser educativo, deve possuir em si próprio o valor de uma finalidade .

Vejamos alguns exemplos:

1) Os psicólogos demonstraram que a ternura maternal é um meio indispensável ao desenvolvimento psiquíco e mesmo físico da criança. Mas ninguém ousaria dizer que a ternura é apenas um meio, que não tem um valor em si. Como diz G. Snyders, a ternura testemunha que " todo o ser humano é, em direito, amável e que poderia, ou deveria, tornar-se amável " . É pois o seu valor intrínseco que faz da ternura um meio educativo .

2) Para adquirir o espírito científico, os alunos devem aprender a objectividade, o respeito pela prova, a busca de todas as objecções possíveis, a submissão dos seus desejos à verdade, a abertura de espírito. Porém, estes meios não apenas  constituem o preâmbulo do espírito científico; eles são já o espírito científico.

3) A título de contra-exemplo: pode acontecer que se consiga inculcar uma moralidade perfeita nas crianças por intermédio de procedimentos extrínsecos à educação, como a sugestão durante o sono ( hipnopedia ) ou mesmo a acção sobre  os genes. Pode-se discutir se estes meios são eficazes ou não. De qualquer forma, cada um de nós estará pronto a admitir que tais meios nada têm de educativo, que tendem mesmo a suprimir toda a educação. Se a educação se distingue da domesticação não é precisamente porque a educação apela cada vez mais à consciência do educando ?

Noutros termos, a eficácia de um meio não é suficiente para fazer dele um meio educativo. Quando a Educação Nova rejeita os procedimentos autóritarios, é sem dúvida porque não os considera eficazes; mas, mesmo que o fossem plenamente, ela continuaria a rejeitá-los por eles constituirem uma ofensa à espontâneiadade e à dignidade da criança . Ao contrário, quando a educação tradicional prega a disciplina, a obdiência, a admiração pelos modelos, não é apenas a título de meios que preparam o futuro mas porque lhes confere um valor em si. Acresce que também a Educação Nova atribui um valor em si à admiração e à disciplina desde que compreendidas e consentidas e a Educação tradicional à liberdade desde que guiada. Todos concordamos pelo menos neste ponto: um meio só é educativo se for também uma finalidade.

Inversamente, podemos afirmar que uma finalidade só é educativa quando é também um meio, um meio para ir mais longe. De facto, é difícil conceber uma finalidade de educação que fosse o seu prório términus. Mais cedo ou mais tarde chegamos ao fim da nossa aprendizagem, do nosso treino, dos nossos estudos. Mas não deixamos nunca de nos tornarmos Homens. Por isso a finalidade da educação não é um estado no qual já não teríamos necessidade dela, mas um estado no qual o sujeito pode tomar nas suas mãos a sua própria formação. É o estado da maturidade .

Não é isto equivalente a dizer que a educação não tem outra finalidade senão ela própria, que ela é por essência permanente ?

 

Os métodos da filosofia da educação

 

Quanto ao método, basta ler os livros dos filósofos para constar que não há apenas um método mas diversos. Método dedutivo, indutivo, dialéctico... Limitar-me-ei a recordar os quatro que guiaram o presente trabalho.

O método histórico - É o método utilizado por Alain. Consiste em interrogar os grandes filósofos do passado sobre os grandes problemas da educação, como o papel da autoridade, a motivação, a selecção, a formação dos sentimentos, a cultura . Nesta prespectiva, a história das ideias não tem como fim aclarar a passado mas o presente . Ela não é um museu, mas uma escola. Foi este o método que tentei pôr em prática no capítulo sobre a educação moral.

O método reflexivo - Recordo a frase de Léon Brunschvicg: " A filosofia é a ciência dos problemas resolvidos ". Parte-se dos problemas que as diversas ciências da educação "resolveram" e pergunta-se em que condições foram resolvidos e com que limites o estão.

Retomemos a questão colocada no capítulo IV: "O que é ser adulto ? Na psicologia genética a maturidade é o último estádio do desenvolvimento e o objectivo de todos os outros. No entanto, Piaget mantêm-se tanto mais vago na descrição deste estádio quanto é preciso na descrição dos precedentes. Além disso, os seus critérios de pensamento adulto - por exemplo - o equilíbrio, a descentralização - aplicam-se  mais a um ideal do que à mentalidade real das  das pessoas ditas " adultas ". O mesmo acontece com Freud. Freud fala frequentemente do infantilismo e considera a maturidade dependente da cura da neurose: " Poderíamos definir a cura psicanalítica como uma educação progressiva que visa ultrapassar, em cada um de nós, os resíduos da infância ". Mas os critérios que Freud dá sobre a maturidade estão longe de ser precisos e, sobretudo, não se precebe se definem uma realidade ou um ideal inacessível.

Este fracasso parcial das ciências em definir um adulto não é o resultado de uma deficiência provisória .Explica-se, quanto a mim, por duas razões. Primeiro porque as ciências humanas são plurais enquanto que a maturidade é um fenómeno global, que diz respeito à personalidade no seu todo. Depois, porque as ciências humanas se querem objectivas, enquanto a noção de adulto repousa sobre um juízo de valor. A maturidade não é apenas uma idade mas um juízo de valor.

Por outras palavras, a filosofia parte dos resultados das ciências enquanto dados necessários mas não suficientes. Tenta unificá-los tanto quanto possível para responder ás questões que o homem se coloca sobre  sipróprio .

A análise linguística - Já mencionei este método na introdução. Trata-se da investigação sobre o "que é que nós queremos dizer ? " . Podemos subdividi-lo assim:

a) análise dos termos - Qual o sentido de " ensino ", de " escola ", de " mestre ", de " aprender ", de " cultura " etc. Importa revelar a polissemia destes termos e as suas diversas conotações. Alguns destes termos são perigosos porque não reparamos que se trata de metáforas e lhes atríbuimos uma cientificidade que eles não têm no domínio da educação para que foram transferidos . É o caso de " transmissão ", metáfora retirada da mecânica, de " objectivo " que provém da estratégia, de " crescimento " ou de " aptidão ", termos provenientes da biologia .

b) análise de fórmulas - Algumas fórmulas, que parecem evidentes, são na realidade, pelo seu carácter sumário e pela sua acção sobre o inconscinte, verdadeiros slogans . Que quer exactamente dizer " Escola da vida " ou "transmissão do saber " ou " democratização do ensino " ? A análise consiste, primeiramente, em distinguir todos os sentidos possíveis destas fórmulas, por vezes contraditórios entre si, discernir os valores aos quais cada um destes sentidos se refere e, por fim, compreender as suas implicações práticas.

c) análise dos discursos - Toma-se um " corpus ", por exemplo as instruções oficiais sobre determinada matéria, ou um conjunto de manuais escolares, ou relatórios de inspecção, e procura-se dar conta da ideologia que lhe está subjacente . Este método constitui um poderoso meio de tomada de consciência. Mas, tem dois grandes incovenientes. Primeiro, repousa demasiado sob a suspeita, e a suspeita é um método de polícia, não de filósofo. Segundo, se é exclusivo, conduz directamente ao nihilismo: se tudo é ideologia, a ideologia não é nada; se acusamos todo o mundo, desculpamos todo o mundo; se não estabelecemos diferenças entre a lição de moral e a lavagem ao cérebro, acabamos por justificar a lavagem ao cérebro.

O método " a contrario "  - Com efeito não basta saber " o que se quer dizer ". É também necessário saber o que se pode dizer partindo para tal do que não se pode dizer. Este método repousa sob um consenso que, por ser negativo, nem por isso é menos real. Utilizei-o no 1º capítulo e no meu livro intitulado O  endoutrinamento .

Retomemos a questão do adulto. Há um ponto sobre o qual todos concordamos, o infantilismo. Ninguém aceita ser ou ser tratado como infantil, com tudo o que este termo arrasta de irrealismo, de irresponsabilidade, de impotência, de falta de humor.  Podemos partir daquí para definir a contrario, a maturidade .

Da mesma maneira, para definir o verdadeiro ensino, podemos fazer notar que ninguém aceita reduzi-lo a uma domesticação, a uma transmissão de informação ou a um endoutrinamento. Ninguém quer reduzir formação à informação, menos ainda a uma deformação . Ainda que estas práticas de facto existam, o facto, não menos real, de as denunciarmos testemunha a favor dos valores que elas contradizem. O método a contrario  faz jus às exigências do ideal, eu diria mesmo do sagrado. Ora, será possível conceber uma educação sem um certo sagrado ?

 

 

(Tradução de Ana Isabel Costa e de Sérgio Alberto Vicente dos Santos Pedro, processamento de texto de José Miguel Leal, revisão de Olga Pombo)