Comentário

 

 

"Aniki-Bóbó", desenvolve um tema simples e emocionante: O mundo das crianças, mundo que Manuel de Oliveira, mostra que  não é simples, sem preocupações e cuidados como a maioria dos adultos julga ser.

Carlitos, o protagonista, tem cerca de 8 anos e como tal deveria ter uma vida despreocupada, própria da sua idade. Contudo a realidade não é bem assim. A sua preocupação, centra-se numa menina chamada Teresinha, por quem Carlitos e Eduardo estão apaixonados. Como Teresinha não se decide por nenhum dos rapazes, o filme representa a rivalidade existente entre os dois, sendo a menina o ponto chave dessa disputa.

Um dia, Carlitos, de forma a despertar a atenção e o interesse de Teresinha, decide roubar uma boneca da “Loja das Tentações” que a menina desejava.

No entanto, Eduardo é sempre obstáculo aos esforços proferidos por Carlitos para se aproximar de Teresinha.

Este é um filme que retrata bem “assuntos humanos” como o amor, a amizade, o ciúme e a concorrência que não apenas existem no mundo dos adultos,  mas como também no mundo das crianças.

O filme desenrola-se em quatro cenários de grande importância: a escola, a praia, a loja e o morro.

Relativamente à educação familiar, este filme dá pouco relevo a este aspecto. Apenas se vê a casa familiar, no inicio do filme quando a mãe de Carlitos o prepara para ir para a escola. Não é dada a percepção de como era a educação familiar, mas pressupõe-se que seria como hoje em dia, em que a família protege os filhos do mundo exterior, uma vez que a criança tem de ser protegida contra o mundo e, em particular, contra o aspecto público do mundo. Os pais, pela concepção e pelo nascimento, não apenas dão vida aos seus filhos, mas ao mesmo tempo, introduzem-nos num mundo. Desta forma, pela educação, os pais assumem uma dupla responsabilidade, pela vida e pelo desenvolvimento pleno da criança, mas também pela continuidade do mundo. Estas duas responsabilidades não coincidem de modo algum e podem mesmo entrar em conflito. Por um lado, a criança tem necessidade de ser protegida e cuidada para evitar que o mundo a possa destruir. Por outro lado, o mundo tem necessidade de ser protegido, de modo a impedir que seja destruído e devastado pela chegada de novos seres humanos.

Assim, é no seio familiar que a criança encontra a protecção que necessita contra o mundo que a rodeia.

Apesar de o filme dar pouco relevo ao aspecto familiar, supõe-se que a educação seria feita de forma tradicional, através da transmissão de valores e regras da parte dos pais para os filhos, feita de uma forma subtil, devagar e discreta desde o nascimento. Esta transmissão de valores seria feita através do exemplo dos pais ou outros agentes, pela fala normativa, a punição, ameaça, castigo efectivo ou sob a forma de promessa.

Na educação, os adultos são responsáveis pela criança. Esta responsabilidade não consiste tanto em zelar para que a criança cresça em boas condições, mas em garantir o livre desenvolvimento das suas qualidades e características.

Os educadores, face aos jovens, fazem sempre figura de representantes de um mundo do qual devem assumir a responsabilidade. Esta responsabilidade não é arbitrariamente imposta aos educadores, está implícita no facto de os jovens serem introduzidos pelos adultos num mundo em constante mudança.

No caso da educação, a responsabilidade pelo mundo toma a forma de autoridade, a qual vem do facto do educador ser mais velho, de ser familiar ou de fazer parte de um mundo antes da criança nascer.

Em relação à educação familiar transmitida no filme temos a frase escrita na sacola de Carlitos e que diz: “Segue sempre o bom caminho”, este é um exemplo dos valores transmitidos ao menino pela sua família.

Este filme retrata um mundo da criança e uma sociedade formada pelas crianças, que são autónomos e que, na medida do possível, se devem deixar governar por si próprias. Verifica-se neste filme um grupo de crianças que detêm a autoridade, a qual vai permitir dizer a cada criança o que ela deve ou não fazer. No interior do grupo, a criança vivência a autoridade de um grupo de crianças e esta autoridade é consideravelmente mais forte e muito mais tirânica que a de um único indivíduo.

A educação é retratada no filme através de um grupo de amigos, que com as suas regras, atitudes e decisões, educa cada um dos meninos a aprender o que é certo e o que é errado, ajuda cada um a saber-ser e a saber-viver.

Este filme indica-nos que a educação para além de ser feita, inicialmente, na família é também realizada na rua, com o grupo de amigos, os vizinhos, entre outros.

A educação é a acção consciente que permite a um ser humano desenvolver as suas aptidões físicas e intelectuais, bem como os seus sentimentos sociais, estéticos e morais, com o objectivo de cumprir tanto quanto possível, a sua missão como homem e é também o resultado dessa acção.

A educação consiste em formar, por intermédio dos bons hábitos e acções, os sentimentos mais primitivos, “o prazer, a afeição, a dor, o ódio”, de forma que se articulem espontaneamente com a razão.

Relativamente ao ensino, este está representado na escola e na figura do professor. A escola é representada no filme como um lugar de constrangimento que impede os jovens de gozar a vida e a liberdade que existe lá fora. A escola é representada como uma prisão em que os jovens têm de estar sentados, quietos, atentos às explicações do professor e reprimir a sua energia e jovialidade. Verifica-se na cena da escola, o pouco interesse que os alunos demonstram pela escola, tudo servindo para os distrair.

O professor é representado como uma figura de autoridade, pelo qual os alunos nutrem medo, respeito e submissão. Estes sentimentos resultam de o professor ser uma pessoa ríspida, que os obriga a uma atitude rígida, séria, formal, que não hesita em humilhá-los, castigá-los à menor transgressão de uma regra.

É através da escola que a criança faz a sua primeira entrada no mundo. A escola não é porém  o mundo e nem deve pretender sê-lo. A escola é antes, a instituição que se coloca entre o domínio privado da família e o mundo de forma a tornar possível a transição da família para o mundo. A escola representa para a criança o mundo, ainda que não o seja verdadeiramente.

A única autoridade legítima do professor é a sua competência. Ainda que não haja autoridade sem uma certa competência, esta, por mais elevada que seja, não poderá jamais, por si só, engendrar a autoridade.

A competência do professor consiste em conhecer o mundo e em ser capaz de transmitir esse conhecimento aos outros. A sua autoridade, funda-se no seu papel de responsável pelo mundo, ou seja, face às crianças ele é um representante dos habitantes adultos do mundo.

No filme, não se verifica a autoridade legitima do professor, mas antes o seu autoritarismo, não hesitando em desmotivar os alunos com as suas atitudes repressivas e ríspidas.

Não é possível educar sem ao mesmo tempo ensinar: uma educação sem ensino é vazia e degenera com grande facilidade numa retórica emocional e moral. Contudo, podemos ensinar sem educar e podemos continuar a aprender até ao fim dos nossos dias.

Este filme salienta também que as crianças podem ser superiores aos professores a ensinar algumas coisas a algumas crianças. Muitas vezes, as crianças compreendem melhor as dificuldades que outras crianças sentem do que os próprios adultos, elas são muito mais capazes de fazer perguntas aos seus colegas. As crianças têm capacidades de ensino dentro de uma mesma classe ou grupo, para além de também aprenderem ao ensinar aos outros.

Muitas crianças aprendem efectivamente mais fora da escola do que dentro dela, aprendem mais com o grupo de amigos do que com os seus professores. Mas, a verdade, é que, fora da escola, as crianças podiam nunca encontrar aquilo que verdadeiramente necessitam de aprender ou alguém capaz de as ensinar.

Este filme representa a convivialidade de um grupo de amigos, em que predominam sentimentos de amizade, ajuda, defesa, mas também sentimentos cruéis como o ódio, a inveja que alguns elementos sentem por outros. Através desta interacção, os meninos adquirem por si próprios regras e normas de conduta social. A criança pode-se desenvolver melhor e mais livremente, longe da autoridade dos adultos, mas na companhia de outras crianças da sua idade. Neste grupo, pode e deve-se permitir a construção de “uma sociedade formada pelas crianças”, na qual estas possam fazer a aprendizagem da sua autonomia e de lhes ser reconhecido o direito de se governarem por si próprias. A criança deve ser posta em contacto com mais crianças, como é percepcionado no filme, de forma a usufruir da mais rica e livre vida social.

A escola representada no filme não é a escola que se deseja, ou seja, uma escola que se deve adaptar às crianças, ao seu ritmo, à sua autonomia e capacidade de auto-regulação, mas é sim uma escola em que são as crianças que se têm de adaptar às suas regras e costumes.

A educação é também realizada no filme pelo dono da “loja das Tentações”, que dá conselhos às crianças e as orienta do melhor caminho a seguir. No fim  do filme, o dono da loja deixa uma mensagem de paz que é indicativa  da conduta que as crianças devem seguir.

O filme retrata as brincadeiras das crianças na rua sob a vigilância da casa familiar, sob o olhar não apenas vigilante mas real, não apenas cuidadoso mas verdadeiro dos seus pais, familiares e vizinhos. Na escola, todos os meninos devem aprender a sentar-se, a ouvir em silêncio, a aguardar a sua vez na pergunta, na interrogação. Cada um de sua vez. Habituar à docilidade, à submissão e normalizar, isto é, anular diferenças, padronizar comportamentos, estabelecer regras para os gestos, os ritmos, as condutas, as posições.

O ensino é representado, no filme, de uma forma radicalmente diferente do que actualmente se aceita como desejável, ou seja, que na escola todos são iguais, todos podem à partida compreender e se alguém não acompanha há que o ajudar. Na escola, o erro é um direito.

 

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt