OS MITOS DA MATEMÁTICA

 

   Um mito não é necessariamente uma ilusão enganadora. Pelo contrário, tem um poder alegórico e metafórico que  permite chamar a atenção para aspectos inesperados, para relações subtis que, sem ele, ficariam ocultas.

    Os mitos mais gerais da Matemática são:

   1. Unidade: existe só uma Matemática, indivisível, agora e para sempre;

   2. Universalidade: a matemática é um conhecimento universalmente partilhável;

   3. Rigor: a Matemática é um modelo de demonstração rigoroso;

   4. Objectividade: a Matemática é verdadeira e a mesma para todos.  

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    No entanto, se aceitarmos ser menos formais, podemos ainda considerar um outro mito.  É o que Hersh (1997) nos convida a fazer:

    5. A Matemática não tem apenas "frente": afinal, ela tem "frente" e "costas".

   Consideremos a seguinte situação:

   Num restaurante, a sala de refeições é a "frente" e a cozinha as "costas". No teatro, a frente do palco é para a audiência e os bastidores para os actores. No palco, os actores usam trajos adequados e festivos e, atrás das cortinas, mudam de roupa ou usam um vestuário mais informal. Em todos os casos, na frente, o público é servido; atrás, os profissionais preparam-se para o servir. Na frente, o público é acolhido; atrás é excluído.

    Também a matemática tem a sua sala de refeições e a sua cozinha, o seu palco e os seus bastidores. Tradicionalmente, reconheceu-se só a "frente" da Matemática mas, é impossível entender a "frente" enquanto ignorar-mos as "costas".

    A "frente" e as "costas" da Matemática não estão localizadas fisicamente como a sala de refeições e a cozinha do restaurante ou como o palco e os bastidores. No entanto, também na matemática podemos distinguir "frente" e "costas", aspectos públicos e privados. A "frente" está virada para o exterior; as "costas" estão restritas ao lado de dentro.  A "frente" da matemática é a sua última forma - artigos, ensaios, memórias, livros de texto, revistas, jornais. As "costas" são o trabalho efectivo do matemático, silencioso e atento,  realizado nos gabinetes, nos escritórios ou nas mesas de um café.

    Todas as "frentes" são susceptíveis de hierarquias. Um restaurante pode incluir sala para banquetes, sala de jantar e snack bar. Os teatros têm camarotes, plateia, balcão, orquestra e varandas superiores. Do mesmo modo, o público matemático inclui profissionais, investigadores, professores, estudantes graduados e não graduados.  Também as "costas"  se subdividem. No restaurante, existem domínios para o cozinheiro principal, para o pasteleiro e para quem lava a loiça. Os matemáticos subdividem-se em teóricos, algebristas, topologistas, geómetras, analistas, etc.

    A "frente" da Matemática é formal, precisa, ordenada e abstracta. É constituída por axiomas, postulados, definições, teoremas e observações. Todas as questões têm uma resposta incontestada ou, caso contrário,  são rotuladas de "questões abertas". A Matemática das "costas" é fragmentada, informal, intuitiva, feita de tentativas e erros, de ensaios frustrados, de esboços inconclusos, de rascunhos decisivos. Se, à "frente", os matemático não hesitam, se apresentam resultados seguros, nas "costas",  dizem "talvez", "porque não" ou "é parecido com" (Cf. Hersh, 1997: 35-37)

 

O DILEMA FILOSÓFICO DA MATEMÁTICA

 

   Há quem afirme que o matemático é platonista durante a semana e formalista ao fim-de-semana. 

    Na verdade, o matemático, quando está a fazer matemática, está confrontado com uma realidade objectiva, cujas propriedades tenta determinar. Os seres matemáticos aparecem-lhe então como entidades autónomas, independentes e transcendentes, arquétipos do mundo das ideias de Platão cuja perfeição e beleza o matemático contempla e procura compreender. Mas depois, quando desafiado para fazer um balanço filosófico desta realidade, ele considera mais fácil fingir que não acredita nela. Então, a matemática aparece-lhe como uma disciplina rigorosa porque abstracta, exacta mas meramente formal.

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt