Nesta página procuramos explicar qual foi a missão de Sócrates, caracterizar o método socrático, o que era o demónio, aplicação do método à educação e limitações do método socrático.
Existe uma lenda que afirma que Sócrates começou a tornar-se naquilo que foi
ao aperceber-se que não era nada. Eis o que Sócrates conta no decurso do seu
processo:
« O seu amigo Querofonte, um dos intímos do pequeno grupo, tinha ido
consultar o oráculo de Delfos para saber se havia alguém mais sábio do
que Sócrates, ao que a Pítia respondera pela negativa. Vejamos o que significa
a resposta do Deus, interroga Sócrates. Qual será o seu significado oculto?
Tenho a consciência de que não sou nem muito nem pouco sábio. Que quererá
ele dizer quando afirma que sou o mais sábio? »
(
in Wolff, página 37)
Foi
desta perplexidade que nasceu simultaneamente a investigação e a missão de Sócrates.
A investigação anuncia-se assim:
« Foi procurar um desses homens que passam por sábios, certo de que
poderia pôr à prova o oráculo e dizer-lhe claramente em seguida: eis um homem
mais sábio do que eu e tu declaraste-me o mais sábio. Examinei, então
atentamente esse homem e, há medida que foi diálogando com ele, a impressão
com que fiquei foi que esse indivíduo parecia sábio para muita gente,
sobretudo para ele próprio, mas que de modo nenhum o era. Retirei-me pensando,
afinal sou um pouco mais sábio do que ele. Com efeito, é possível que nenhum
de nós saiba nada de importante; só que ele pensa que sabe, embora não saiba;
ao passo que eu, se nada sei, também não considero que sei. Em suma, parece-me
que sou um pouco mais sábio do que ele, quanto mais não seja pelo facto de não
considerar saber aquilo que não sei.»
A investigação continua, de desventura em desventura em relação ao saber dos
outros, para grande surpresa de Sócrates. É
neste ponto que Sócrates, concluindo a sua investigação, inicia a sua missão,
aproximando-se do antigo preceito «conhece-te a ti próprio». É desta tomada
de consciência que vão surgir um ensinamento, um método e uma atitude.
Sócrates queria que o homem
actuasse em função de valores, o que equivale a dizer que a
sua tarefa, a sua «missão», à qual, de resto, ele atribuía uma origem
divina, era
a de educador na Cidade. Pois ao longo de dezenas de anos, ele não
quis senão tornar os seus concidadãos melhores.
Sócrates adoptava sempre
pelo
diálogo,
costumava iniciar uma conversação fazendo perguntas e obtendo dessa forma
opiniões do interlocutor, que ele aparentemente aceitava. Depois, por meio de um
interrogatório hábil, desenvolvia as opiniões originais da pessoa arguida,
mostrando a tolice e os absurdos das opiniões superficiais e levando e
presumido possuidor da sabedoria a se desconcertar em face das consequências
contraditórias ou absurdas das suas opiniões originais e a confessar o seu
erro ou a sua incapacidade para alcançar uma conclusão satisfatória. Esta
primeira parte do método de Sócrates, destinada a levar o indivíduo à convicção
do erro, é a ironia.
Depois, continuando a sua argumentação e partindo da opinião primitiva do
interlocutor – desenvolvia a verdade completa. Sócrates deu a esta última
parte a designação de maiêutica
- a arte de fazer nascer as ideias. É este o método que encontramos amplamente
desenvolvido nos diálogos socráticos de Platão.
Diálogo
Sócrates
não viveu senão pelo diálogo, senão em e pelo contacto com o discípulo,
sentia que qualquer
obra escrita era incapaz de nos trazer aquilo que nos dá a
palavra e o diálogo, em que dois seres vivos comunicam no seio dessa verdade
que as suas presenças implicam. Pois é verdadeiramente na presença que o
homem se encontra e pode aprender a conhecer-se, na presença, ou mais
precisamente nesta compresença que o mestre e o discípulo descobrem
aprofundando a mensagem que, através da sua linguagem e pelo seu diálogo, se
apresenta pouco a pouco como uma
reminiscência de uma verdade original no interior do qual eles se encontram os
dois. Sócrates dialogava com quem o quisesse ouvir, principalmente onde se concentravam um maior número de pessoas, como era o caso da Ágora.
Ironia
«O filósofo ironiza», dizia Sócrates; quase todos os
diálogos de Platão reflectem em algumas passagem esta ironia que, para Sócrates,
acompanhava toda a reflexão séria, a tal ponto que imensas discussões filosóficas
se nos apresentam como verdadeiras
cenas de comédia.
« A ironia de Sócrates [...] não visa desqualificar o
outro, mas ajudá-lo. Ela quer libertá-lo e abri-lo à verdade[...]. A sua
ironia procura criar um mal-estar e uma tensão no centro do homem, para que aí
proceda o movimento esperado, no próprio interlocutor, se este não puder ser
socorrido, no auditor.»
A ironia de Sócrates consistia em apanhar o homem sério
na sua própria armadilha, mostrando-lhe que essa seriedade repousa na ignorância
que se ignora. Como diz Bergson:
«A ironia que ele passeia com ele é destinada a afastar
as opiniões que não sofreram a prova da reflexão e a envergonhá-las, por
assim dizer, pondo-as em contradição consigo mesmas.»
É por isso que o procedimento de Sócrates era frequentemente o seguinte: O diálogo que começava pela procura de uma definição,
o verdadeiro, o justo, o belo, a piedade, um interlocutor seguro de si que dava
imediatamente uma definição. Sócrates ficava maravilhado, aceitava a definição
do interlocutor que se impertigava, e tirava dela, com o seu consentimento, deduções
cada vez mais precisas. O interlocutor não deixava de seguir Sócrates e de o
aprovar, extremamente satisfeito por ver que a sua definição
ainda era mais rica do que ele próprio tinha julgado. Depois,
subitamente, Sócrates estacava e mostrava que o ponto de chegada estava em contradição
formal com o ponto de partida. Se o interlocutor estivesse de boa fé ele concluía daí
que a definição de nada valia e que era necessário propor uma outra. Sócrates
retomava então a discussão e passava ao crivo
as definições sucessivas que lhe propunham. Muitas vezes o diálogo concluia-se
e Sócrates deixava o seu interlocutor confundido dizendo-lhe que talvez numa
outra altura pudessem examinar de novo o problema. Mas podia acontecer que o
interlocutor estivesse de má-fé e que então se recusásse a participar na
conversa e a admitir a sua ignorância. Se a pessoa se entregava ao orgulho ferido, tornava-se um inimigo
feroz, e foi esta a razão que lhe custou a vida.
Em suma, a ironia socrática reconduzia as pseudocertezas às justas
proporções e, denunciava as suas pretensões usurpadoras, apanhava o
interlocutor nas suas próprias redes. A ironia opunha-se a tudo o que desse conta
da existência em termos de conceitos e de sistemas fechados, a tudo que
pretendesse congelar a existência encerrando-a nos limites muito estreitos do
pensamento objectivo: ela denunciava a impotência dos falsos poderes.
Maiêutica
Sendo filho de uma parteira, Sócrates costumava comparar a sua actividade
com a de trazer ao mundo a verdade que há dentro de cada um.
« Ora, a minha arte de maiêutico é em tudo semelhante à das
parteiras mas difere nisto, em que a ajuda a fazer dar à luz homens e não
mulheres e provê às almas geradoras e não aos corpos. E não só, pois o
significado maior desta minha arte é que consigo, mediante ela, distinguir, com
maior segurança, se a mente do jovem dá à luz quimeras e mentiras, ou coisas
vitais e verdadeiras. E tenho em comum com as parteiras precisamente isto: também
sou estéril, estéril em sabedoria; e a censura que já muitos me fizeram de
que eu interrogo os outros, mas nunca manifesto o meu pensamento acerca de nada,
é uma censura muito verdadeira.[...] Por conseguinte, eu próprio não sou de
modo nenhum sábio nem se gerou em mim qualquer descoberta que seja fruto da
minha alma.»
O universalismo
socrático não era a negação do valor dos indivíduos, era o
reconhecimento de que o valor do indivíduo só pode ser compreendido e
realizado nas relações entre os indivíduos. Mas a relação entre os indivíduos,
se é tal que garanta a cada um a liberdade da pesquisa de si próprios, é uma
relação fundada na virtude e na justiça. E é aqui, portanto, o interesse de
Sócrates, na medida em que se entende promover em cada homem a investigação
de próprio, se volta naturalmente
para o problema da virtude e da justiça.
A maiêutica mais não era, na realidade, que a arte da pesquisa
em comum. O homem não podia ver claro por si só. A investigação de que se
ocupa não pode começar e acabar no recinto fechado da sua individualidade,
pelo contrário, só pode ser fruto de um dialogar contínuo com os outros, como
consigo mesmo. O método socrático tinha como característica levar cada indivíduo a
reflectir acerca dos seus deveres. Sócrates começava por chamar a atenção de cada um para os seus interesses
pessoais, interesses domésticos ou pessoais, educação dos filhos,
problemas da vida da cidade, questões relativas ao saber. Levava em seguida os
seus interlocutores quaisquer que eles fossem, a extrair do caso
particular o pensamento universal. Começando por suscitar a desconfiança em relação
aos preconceitos que cada um aceitou sem exame prévio, conseguia convencer o seu
interlocutor a procurar em si próprio o que era.
Conduzia-lo assim, por um lado, a extrair o universal do caso concreto e a
expor plenamente à luz aquilo que se esconde em qualquer consciência; e, por
outro lado, obriga-o a destruir as generalidades aceites de imediato pela consciência.
Não
tendo conseguido formular uma filosofia de maneira sistemática, o processo
principal de Sócrates consistia em interrogar, em ajudar cada um a tomar consciência
dos seus próprios pensamentos, ou melhor, em despertar dentro de cada indivíduo
a consciência do universal, a qual existe no foro íntimo de todos como essência
imediata. Tal como escreveu Hegel, Sócrates opõe à interioridade acidental e
particular a universal e verdadeira interioridade
do pensamento.
O templo de Delfos trazia inscritas no seu frontispício
diferentes fórmulas de sabedoria entre as quais a célebre: «Conhece-te a ti
próprio», de que Sócrates fez a trave mestre do seu pensamento. Este conselho
de Deus foi para Sócrates simultaneamente uma arma de combate contra os
sofistas, e uma mensagem ao aprofundamento da qual ele convidou os seus discípulos
a consagrarem-se. Como podemos constatar no seguinte excerto: «
Sócrates – Agora, qual será a arte pela qual
poderíamos - nos preocupar connosco? Alcibíades
– Isto eu ignoro. Sócrates
– Em todo caso, estamos de acordo num ponto: não é pela arte que nos
melhorar algo que nos pertence, mas pela que faculte uma melhoria em nós
mesmos. Alcibíades
– Tens razão. Sócrates
– Por outro
lado, acaso poderíamos reconhecer a arte que aperfeiçoa
os calçados, se não soubéssemos em que consiste o calçado? Alcibíades
– Impossível. Sócrates
– Ou a arte
que melhora os anéis, se não soubéssemos o que é um anel? Alcibíades
– De facto, não! Sócrates
– Então, por ventura podemos conhecer a arte de nos tornarmos
melhores, sem saber o que somos? Alcibíades
– Não, isto não é possível. Sócrates
– Entretanto,
será fácil conhecer-se a si mesmo? E teria sido um homem ordinário aquele que
colocou este preceito no templo de Pytho? Ou trata-se pelo contrário de uma
tarefa ingrata que não está ao alcance de todos? Alcibíades
– Quanto a mim, Sócrates, julguei muitas vezes que estivéssemos ao alcance
de todos, mas algumas vezes também que ela é muito difícil. Sócrates
– Que seja fácil
ou não, Alcibíades estamos sempre em presença do facto seguinte: Somente
conhecendo-nos é que podemos preocupar connosco, sem isto não podemos. Alcibíades
– É muito
justo. »
Concluímos que os
ensinamentos de Sócrates tinham dois propósitos. O primeiro era de demonstrar
que o conhecimento era a base de toda a acção virtuosa; o segundo, indicar o
conhecimento devia ser desenvolvido pelo próprio indivíduo, de sua própria
existência, por meio do método dialéctico.
Sócrates costumava dizer que um «demónio»
interior, que qualquer coisa de divino, lhe prodigalizava advertências nas
circunstâncias difíceis da sua vida. É assim que, na Apologia, Sócrates disse aos seus
juízes,
“ Vós tendes frequentemente e em todo o lado ouvido dizer
que um signo divino e demoníaco se manifesta em mim, aquilo que Meleto fez escárnio
um dos seus objectivos principais de acusação. Isso começou desde a minha infância;
é uma especíe de voz que, quando se faz ouvir, me desvia sempre do que me
proponho fazer, mas nunca me incita a isso. É ela que se opõe a que eu me
ocupe da política, e creio que é de uma extrema felicidade para mim que ela me
desvie disso.” O demónio era o bem que ligava Sócrates ao divino, mas ele detinha-no mais do que o incitava, mais do que conselhos positivos ele formulava interdições, deixando por conseguinte a Sócrates toda a liberdade e toda a responsabilidade para descobrir por si próprio a via a seguir. Como observa G. Bastide o estudo dos textos conduz a três constatações essenciais: Primeiro que tudo, Sócrates explica a sua conduta por recurso a um deus interior, a uma advertência íntima, a uma voz demoníaca que nunca o abandona. Em seguida, com uma ou duas excepções talvez esta voz interior toma a forma proibitiva, quando se trata de desviar Sócrates deste ou aquele acto ou deste ou aquele compromisso preciso. Enfim o deus é uma força imperiosa que determina de uma forma total a vocação espiritual de Sócrates. Assim pode-se dizer que ele é simultaneamente um inspirado e um espírito crítico.
Segundo Sócrates, ele nada ensinava, apenas ajudava as pessoas a
tirarem de si mesmas opiniões próprias e limpas de falsos valores, pois o
verdadeiro conhecimento tem de vir de dentro, de acordo com a consciência. Até mesmo na actividade de aprender uma
disciplina qualquer, o professor nada mais pode fazer que orientar e esclarecer
dúvidas, como o lapidador tira o excesso de entulho do diamante, não fazendo o
próprio diamante. O processo de aprender é um processo interno, e tanto mais
eficaz quanto maior for o interesse
de aprender. Só o conhecimento que vem de dentro é capaz de revelar o
verdadeiro discernimento.
A influência imediata do ensino de Sócrates sobre a
educação foi dupla. Em relação ‘ao conteúdo’ constitui uma exaltação,
sem precedentes, do conhecimento. Isto coincidiu com idêntica influência dos
sofistas, que proclamam dar conhecimento exigido pelas novas condições da época.
Mas, justamente porque o conhecimento, para Sócrates, continha uma inevitável
projecção moral, encerrava, também uma concepção muito mais ampla do que o
conhecimento dos filósofos primitivos, do que a informação dos sofistas é
mesmo do que a concepção moderna do conhecimento. Tal distinção, porém,
era dificilmente percebida pelo povo em geral.
Para ambos, Sócrates e Platão, pouco progresso mental se
obtinha do simples facto de ministrar conhecimentos. Aos métodos populares dos
sofistas, que almejavam disseminar informações por meio de prestações
formais, estes dois filósofos opuseram o método dialéctico ou de conversação.
O objectivo desse método era gerar o poder de pensar. O seu alvo era
formar espíritos capazes de tirar conclusões correctas, de formular a verdade
por si mesmos, em vez de dar-lhes conclusões já elaboradas.
As contribuições permanentes e imediatas de Sócrates
para a educação são estas:
Este método é adequado, quando se aplica à formulação
de verdades éticas. Ele ajuda a determinar que um acto é justo, que uma
conduta é recta, que é honroso, etc., já que a respeito de tudo isso, todos os
indivíduos têm experiência concreta. As limitações do método surgem quando
aplicado a matérias como a ciência, a história e a literatura, em que o conteúdo
não é dado pela experiência do indivíduo, mas é social. O método socrático
pode definir, classificar, interpretar cientificamente, mas não pode dar conteúdo.
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Olga Pombo: opombo@fc.ul.pt
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