A MÚSICA E O ACASO

 

    Há mais de trezentos anos, quando jogadores e matemáticos se debatiam com problemas peculiares de jogos de dados, nasceu a teoria do acaso.

    Muito simplificadamente, o "acaso"  na matemática contemporânea é caracterizado pelas seguintes propriedades:

twinkle5.gif (1918 bytes) Suponhamos que são feitas extracções de uma caixa preta em que se conhecem os resultados. Esses resultados fazem parte de um conjunto que se designa por U.

 

twinkle5.gif (1918 bytes) Não se sabe qual será o resultado da experiência seguinte. É necessário que esta regra também se aplique após uma experiência de duração arbitrária. Aqui, o futuro não tem informação acerca do passado. Se, por exemplo, foram registrados 1000 resultados mas, por qualquer motivo, se perdeu um dos resultados, não há possibilidade de o reconstituir a partir dos outros 999.

 

twinkle5.gif (1918 bytes) A qualquer subconjunto E de U, está associado um número P(E) que pode variar entre zero e um tal que, de um elevado número de tiragens, a fracção daquelas cujo resultado pertence a E será muito aproximada de P(E). Isto significa que, com o tempo, surgem algumas regularidades.

 

chickee.gif (2797 bytes)

    Para ilustrar a noção abstracta de acaso, tomemos como exemplo uma moeda de duas faces, cara e coroa, representadas por 1 e 2 respectivamente. Neste caso, "experiência" significa atirar uma moeda ao ar e registrar  a face voltada para cima  (cara ou coroa). Naturalmente,  U é o conjunto dos números 1 e 2. A segunda propriedade significa que nunca se sabe que face surge no próximo lance, independentemente do número de lançamentos já realizados. Contudo, no caso de uma moeda equilibrada, tanto 1 como 2 (cara e coroa) irão ocorrer aproximadamente com a mesma frequência: em 10000 lançamentos, aparecerão aproximadamente cerca de 5000 caras e  5000 coroas.

 

chickee.gif (2797 bytes)

 

     Existem duas atitudes relativamente ao lugar do acaso na composição musical clássica.

bulletNa primeira, o compositor utiliza a sua intuição musical para escolher a forma da peça que vai criar, como se fosse algo que só ele pudesse compreender. Desta maneira, o compositor recusa o acaso e constrói o seu próprio caminho no quadro da  estrutura musical do seu tempo.
bulletQuanto à segunda, a atitude do compositor nos momentos em que tem que tomar decisões pode ser comparada  aos resultados produzidos por um gerador aleatório. Contudo, nem todas as decisões tomadas ao acaso são aceites pelo compositor. Muitas vezes, o "gerador interno" do compositor tem que trabalhar repetidamente até que o resultado seja aceitável. Um exemplo de procedimento comum da "música aleatória" consiste em introduzir o factor acaso para determinar  a ordem das várias partes de uma peça musical por meio de lançamento de dados.

     Actualmente, a teoria das probabilidades é considerada um ramo muito rico da matemática, com imensa utilidade na maior parte das ciências. A propriedade de Markov é um caso particular da probabilidade que tem um papel importante nas aplicações musicais. Antes desta propriedade, para obter uma sequência de números aleatórios, fixava-se uma lei de probabilidade e o computador gerava os números conforme essa lei fixa. A novidade que surge com o método de Markov é que a lei pode ser alterada de acordo com o resultado anterior. Por exemplo, suponhamos que temos dois dados viciados (dado 1 e dado 2), e suponhamos também que é necessário satisfazer duas regras: a primeira, obriga-nos a começar pelo dado 1; a segunda, impõe-nos que, se sair um dado com número ímpar,  o lançamento seguinte terá de ser feito com o dado 1.  Caso contrário, se sair um número par, teremos de continuar com o dado 2. Através deste exemplo, obteríamos uma estrutura musical visivelmente mais complexa.

    Uma das vantagens da aplicação das técnicas de Markov, é ser possível criar música que poderia ter sido escrita por um compositor que tivesse vivido séculos atrás. Ao analisar, através de um computador, as frequências das notas de um grande número de composições típicas de uma época é possível "compor" melodias sujeitas às probabilidades de Markov.

***

   Apresentamos de seguida alguns exemplos de música probabilística na obra de Xenakis oferecidos pelo Prof. Ehrhardt Behrends da Freie Universitaet de Berlim  (1999: 19-22 ):

 

EXEMPLOS DE MÚSICA PROBABILÍSTICA NA OBRA DE IXENAKIS

    Iannis Xenakis nasceu na Grécia em 1922. Foi membro da resistência na segunda guerra mundial. Presentemente vive em Paris onde, desde 1966, é director do CEMAMU (Centre d’ Études de Mathématiques et Automatique Musicales).

    Talvez tenha sido Xenakis quem mais usou as ideias matemáticas de estrutura e de acaso nas suas composições. Seguem-se alguns exemplos:

Geração do som

    Xenakis não foi o primeiro a criar novos sons através de um elaborado equipamento electrónico. Contudo, o método usual era recorrer à síntese de Fourier que consistia em sobrepor ondas sinusoidais de diferentes  frequências. Um outro método, também bastante divulgado, consistia em  recorrer ao uso de filtros capazes de modificar sons "interessantes" (que também podiam ser um ruído qualquer)  através de dispositivos electrónicos.

    Xenakis inventou um outro processo de criação de som. O ponto de partida é a própria onda transformada em algo que pode ser ouvido recorrendo a dispositivos analógico-digitais. Há essencialmente duas possibilidades de criar uma onda. Ou a sua forma é desenhada directamente numa mesa especial - uma invenção do CEMAMU que se chama UPIC - ou é definida gerando uma versão por amostragem (50000 amostras por segundo) com um computador que usa probabilidades pré-fixadas. Os sons são geralmente muito interessantes. Em função da lei de probabilidades subjacente, podem assemelhar-se a um barulho ou a um som bem conhecido. Por vezes, estas curvas também servem para enquadrar composições para vocalistas e para solistas.

 

Transformações regulares em agregados

    Foi este o primeiro método estocástico aplicado por Xenakis, em 1953, por ocasião da criação de Metastasis ( designação da sua contribuição para o festival de Donaueschingen com a qual se tornou um compositor famoso). O problema era transformar agregados constituídos por muitas formas diferentes. Se isso for feito imediatamente, o resultado é um som muito áspero. Pelo contrário, Xenakis usou um gerador aleatório para transformar nota a nota.

      Uma ideia vaga do tipo "as cordas tocam um pizzicato usando a parte superior do Dó Maior", foi introduzida numa partitura concreta através de uma simulação em computador sujeita a probabilidades pré-fixadas. Segundo as palavras do próprio Xenakis:

"Isto, penso eu, foi a minha contribuição mais importante para a música contemporânea: deduzir montanhas de sons, criados como nuvens pelo uso de probabilidades:"

 

    A música estocástica é, por vezes, combinada com aspectos estruturais. Por exemplo, em Herma, 1962,  as notas são primeiro repartidas num número finito de subconjuntos. A partir destes constroem-se novos conjuntos por meio de certas operações teóricas, tais como intersecções, uniões e  complementos. Por fim, as notas de tais subconjuntos são ordenadas aleatoriamente por simulação em computador.

    Convém fazer duas observações. Primeiro, é claro que uma ideia estocástica qualquer pode dar origem a muitas composições completamente diferentes. O produto dependerá do resultado concreto do processo aleatório. Segundo,  é importante notar que não está garantido que uma simulação particular conduza a um resultado satisfatório. Como Xenakis acentua, a decisão final pertencerá sempre ao ouvido do compositor.

wpe23.gif (30211 bytes)

Metastasis

 

Composições com dados

    Existe aqui uma mistura de estrutura e acaso. Imagine-se um dado no espaço e associe-se a qualquer dos seus vértices um evento musical. Figure-se agora um segundo dado onde os vértices estão ligados a possibilidades de execução musical (determinados instrumentos, maneiras de tocar, etc). A ideia musical consiste em lançar  o segundo dado ao acaso e fazê-lo coincidir com o primeiro dado, surgindo assim oito decisões musicais. O aspecto mais interessante é a intervenção de grupos - o grupo de transformação de similaridade dum dado - aspecto que tem larga tradição na música. Para dar um exemplo lembremos que reflectir uma melodia ou executá-la em ordem inversa são exemplos particulares de aplicação de um grupo simples constituído por quatro elementos. O grupo de dados de Xenakis tem 24 elementos."

wpe2A.gif (89094 bytes)

Grupo do dado

 

AG00108_2.gif (1629 bytes)AG00112_.gif (1861 bytes)AG00051_.gif (1652 bytes)