A Correspondência Espontânea e a Determinação do

Valor Cardinal dos Conjuntos


"Convém (...) analisar o mecanismo da própria correspondência, considerada não mais nos seus resultados mas no seu desenvolvimento espontâneo, ou seja, em situações nas quais a criança é obrigada a inventar por si só a correspondência e utilizá-la sob a forma que lhe convém. O que se trata portanto de apreender é um esforço livre da criança para avaliar o valor cardinal de uma colecção qualquer, esforço tal que se possa constatar, por um lado, quais são os tipos de correspondência empregues, e, por outro, quais os métodos que precedem a correspondência termo a termo ou a sucedem imediatamente." 
                                                                                   
(Piaget, 1971, p.99)


"O problema é: "Aqui temos uma certa quantidade de objectos: apanha deles outro tanto" (sem que a questão implique o método da correspondência). Noutras palavras, enquanto que os problemas anteriores impunham a correspondência, para só analisar os seus resultados, a questão que vamos estudar agora é um simples problema de avaliação ou de medida da quantidade (do valor cardinal de uma colecção), problema que não impõe nenhum método , mas que serve precisamente para ver que procedimento escolherá a criança." 
                                                                                     
(Piaget, 1971, p.100)


Há autores que "(...) estudam o que se acordou chamar de percepção do número, isto é, a aplicação dos esquemas numéricos já elaborados aos objectos isolados percebidos num mesmo campo, nós estudamos, ao contrário o que se poderia designar pela expressão operações numerantes ou quantificantes, isto é, as operações elementares de correspondência, de igualização etc., que constituem a própria lógica do número. Em resumo, desprezamos os problemas da percepção para nos consagrarmos ao da génese das operações como tais." 
                                                                                        
(Piaget, 1971, p.102)



Primeira fase: Comparação Qualitativa Global

  • "(...) a criança limita-se a uma comparação global que imita, sem tentativa de quantificação exacta, a forma de conjunto da figura-modelo; no caso das fileiras lineares, a criança reproduz uma fileira do mesmo comprimento, mas de densidade diferente." (Piaget, 1971, p.101).

  • "O próprio das crianças (...) é ainda não experimentar a necessidade de uma avaliação quantitativa, por falta de noções precisas do mundo cardinal, e limitar-se, a quantificar as colecções dadas, a comparações qualitativas (em +, em -, ou em =), mas globais e de tal modo que as qualidades comparadas sejam consideradas a título exclusivo, sem coordenação entre si." (Piaget, 1971, p.102).

  • "No que concerne às fileiras (...), os sujeitos (...) esforçam-se igualmente para fornecer a forma de conjunto bem como as dimensões do modelo, mas não se preocupam tampouco com os pormenores dos elementos (...). Quanto às figuras fechadas, as crianças (...) conseguem reproduzir correctamente aquelas cuja forma de conjunto supõe um número determinado de elementos, quando esta forma é bem conhecida da criança (...), mas quando ela não o é (...) ou quando não implica um número determinado de elementos (...), então a cópia não é mais exacta do ponto de vista numérico." (Piaget, 1971, pp.102,103).

Segunda fase: Correspondência Qualitativa de Ordem Intuitiva

  • "(...) as relações de comprimento total e de densidade são consideradas simultaneamente pela criança, pois a fileira-cópia é ao mesmo tempo do mesmo comprimento que a fileira-modelo e de densidade igual (...) unicamente, essa coordenação nascente não ultrapassa o plano da percepção, isto é, assim que se altera a figura perceptiva que permitiu estabelecer a correspondência, não apenas esta última se desvanece (...) mas também toda a coordenação entre o comprimento e a densidade desaparece do mesmo modo." (Piaget, 1971, p.120,121).

  • "(...) o valor atribuído pela criança à operação de colocação em correspondência precede a certeza inerente à numeração falada. Existe, portanto, uma fase própria à correspondência operatória, com sentimento da equivalência (qualitativa e numérica) das colecções correspondentes e com conservação das quantidades. Esta fase vem assim intercalar-se entre a simples correspondência intuitiva e a correspondência entre os objectos e as cifras verbais, ou numeração falada." (Piaget, 1971, p.111).

Terceira fase: Correspondência Operatória (qualitativa e numérica)

  • "(...) a correspondência se liberta da figura intuitiva e vê-se aparecer operações espontâneas de controle, por dissociações das totalidades e colocações em série. A correspondência torna-se assim operatória, seja analítica, seja numericamente." (Piaget, 1971, p.110).

  • " A criança, portanto, chega a dar-se conta, ao mesmo tempo, das relações de comprimento e densidade, não mais somente no caso em que as fileiras a comparar são semelhantes, mas também (...) nos casos em que as fileiras diferem pelo comprimento e a densidade simultaneamente. (...) pode-se então dizer que a terceira fase assinala a conclusão da multiplicação qualitativa dessas duas relações." (Piaget, 1971, p.123,124).

 


"O que melhor define (...) a primeira fase, ou o ponto de partida desta evolução, é pois uma irreversibilidade ainda quase completa do pensamento. Sem dúvida, as relações qualitativas globais estabelecidas pela criança, tais como "mais longo" etc., são susceptíveis de engendrar, cada uma delas, uma relação inversa, tal como "menos longo" etc. Mas, como essas relações não são decomponíveis em unidades qualitativas ou numéricas, nem coordenadas entre si, mas simplesmente aglomeradas num todo não-estruturado, elas não podem ainda constituir um sistema reversível, donde a predominância da intuição perceptível sobre as operações, pois não existem ainda operações possíveis." 
                                                                                          
(Piaget, 1971, p.130)


Pode dizer-se que a segunda fase é semi-operatória 

"(...) pois, no plano prático ou da experiência perceptiva, chega já a realizar a correspondência qualitativa, o que supõe uma coordenação intuitiva das relações do jogo. Ora, é muito instrutivo observar que este carácter semi-operatório se faz acompanhar precisamente por um processo na reversibilidade do pensamento, com a reversibilidade sendo a expressão psicológica da operação: com efeito, se as crianças deste nível não acreditam ainda que uma figura transformada corresponda e seja equivalente, quanto ao número dos elementos, à sua forma inicial, admitem não obstante que se pode redescobrir essa forma inicial a partir da forma alterada. (...) Mas é claro que esta reversibilidade permanece incompleta, pois as relações em jogo não podem mais se compor no caso de alteração das figuras e a constância não se acha ainda construída. As relações, portanto, não constituem sempre um sistema reversível de conjunto, o que equivale de novo a dizer que as operações acham-se mal separadas da própria intuição."
                                                                                         
(Piaget, 1971, p.132)

Na terceira fase, 

"(...) a correspondência conduz à equivalência durável e necessária, isto é, à noção de que as colecções correspondentes permanecem equivalentes independentemente de sua configuração ou da disposição dos elementos. notemos primeiramente que esse progresso se realiza de uma maneira muito contínua, por uma liberação progressiva da figura ou da intuição perceptiva. Com efeito, basta que a correspondência qualitativa, ou correspondência das partes respectivas de duas figuras, se liberte, por pouco que seja, de sua forma precisa, para que os elementos em jogo se tornem unidades intercambiáveis e que a correspondência adquira assim um carácter "qualquer" ou numérico."
                                                                                          
(Piaget, 1971, p.133)

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt