MATEMÁTICA:

INTUIÇÃO OU LÓGICA?

 

    Retomando Pascal, Poincaré considerava impossível estudar as obras de grandes matemáticos sem estabelecer a distinção entre duas tendências psicologicas contrárias, ou seja, dois "estilos de espírito" completamente diferentes. Alguns radicam essencialmente na lógica. Quando lemos as suas obras somos tentados a acreditar que só progredem passo a passo, sem nada deixarem ao acaso. Pelo contrário, outros há que, por se deixarem conduzir pela intuição, fazem logo à partida conquistas rápidas, embora algumas vezes precárias.

    Segundo Poincaré, a escolha de um ou outro método não é imposta pelo tema que tratam. Se dos primeiros dizemos que são analistas e se aos outros chamamos geómetras, isto não impede que aqueles permaneçam analistas mesmo quando trabalham em geometria, enquanto que os outros não deixam de ser geómetras pelo facto da área de que se ocupam ser a análise pura. Também não é a educação que desenvolve neles uma das duas tendências e atrofia a outra. Segundo o autor, é a própria natureza do espírito que os faz lógicos ou intuitivos.  Como Poincaré escreve, assim como "nascemos matemáticos, isto é, não nos tornamos matemáticos" (Poincaré, 1970:27), também se nasce geómetra ou analista.

    De acordo com Poincaré, também nos estudantes são perceptíveis as mesmas  diferenças: uns preferem resolver os problemas analiticamente ao passo que outros o preferem fazer geometricamente. Dos primeiros, o autor diria que são incapazes de "ver no espaço"; relativamente aos segundos por certo depressa se aborreceriam com cálculos longos.

    Para Poincaré, estas duas "espécies de espíritos" são igualmente necessárias ao progresso da ciência. Tanto os lógicos como os intuitivos realizaram feitos que os outros não teriam conseguido realizar. Quem ousaria dizer que teria sido melhor que Weierstrass (matemático analítico que viveu entre 1815 e 1897) nada tivesse escrito ou que Riemann (matemático intuitivo que viveu entre 1826 e 1866) não tivesse existido? A análise e a síntese têm ambas o seu legítimo papel na criação matemática.

    No sentido de clarificar o papel de cada uma delas, Poincaré começa por afirmar que não é possível obter rigor, nem mesmo certeza, com a intuição. Cada vez  temos vindo a perceber que o rigor não poderia ser introduzido nos raciocínios sem, em primeiro lugar, entrar nas definições. Ora, durante muito tempo os objectos que os matemáticos estudavam estavam, na sua maior parte, mal definidos. Pensavamos conhecê-los porque os conseguiamos representar com o auxílio dos sentidos e da imaginação. No entanto, a imagem que deles se tinha era grosseira, não uma ideia precisa sobre a qual o raciocínio pudesse incidir. Foi nesse sentido que os "espíritos lógicos" tiveram de dirigir, em primeiro lugar, os seus esforços.

    Posto isto, para este eminente matemático, coloca-se ainda, e, em nosso entender, de forma muitíssimo pertinente, a seguinte questão: terá esta evolução terminado?. Isto é, teremos atingido, enfim, o rigor absoluto? Os nossos antepassados, em cada estádio do seu conhecimento, acreditaram também tê-lo alcançado. Se eles se enganaram, não nos enganaremos nós, tal como eles?

    Poincaré discute magistralmente esta questão. Na sua obra La Valeur de la Science, dá razão aos filósofos quando afirma que "a lógica pura nos conduz sempre, e apenas, a tautologias; nada de novo poderá ser criado exclusivamente a partir dela; ciência alguma pode nascer apenas da lógica." (Poincaré, 1970:32)

    Neste sentido apresenta a seguinte tese: "para produzir aritmética, tal como para produzir geometria, é necessário algo mais que lógica pura. E não temos outro termo para designar este algo senão intuição." (Poincaré, 1970:32)

    A lógica só por si não basta. A ciência da demonstração não é toda a ciência. A intuição tem que conceder o seu papel de complemento, contrapeso ou antídoto da lógica. A este respeito, é interessante sublinhar que Poincaré defendeu, em várias ocasiões, que a intuição deve ter um lugar preponderante no ensino das matemáticas. Sem ela, os espíritos ainda jovens não teriam meios de aceder ao entendimento da matemática; não aprenderiam a gostar dela e vê-la-iam apenas como uma vã logomaquia. Além disso, sem a intuição nunca viriam a ser capazes de aplicar a matemática.

     Contudo, se a intuição é útil ao estudante, é-o, no entender de Poincaré, ainda mais ao sábio criador. Na verdade, a lógica permite decompor cada demonstração num número muito grande de operações elementares. Mas, depois de examinarmos e constatarmos a correcção de cada uma dessas operações, teremos por isso compreendido o verdadeiro sentido da demonstração? E, tê-lo-emos compreendido quando, com grande esforço de memória, formos capazes de repetir a dita demonstração, reproduzindo todas as operações elementares pela mesma ordem com  que o seu inventor as ordenara?

    Poincaré responde sabiamente que não. Em sua opinião, a análise pura coloca à nossa disposição uma grande quantidade de procedimentos cuja infalibilidade nos garante. Abre-nos mil caminhos diferentes em que podemos estar certos de não encontrar obstáculos. No entanto, de todos esses caminhos, qual será aquele que mais rapidamente nos conduzirá ao fim pretendido? Quem nos dirá qual deles escolher? Precisamos de uma faculdade que tal como a que é necessária ao explorador para escolher a sua rota, nos faça ver à distância esse fim. Essa faculdade é a intuição.

    Assim, o matemático conclui que a lógica e a intuição têm, cada uma delas, o seu papel. "Ambas se revelam indispensáveis. A lógica, que é a única que nos pode fornecer a certeza, é o instrumento da demonstração; a intuição é o instrumento da invenção." (Poincaré, 1970:37)

 

 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt