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Demonstração do quinto Postulado de Euclides por Proclus
Proclus Diadochus nasceu em Constantinopla por volta do ano 410. Terá ido aprender filosofia para Alexandria e, como esse ensino não o satisfez, foi para Atenas, estudar com Plutarco na Academia de Platão. Mais tarde, terá chegado a director da Academia, cargo que manteve até morrer, no ano 485. O seu “Comentário ao primeiro livro dos Elementos de Euclides” é a principal fonte de conhecimentos sobre a história antiga da geometria grega.
Proclus é aí bastante claro ao referir que o quinto postulado de Euclides é um teorema e que pode ser demonstrado a partir dos restantes quatro postulados.
Após transcrever o quinto postulado, Proclus escreve:
“Este [o quinto postulado] deve ser retirado do conjunto dos postulados. Pois é um teorema – teorema este que coloca muitas questões que Ptolomeu se propôs resolver num dos seus livros - e requer, para a sua demonstração, várias definições assim como teoremas. E a sua recíproca é provada pelo próprio Euclides como um teorema. Mas talvez algumas pessoas pensem erradamente que esta proposição merece ser classificada entre os postulados com base em os ângulos serem menores que dois ângulos rectos fazer-nos de imediato acreditar na convergência e intersecção das linhas rectas. A tais pessoas, Geminus deu resposta apropriada quando disse que aprendemos dos próprios fundadores desta ciência a não prestar atenção a imaginações plausíveis na determinação das proposições a serem aceites na geometria. Aristóteles, do mesmo modo, diz que aceitar raciocínios prováveis de um geómetra é como exigir provas de um retórico. E Simmias é levado por Platão a dizer “Estou ciente que aqueles que fazem demonstrações a partir de probabilidades são impostores.” Logo aqui, apesar de a afirmação que linhas rectas convergem quando os ângulos rectos estão diminuídos ser verdadeira e necessária, no entanto a conclusão de que, por elas convergirem mais quando são prolongadas para mais longe, elas se irão encontrar a certa altura, é plausível, mas não necessária, na ausência de um argumento provando que isto é verdade para linhas rectas. Que há linhas que se aproximam indefinidamente mas nunca se encontram parece ser implausível e paradoxal. No entanto, é apesar disso verdade e foi verificado para outras espécies de linhas. Não poderá isto, então, ser possível para linhas rectas como essas? Até termos demonstrado firmemente que elas se encontram, o que é dito acerca de outras linhas despoja a nossa imaginação da sua plausibilidade. E apesar de os argumentos contra a intersecção destas linhas poderem conter muito que nos surpreenda, não deveríamos nós recusar-nos a admitir na nossa tradição este apelo sem razão à probabilidade? Estas considerações tornam claro que devemos procurar uma demonstração do teorema com que nos deparamos e que lhe falta o carácter especial de um postulado” (Proclus, séc V, 191.21-193.3) |
Nesta passagem é visível a profunda crença de que o quinto postulado de Euclides é demonstrável. Para Proclus, ele pode ser provado racionalmente, não existindo por isso razão para o considerar como postulado, pois a verificação do quinto postulado não se deve a um facto de probabilidade (no sentido em que intuitivamente se vê que as rectas se aproximarão cada vez mais e portanto provavelmente se encontrarão).
Proclus regressa à problemática do quinto postulado quando chega à proposição 29 que refere ser a primeira em cuja demonstração Euclides utiliza o quinto postulado. Escreve então:
“Como eu disse na parte da minha exposição que precede os teoremas, nem todos admitem que esta proposição geralmente aceite seja indemonstrável. Como poderia isso ser quando a sua recíproca é registada entre os teoremas como algo demonstrável? Pois o teorema que, em todo o triângulo, quaisquer dois ângulos internos são menores que dois ângulos rectos é a recíproca deste postulado. Visto também o facto que duas linhas rectas, quando prolongadas, aproximam-se uma da outra cada vez mais não é, como eu disse anteriormente, um sinal de que elas se encontrarão, porque foram descobertas outras linhas que convergem na direcção uma da outra mais e mais mas nunca se encontram. Por este motivo outros antes de nós classificaram-no entre os teoremas e exigiram uma demonstração disto que foi tomado como um postulado pelo autor dos Elementos.” (Proclus, séc V, 364.18-365.6) |
Proclus reafirma a sua convicção de que o postulado é de facto um teorema e portanto demonstrável. Por um lado, realça que, se a recíproca do postulado (proposição XVII) é um teorema demonstrável, então também o deveria ser o postulado (o que não é verdade pois, de facto, o postulado não é demonstrável e a sua recíproca é). Por outro lado, realça a dificuldade dessa demonstração pelo facto de que duas linhas estarem cada vez mais próximas, não implica necessariamente que se encontrem.
De destacar que Proclus aponta a existência de “outros antes de nós” que também consideraram que este postulado seria um teorema. Embora não conheçamos os seus nomes, ficamos a saber da existência de uma comunidade exigente e interessada que, desde que Euclides escreveu os Elementos, não deixou de estudar minuciosamente e de pôr em causa o seu postulado número cinco.
É após este apontamento que Proclus fala de Ptolomeu e do seu trabalho sobre o quinto postulado, transcrevendo a demonstração de Ptolomeu do postulado 29 e do quinto postulado de Euclides. Proclus aponta falhas nas demonstrações de Ptolomeu que classifica de fracas e insatisfatórias.
Analisa depois um argumento que defende que duas rectas, mesmo fazendo ângulos inferiores a dois rectos com uma terceira recta que as intersecte, ainda assim, não se intersectam as duas, não especificando quem ao certo é que defendia este argumento que contraria o quinto postulado:
“Agora examinemos aqueles que dizem que é impossível que linhas prolongadas de ângulos menores que dois ângulos rectos se encontrem. Tomando duas linhas rectas AB e CD e a linha AC caída sobre elas e fazendo os ângulos internos menores que dois ângulos rectos, eles pensam que podem demonstrar que AB e CD não se encontram. Seja AC bissectado em E, e seja um comprimento AF igual a AE, colocado sobre AB, e sobre CD um comprimento CG igual a EC. É claro que AF e CG não se encontrarão em nenhum ponto em FG; pois se elas se
encontram, dois lados de um triângulo serão iguais a um terceiro, AC, o que é impossível. Outra vez desenhe-se a linha FG e bissectada em H, e sejam iguais comprimentos colocados sobre [FK e GL]. Estes do mesmo modo não se encontrarão, pelas mesmas razões que antes. Ao fazer isto indefinidamente, desenhando linhas entre os pontos não-coincidentes, bissectando as linhas de ligação, e colocando sobre as linhas rectas comprimentos iguais às suas metades, eles dizem que provam que as linhas AB e CD não se encontrarão em local algum. Estes são os seus argumentos. A eles temos que responder que o que dizem é verdade mas que não prova tanto quanto pensam. É verdade que não é possível deste modo simples encontrar o ponto em que a intersecção ocorre. Não é verdade, no entanto, que as linhas nunca se encontram. Seja considerado que AB e CD não se encontram quando os ângulos BAC e DCA são definidas pelos pontos F e G. Mas não há razão pela qual elas não devam encontrar-se em K e L, mesmo que FK e GL sejam iguais a FH e HG. Pois se AK e CL se encontram em K e L, os ângulos KFH e LGH não serão mais os mesmos; isto é, parte de FG passou a pertencer a AK e CL; e assim em troca as linhas FK e GL são maiores que a base por tanto quanto tiraram da linha FG. Isto também deveria ser dito. Ao afirmar sem restrição que linhas prolongadas de ângulos menores que dois ângulos rectos não se encontram, eles estão derrubando o que não pretendem. Seja o diagrama igual ao anterior.
Agora é possível ou não desenhar uma linha recta de A a G? Se eles dizem que não é possível, estão a negar, não apenas o quinto postulado, mas também o primeiro, que afirma ser possível desenhar uma linha recta de qualquer ponto a outro qualquer ponto. Se isto é possível, seja desenhada essa linha. Então como os ângulos FAC e GCA são menores que dois ângulos rectos, é ainda mais claro que GAC e GCA são menores que dois ângulos rectos. Portanto AG e CG encontram-se em G, e são prolongadas de ângulos menores que dois ângulos rectos. Consequentemente não é possível dizer sem restrição que linhas prolongadas de ângulos menores que dois ângulos rectos não se encontram. Pelo contrário, é claro que algumas linhas prolongadas de ângulos menores que dois ângulos rectos encontram-se, se bem que o argumento que prova isto de todas essas linhas ainda está por ser encontrado. Dado que “menor que dois ângulos rectos” é indeterminado, poderia dizer-se que com uma tal e tal redução [aos ângulos rectos] as linhas rectas continuam não secantes, enquanto que, com outra redução maior [aos ângulos rectos] que esta, elas encontram-se.” (Proclus, séc V, 369.1-371.10) |
Aparentemente, este argumento mostraria que as rectas nunca se intersectariam. Contudo, a verdade é que, de modo análogo ao que se passa com o paradoxo de Aquiles e da Tartaruga, o processo não tem fim mas as rectas encontram-se numa distância finita. Proclus não foi capaz de detectar a falha no argumento apresentado e, na sua análise, parece perder-se (refiro-me à parte que coloquei a itálico e cujo sentido não consegui perceber; talvez seja falha minha, mas quer-me parecer que falta algo no raciocínio; talvez algo se tenha perdido entre as várias traduções ao longo dos tempos). Contudo, compreende que, apesar de este método nunca encontrar o ponto de intersecção, isso não significa que as rectas nunca se intersectem. Proclus aponta que a conclusão deste argumento não faz sentido pois prova “demais”, no sentido em que contraria não só o quinto postulado mas também o primeiro, segundo o qual se poderia traçar uma linha recta ligando A a G. Segundo o argumento por Proclus analisado, a recta AG nunca intersectaria a recta CD e, logo, não chegaria a G, o que é absurdo. Deste modo, Proclus afirma que não há dúvida que existem rectas que se intersectam, embora, Proclus avise que ainda não foi encontrado o “argumento” que prova isso para todas as rectas, ou seja, que ainda não foi demonstrado o quinto postulado de Euclides.
É neste contexto que Proclus prossegue com o seu “argumento” para demonstrar o quinto postulado de Euclides, começando por afirmar a necessidade de aceitar à partida um certo axioma:
“A quem quiser ver este argumento construído, digamos que terá que aceitar antecipadamente um axioma como o que Aristóteles usou para estabelecer a finitude do universo: se de um ponto único duas linhas rectas fazendo um ângulo são prolongadas indefinidamente, o intervalo entre elas quando prolongadas indefinidamente excederá qualquer grandeza finita. Pelo menos ele provou que, se as linhas estendidas do centro para a circunferência são infinitas, o intervalo entre elas é infinito; pois se é finito, é possível aumentar o intervalo entre elas, de modo que as linhas rectas não sejam infinitas. As linhas rectas estendidas indefinidamente, então, divergirão uma da outra uma distância maior que qualquer grandeza finita.” (Proclus, séc V, 371.11-371.23) |
Há quem critique este axioma pressuposto por Proclus dizendo que também ele teria que ser demonstrado, pois o argumento que Aristóteles usa para concluir a finitude do universo não prova este axioma. É o caso de Clavio, que criticou o axioma e que diz que, do mesmo modo que não se pode supor que duas linhas que se aproximam cada vez mais se irão intersectar, também não se pode supor que duas linhas que se afastam cada vez mais se irão afastar mais do que qualquer distância finita, dando o exemplo da conchóide de Nicomedes, que se afasta cada vez mais da tangente no vértice mas nunca se afasta mais do que uma determinada distância finita. Contudo, este axioma, se bem que possa ser considerado discutível, não é equivalente e não permite provar o quinto postulado.
É então que Proclus, partindo deste axioma, apresenta a sua própria demonstração do quinto postulado:
“Se isto é estabelecido, eu digo que, se uma linha recta corta uma de duas rectas
paralelas, ela corta a outra também. Sejam AB e CD linhas paralelas e EFG uma linha que corta AB. Eu digo que também corta CD. Pois, como existem duas linhas rectas passando por um ponto F, quando FB e FG são estendidas indefinidamente, elas terão entre elas um intervalo maior que qualquer grandeza e, por isso, maior que a distância entre as linhas paralelas. E, portanto, quando são separadas uma da outra uma maior distância que aquela entre as linhas paralelas, FG cortará CD. Portanto, se uma linha recta corta uma de duas paralelas, ela cortará a outra também. Provado isto, podemos demonstrar a proposição perante nós [o quinto postulado] como sua consequência. Sejam AB e CD duas linhas rectas e EF caída sobre elas e a fazer ângulos BEF e DFE menores que dois ângulos rectos.
Eu digo que as linhas rectas encontrar-se-ão no lado em que os ângulos são menores que dois ângulos rectos. Pois, como os ângulos BEF e DFE são menores que dois ângulos rectos, seja HEB igual ao excesso de dois ângulos rectos sobre eles [seja HEB dois ângulos rectos menos BEF e DFE], e seja HE prolongada até K. Então, como EF cai sobre KH, e CD faz os ângulos internos iguais a dois ângulos rectos, nomeadamente HEF e DFE, HK e CD são linhas rectas paralelas. E AB corta KH; irá portanto cortar CD, pela proposição já demonstrada. AB e CD portanto encontrar-se-ão na direcção em que os ângulos são menores que dois ângulos rectos, pelo que a proposição perante nós foi demonstrada.” (Proclus, séc V, 371.23-373.3) |
Como se verifica, Proclus começa por apresentar a demonstração de uma proposição que diz que uma linha recta que encontra uma de duas paralelas também intersecta necessariamente a outra. É daí que prova o quinto postulado e, de facto, a partir dessa proposição pode-se demonstrar o quinto postulado de Euclides.
Proclus não cai pois no erro de considerar a definição de paralelismo de Possidónio (rectas equidistantes) como equivalente à de Euclides (rectas que não se intersectam), o que seria pressupor desde logo o quinto postulado. Contudo, considera que a distância entre duas paralelas se mantém menor que uma distância fixa, na demonstração da proposição inicial (a partir da qual demonstrou o quinto postulado) e é aí que está o seu erro, pois isso é equivalente ao quinto postulado de Euclides (na geometria hiperbólica, é falso que a distância entre duas paralelas seja sempre inferior a uma certa distância finita). Logo acaba por não demonstrar o postulado visto que o pressupôs, ainda que involuntariamente.
Apesar disso, o trabalho de Proclus é extremamente relevante. Ele preocupou-se em apresentar a questão de uma forma ponderada e científica. Não se limitou a apresentar a sua demonstração. Analisou uma tentativa anterior à sua (a de Ptolomeu, que correctamente identificou como errada) e atacou, por um lado, aqueles que diziam que as rectas nunca se encontravam e, por outro, aqueles que se fundamentavam em “probabilidades” para concluir que as rectas tinham que se encontrar só porque a tendência das rectas era aproximar-se cada vez mais.
Na sua tradução do comentário de Proclus, Morrow considera que “esta tentativa de provar o quinto postulado de Euclides é a contribuição mais ambiciosa de Proclus para os elementos da geometria” (Morrow, 1970, xxxi). Há mesmo quem ponha a hipótese, a partir de uma referência de Philoponus, que Proclus teria tido este assunto em tão elevada conta que teria mesmo chegado ao ponto de escrever um livro sobre ele, entretanto perdido.