A Demonstração do quinto Postulado de Euclides por Ptolomeu

         Ptolomeu, ou Claudius Ptolemaeus, foi geógrafo e astrónomo e viveu no século II, em Alexandria. Foi o autor de um famoso tratado de astronomia em 13 livros, que chegou até à actualidade através de uma tradução árabe: Almagesto.

         Porém, é num outro livro que Ptolomeu apresenta a sua demonstração do quinto postulado de Euclides. O livro (que não chegou até aos nossos dias) intitulava-se “Que linhas prolongadas de ângulos menores que dois ângulos rectos encontram-se uma com a outra”. O título pode hoje não fazer muito sentido. Mas, se se tiver em conta que aí se apresenta um estudo sobre o quinto postulado de Euclides (e até uma demonstração), compreende-se que o que Ptolomeu afirma no título do livro é precisamente o quinto postulado de Euclides, no sentido em que os ângulos que refere são os dois ângulos também referidos no dito postulado como menores que dois rectos.

A propósito da proposição 29 e referindo-se a Ptolomeu, Proclus escreve: “a sua demonstração [do quinto postulado] utiliza muitos dos teoremas estabelecidos pelo autor dos Elementos precedentes a este [a proposição 29]” (Proclus, séc V, 365.8-10). Embora não reproduza toda a argumentação que Ptolomeu utilizou para demonstrar esses teoremas, Proclus apresenta as demonstrações de Ptolomeu para as proposições 28 e 29 dos Elementos e para o quinto postulado de Euclides.

 

Proposição 28 - Se uma linha recta ao cortar outras duas, fizer o ângulo externo igual ao ângulo interno oposto do mesmo lado, ou se a soma dos ângulos internos do mesmo lado for igual a dois ângulos rectos, então, as linhas rectas são paralelas entre si.

Vejamos a demonstração da proposição 28 do livro I dos Elementos de Euclides feita por Ptolomeu a partir do modo como Proclus a transcreve:

“Sejam AB e CD duas linhas rectas cortadas por uma linha recta EFGH de modo a fazer os ângulos BFG e FGD iguais a dois ângulos rectos. Eu digo que as linhas rectas são paralelas, isto é, não secantes. Se possível, sejam FB e GD prolongadas até se

encontrarem em K. Então, como a linha recta GF corta a linha AB, ela faz os ângulos AFG e BFG iguais a dois ângulos rectos. Do mesmo modo, como GF corta CD, ela faz os ângulos CGF e DGF iguais a dois ângulos rectos. Consequentemente os ângulos AFG, BFG, CGF e DGF são iguais a quatro ângulos rectos, dos quais dois, BFG e DGF, estão determinados como iguais a dois ângulos rectos; por este motivo os outros dois ângulos, AFG e CGF, são também iguais a dois ângulos rectos. Se então, quando os ângulos internos são iguais a dois ângulos rectos as linhas FB e GD quando prolongadas encontram-se uma à outra em K, logo também FA e GC quando prolongadas irão encontrar-se, pois os ângulos AFG e CGF são também iguais a dois ângulos rectos. As linhas rectas irão encontrar-se ou em ambos os lados ou em nenhum se estes [os ângulos internos deste lado], como aqueles [ângulos internos do outro lado], forem iguais a dois ângulos rectos. Suponhamos então que FA e GC encontram-se em L. Então as linhas rectas LABK e LCDK cercam uma área, o que é impossível. É por isso impossível que linhas se encontrem quando os ângulos internos são iguais a dois ângulos rectos. Por isso elas são paralelas.”

(Proclus, séc V, 362.20-363.18)

  Na transcrição apresentada vê-se que Ptolomeu utiliza uma definição de paralelismo que coincide com a de Euclides, ou seja, as linhas rectas são paralelas se não se intersectarem (não secantes). Não é esse o seu erro na demonstração do postulado.

É sabido que esta proposição é demonstrável, no entanto, a dada altura, Ptolomeu parece cometer um erro ao não justificar devidamente um passo da demonstração, em que conclui do particular para o universal uma suposição. Nesta demonstração Ptolomeu queria provar que duas linhas que satisfazem certas condições nunca se intersectam, mas não pode fazê-lo ao provar que é um absurdo que as linhas que satisfazem essas condições se encontram sempre, que é o que é feito quando diz que se FB e GD se encontram, então AF e CH também se encontram (por ambas satisfazerem as tais condições). O que Ptolomeu tinha que provar era que se FB e GD se encontrarem isso implica um absurdo. Contudo, aparentemente, Ptolomeu não se limita a tomar por hipótese que FB e GD se encontram pois, diz que se FB e GD se encontram, então AF e CH também se encontrarão por estarem nas mesmas condições. Ora, então, já está a supor que todas as linhas nas referidas condições (os ângulos internos que fazem, num dos lados, com uma recta que as intersecte a ambas, são iguais a dois ângulos rectos) se intersectam, não pondo a hipótese que, algumas vezes, se encontram mas não necessariamente sempre. Só assim seria a negação da proposição e que se reduzida ao absurdo provaria a proposição, como pretendia.

O erro de lógica que Ptolomeu comete é que para provar que A=“Todas as rectas com as quais uma terceira recta que as intersecte faz ângulos internos num lado cuja soma é igual a 180º, não se intersectam”, não basta provar que é absurdo B=“Todas as rectas com as quais uma terceira recta que as intersecte faz ângulos internos num de um lado cuja soma é igual a 180º, intersectam-se”. Este tipo de demonstração é válida se demonstrarmos que a negação da proposição que pretendemos provar leva a um absurdo. Contudo, a negação de A é C=“Há rectas com as quais uma terceira recta que as intersecte faz ângulos internos num lado cuja soma é igual a 180º, e que se intersectam”. Ptolomeu supõe que todas as rectas com as quais uma terceira recta que as intersecte faz ângulos internos num lado cuja soma é igual a 180º se intersectam e portanto apenas prova D=“Há rectas com as quais uma terceira recta que as intersecte faz ângulos internos, de um lado, cuja soma é igual a 180º, e que não se intersectam”.

Nesta demonstração, o erro acaba por não ter consequências pois, aquilo que Ptolomeu supõe sem apresentar justificação, pode ser demonstrado. Para a demonstração estar completa, Ptolomeu teria de justificar o que diz e mostrar que, se de um lado estas rectas se intersectam, o mesmo teria de acontecer do outro lado. Citando Heath (1925, p. 204):

“seria mais claro se tivesse sido mostrado que os dois ângulos internos num lado de EH são respectivamente iguais aos dois ângulos no outro lado, nomeadamente BFG a CGF e FGD a AFG; donde, ao assumir que FB e GD encontram-se em K, podemos tomar o triângulo KFG e colocá-lo (por exemplo através da rotação em torno do ponto médio de FG) de modo a que FG caia onde está GF na figura e GD caia sobre  FA, e assim FB tem de cair sobre GC; por isso, como FB e GD encontram-se em K, GC e FA também têm de encontrar-se num ponto correspondente L.”

 

Vejamos agora a demonstração apresentada por Ptolomeu para a proposição 29. Mais uma vez, Ptolomeu não usa o quinto postulado. Mas, como era de esperar, a demonstração está incorrecta, pois é impossível prová-la sem este postulado.

 Proposição 29 - Uma linha recta que corta duas linhas rectas paralelas faz os ângulos alternos iguais entre si, o ângulo externo igual ao ângulo interno oposto e a soma dos ângulos internos do mesmo lado igual a dois ângulos rectos.

            Eis a transcrição de Proclus da demonstração de Ptolomeu:

“Eu digo, por isso, que a reciproca é também verdadeira, isto é, que quando linhas rectas paralelas são cortadas por uma linha recta, os ângulos internos no  mesmo lado são iguais a dois ângulos rectos. Como é necessário que a linha que corta as linhas paralelas faça os ângulos internos no mesmo lado ou iguais a dois ângulos rectos ou menores ou maiores que dois ângulos rectos. Sejam AB e

CD linhas paralelas, e seja GF uma recta que cai sobre elas. Eu digo que não faz os ângulos internos no mesmo lado maiores que dois ângulos rectos. Pois se os ângulos AFG e CGF são maiores que dois ângulos rectos, os restantes ângulos BFG e DGF, são menores que dois ângulos rectos. Mas estes mesmos ângulos são também maiores que dois ângulos rectos; pois AF e CG não são mais paralelas que FB e GD, logo, se a linha que cai sobre AF e CG faz os ângulos internos maiores que dois ângulos rectos, então também a linha que cai sobre FB e GD faz os ângulos internos maiores que dois ângulos rectos. Mas estes mesmos ângulos são menores que dois ângulos rectos (pois os quatro ângulos AFG, CGF, BFG e DGF são iguais a quatro ângulos rectos), o que é impossível. Analogamente nós podemos provar que a linha que cai sobre as paralelas não faz os ângulos internos na mesma direcção menores que dois ângulos rectos. Se, então, ela fá-los nem maiores nem menores que dois ângulos rectos, a única conclusão restante é que a linha que cai nelas faz os ângulos internos na mesma direcção iguais a dois ângulos rectos. Tendo isto sido demonstrado, a proposição perante nós [o quinto postulado] pode ser incontestavelmente provada.”

(Proclus, séc V, 365.17-366.15)

Ao apresentar esta demonstração, Ptolomeu crê que, provado isto, nada o impede de demonstrar o quinto postulado de Euclides. De facto, Ptolomeu tem razão ao afirmar que, provada esta proposição, pode provar o quinto postulado de Euclides. Contudo, esta demonstração é incorrecta. Ptolomeu apresenta o argumento de que, se AB e CD são paralelas, como FB e GD são tão paralelas de um lado quanto AF e CG são do outro, então a soma dos ângulos internos de um lado teria de ser igual à soma dos ângulos internos do outro. Mas, como Proclus referirá no seu comentário a esta demonstração, ele não poderia assumir isso. O que este argumento tem que lhe permitirá demonstrar esta proposição e depois o quinto postulado é o facto de que, afirmar que FA e GC são tão paralelas para um lado quanto FB e GD são para o outro, é equivalente a afirmar que, por qualquer ponto exterior a uma recta, passa uma única paralela (Axioma de Playfair), que é equivalente ao quinto postulado de Euclides. Logo, se não está a ser suposto o quinto postulado de Euclides, este argumento não é válido e portanto a demonstração é incorrecta.

            Assim sendo, se o quinto postulado não é suposto, Ptolomeu comete nesta demonstração um erro lógico do mesmo tipo do que cometeu na demonstração da proposição anterior, pois para provar que A=“Sempre que uma recta cai sobre duas rectas paralelas faz ângulos internos do mesmo lado iguais a dois ângulos rectos” não basta provar que é absurdo B=“Existe uma recta que sobre duas rectas paralelas ou faz ângulos internos do mesmo lado maiores que dois rectos (nos dois lados da recta) ou faz ângulos internos do mesmo lado menores que dois rectos (nos dois lados da recta)” como faz Ptolomeu. A negação de A é C=“Existe uma recta que caída sobre duas rectas paralelas, não faz ângulos internos do mesmo lado iguais a dois ângulos rectos”, que deixa em aberto a hipótese de haver de um lado da recta ângulos internos menores que dois ângulos rectos e do outro maiores que dois ângulos rectos. 

            Para provar que os ângulos internos são rectos Ptolomeu supõe, tendo em vista um absurdo, que a soma dos ângulos internos num lado é menor ou maior que dois rectos. Mas também supõe (embora julgue deduzir) que os ângulos internos do outro lado verificarão exactamente a mesma propriedade, ou seja, pressupõe que, se de um lado são maiores, do outro também o serão. Ora, o que tinha de provar era que, se de um lado os ângulos fossem maiores ou menores que dois ângulos rectos, então sim estaríamos necessariamente perante um absurdo (não forçando a que do outro lado isso se verificasse, pois isso só é verdade se considerar o quinto postulado ou seu equivalente).

 

            Depois de julgar demonstrada a proposição 29 sem utilizar o quinto postulado de Euclides, Ptolomeu prossegue para a demonstração do próprio postulado (sem ter consciência que, para demonstrar a proposição 29, já o havia utilizado implicitamente):

“Eu digo que, se uma linha recta cai sobre duas linhas rectas e faz os ângulos internos no mesmo lado menores que dois ângulos rectos, as linhas rectas se prolongadas encontrar-se-ão nesse lado em que os ângulos são menores que dois ângulos rectos. Suponhamos que elas não se encontram. Mas se elas são não secantes no lado em que os ângulos são menores que dois ângulos rectos, muito mais serão elas não secantes no outro lado em que os ângulos são maiores que dois ângulos rectos, pelo que as linhas rectas serão não secantes em ambos os lados; e se assim for, elas são paralelas. Mas foi provado que a linha que cai sobre paralelas fará os ângulos internos no mesmo lado iguais a dois ângulos rectos. Os mesmos ângulos são por isso iguais a dois ângulos rectos e menores que dois ângulos rectos, o que é impossível”

(Proclus, séc V, 366.15-367.3)

Ptolomeu demonstrou que,  nas condições referidas, as rectas se intersectam. De seguida, completa a demonstração e prova que elas se intersectam do lado em que a soma dos ângulos internos é menor que dois ângulos rectos e não na direcção em que é maior:

“Sejam AB e CD duas linhas rectas, e seja EFGH uma linha caída sobre elas que faz os ângulos AFG e CGF menores que dois ângulos rectos. Por isso os outros ângulos são maiores que dois ângulos rectos. Agora já foi demonstrado que as linhas rectas não são não secantes. Mas se elas se encontram uma com a outra,

 será ou no lado de A e C ou no lado de B e D. Assumamos que elas se encontram no lado de B e D no ponto K. Então como os ângulos AFG e CGF são menores que dois ângulos rectos e os ângulos AFG e BFG são iguais a dois ângulos rectos, se o termo comum, o ângulo AFG, é subtraído, o ângulo CGF será menor que o ângulo BFG. Segue-se que o ângulo externo do triângulo KFG é menor que o interno oposto, o que é impossível. Consequentemente elas não se encontram neste lado. Mas elas encontram-se. Portanto elas encontram-se no outro lado, naquele em que os ângulos são menores que dois ângulos rectos.”

(Proclus, séc. V, 367.12-367.27)

 

            E assim termina a demonstração de Ptolomeu do quinto postulado de Euclides. Ou melhor, são estes os trechos da demonstração de Ptolomeu que chegaram até nós. Porque estes trechos são transcrições feitas por Proclus da obra de Ptolomeu, não podemos saber ao certo se Proclus terá reproduzido com exactidão a argumentação de Ptolomeu. Resta-nos acreditar nas palavras de Proclus que declara citar Ptolomeu na totalidade das três demonstrações apresentadas.

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