Comentário

 

O filme aborda a problemática da estratificação e mobilidade social, das obsessões sexuais, das relações de poder e crueldade. O que está em causa é a imagem da decadência das camadas burguesas alemãs que constituem parte da base social de apoio do nacional-socialismo emergente. O filme pode pois ser visto como uma ilustração da degradação da República de Weimar em vésperas da subida de Hitler ao poder. O professor Imanuel Rath é o epítome da elite social alemã em 1929; educado, digno, rico e intelectual. A sua decadência inicia-se quando se deixa enredar por uma cantora de cabaré. Rath não se apercebe que a sua união com esta mulher irá provocar a sua decadência e degradação.

No início do filme, Rath é um respeitável professor do liceu. No fim, um palhaço. Esta transformação processa-se de forma gradual. Enquanto o professor persegue os seus alunos pelo cabaré, durante a sua primeira visita, vemos o palhaço que emerge do camarim das mulheres. O próximo passo da transformação de Rath ocorre quando Lola lhe sopra pó de arroz para a cara. Agora o palhaço é Rath.

Inicialmente, o espectador pode simpatizar com os estudantes e aceitar, ou até considerar justificada, a forma como tratam o professor. No final, é muito difícil não sentir piedade do homem derrotado e alquebrado que nos é apresentado. O próprio filme nos mostra uma reacção de indignação e de “solidariedade” para com o pobre palhaço quando alguns espectadores se levantam em protesto contra o que lhes é dado ver em palco. Nesta cena, observa-se o professor, que anteriormente era uma figura poderosa e autoritária perante os seus alunos, transformado numa figura de fragilidade, que nada faz contra a humilhação a que é sujeito.

Neste filme, podemos ver exemplos de ensino e de educação. O professor Rath tenta não só ensinar mas também educar os seus alunos. Na vida deste professor não se verifica nitidamente uma distinção entre a vida privada e o seu trabalho, uma vez que sendo o professor uma pessoa celibatária, vive em função do seu trabalho. A vida do professor é preenchida com a sua profissão e é, através desta, que é reconhecido e respeitado por outros membros da cidade pequena em que vive.

O ensino pressupõe a transmissão de saberes teoréticos, tem como local a escola e as principais figuras da interacção são o professor e o aluno. O professor é o veículo de um saber que o aluno deve aprender. Assim sendo a relação entre o professor e o aluno deve ser feita em nome desse saber. Podemos questionar-nos se no filme há verdadeiro ensino. Pensamos que não pois os alunos não reconhecem a Rath a autoridade para começar a falar e escutá-lo. É verdade que os alunos do professor Rath se calam mas não parecem escutá-lo. Há dois níveis de autoridade de um professor; um primeiro que decorre da sua competência, do conhecimento aprofundado que detém numa determinada área do saber. Um segundo, meramente formal, que é conferido pelo cargo e pela posição social. No início do filme, o professor é uma figura poderosa e autoritária. Este autoritarismo só é suportado pelos seus alunos porque o professor cumpre meticulosamente uma série de regras sociais como o ser celibatário, ser imaculado, ser pontual e meticuloso, entre outras. À medida que o filme se desenrola, vai perdendo essa autoridade, primeiro sobre os seus estudantes, depois, sobre si próprio, transformando-se num títere nas mãos de Lola. Aquando da chegada do professor à aula, no primeiro dia, todos os alunos se sentam, tiram os chapéus respeitosamente e remetem-se ao silêncio. O respeito que ele lhes inspira, leva-os a assistir ao seu assoar metódico do nariz sem se rirem. Uma nota curiosa sobre a relação entre o professor e os alunos é o facto de estes evitarem decididamente o contacto ocular com o professor. Nenhum dos estudantes, com excepção de Angst, olha directamente para o professor, facto que mostra até que ponto a relação entre o professor e os alunos era distante e fria. Na altura de rever a matéria da lição anterior, Rath escolhe propositadamente o aluno que parece estar menos preparado. Para mostrar o seu domínio sobre os alunos, manda fazer uma composição sob um tema, que inventa claramente naquele momento. Quando descobre os postais de Lola nas mãos dos estudantes entrega-se a uma ridícula exibição do seu poder sobre os estudantes mandando-os levantar e logo a seguir sentar. Porém o poder discricionário que tem sobre os seus alunos desaparece rapidamente. No dia seguinte, o tom que Rath utiliza com os seus estudantes é nitidamente menos agreste e ríspido. No terceiro dia de aulas toda a capacidade de controlo desaparece. Quando vê os desenhos no quadro, começa ele próprio a apagá-los ao invés de obrigar um dos alunos a apagá-los mostrando-se indignado como havia feito dois dias antes quando se tratava apenas de um desenho na caderneta que, aliás, praticamente ninguém havia visto. Esta atitude de fraqueza incita os alunos à revolta iniciando-se o motim que culmina com a entrada do director e o despedimento de Rath.

Esta perda demonstra que a autoridade detida pelo professor Rath era meramente formal e provinha da sua posição social. Na Alemanha dos anos 20, um professor do liceu era um membro altamente respeitado da sociedade. A sociedade alemã da época era extremamente rígida e conservadora e era necessária uma estrita conformidade com as regras. Deste modo, quando Rath infringe essas regras é rejeitado pela comunidade em que está inserido. No filme, essa rejeição é simbolizada pela atitude dos alunos.

No segundo ponto mencionado verifica-se que, embora o professor seja uma figura de autoridade, apesar de tudo parece haver aspectos de uma relação próxima professor-alunos, uma vez que se  preocupa em salvaguardar a conduta dos seus alunos e em não permitir que estes se desencaminhem por caminhos pouco apropriados. Esta preocupação é visualizada, quando Rath se dirige ao cabaré para falar com Lola e tentar evitar a perdição dos seus alunos. Neste aspecto, é notório o interesse manifestado pelo professor na educação dos seus alunos.  

Sob o ponto de vista formal é de assinalar neste filme a marca do expressionismo alemão nos seguintes aspectos:

Ø          as ruas são tortuosas e sombrias e os edifícios parecem inclinar-se uns para os outros desenhando estranhos ângulos;

Ø há um jogo de luz e sombra que torna o camarim de Lola um espaço abafado e até “psicótico”;

Ø as personagens mostram-se atormentadas e  mesmo doentias.

O Anjo Azul foi o segundo filme sonoro realizado na Alemanha. É, em muitos aspectos, um filme de transição que combina elementos dos filmes mudos com elementos do cinema sonoro. As actuações, por exemplo, são “exageradas”, como era usual no cinema mudo. Porém, as canções que Marlene canta são tão importantes para o desenvolvimento da narrativa como a imagem.

Sternberg demonstra possuir algum domínio sobre a nova tecnologia sendo apontado como o primeiro director a utilizar a variação da sonoridade quando se abrem e fecha portas no estúdio. No filme podemos ver um excelente exemplo de alternância entre o som e o silêncio na cena da primeira aula em que Rath abre a janela (a aula é invadida pelo som das vozes que cantam cá fora) e, de seguida, a fecha (o som desaparece totalmente).
 

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt