Quarta-feira 29 de Julho 1654   

 

Comentários:

1.     A impaciência tomou conta de mim, bem como de si, e ,embora eu ainda esteja acamado, não posso evitar de lhe dizer que recebi a sua carta respeitante ao problema dos pontos(1), ontem à noite, das mãos de Sr. Carcavi e que estou mais admirado do que lhe posso contar. Não ouso escrevê-lo por extenso mas, numa palavra, o Sr. encontrou as duas divisões dos pontos e do dado com toda a justiça.

É de realçar a admiração manifestada por Pascal em relação à resolução de Fermat para o problema dos pontos e para o dos dados:

       Admiro o seu método para o problema dos pontos mais do que para o do dado. Vi soluções para o problema do dado de várias pessoas, tais como a do Sr. Cavaleiro de Mére que me colocou a questão, e também a do Sr. Roberval. O Sr. de Mére nunca foi capaz de encontrar o valor exacto dos pontos, nem foi capaz de encontrar um método de derivação, pelo que eu sou o único que conhece esta proporção.

só a resolução de Fermat é completa, uma vez que apresenta o valor exacto dos pontos, bem como um método de derivação.

2.     O seu método é muito bom e foi o primeiro que me ocorreu durante estas pesquisas. Mas, devido ao facto de as combinações serem excessivas, eu encontrei um atalho e, na realidade, outro método mais curto e claro, o qual lhe passo a descrever em poucas palavras; pelo que gostaria de lhe abrir o meu coração daqui para a frente, se tal me é permitido, visto ter sido enorme o prazer que tive com o nosso acordo. Claramente vejo que a VERDADE é a mesma em Toulouse e em Paris.

Pascal, propõe-se apresentar um método  mais curto e claro, tentando fugir às inúmeras combinações que implica o de Fermat. É de realçar o prazer que Pascal manifesta pelo acordo estabelecido e o apelo que faz no sentido de uma futura colaboração entre os dois.

       Este é o caminho que tomo para saber o valor de cada parte quando 2 jogadores jogam, por exemplo 3 lançamentos, e quando cada um aposta 32 pistolas (dinheiro da época).
       Suponhamos que o primeiro tem 2 (pontos) e o outro 1(ponto). Eles jogam agora uma vez na qual as hipóteses são tais que, caso o primeiro ganhe, ele ganhará a totalidade do que está apostado, ou seja, 64 pistolas. Se o outro ganhar eles ficarão 2 para 2 e, consequentemente, se pretenderem dividir acontecerá que cada um retirará o valor da sua aposta, ou seja, 32 pistolas.
       Considere então Sr. que se o primeiro ganha 64, serão dele. Se perder, 32 serão dele. Então, se eles não quiserem jogar este ponto e queiram dividir, sem o fazer, o primeiro jogador deverá dizer: «Eu tenho 32 pistolas, porque, mesmo que perca elas serão minhas. Quanto às outras 32, talvez as venha a ganhar ou talvez você as ganhe, o risco é igual. Assim, vamos dividir as 32 pistolas a meias, e eu fico com as 32 que são realmente minhas».
       Ele terá então 48 e o outro 16.
       Agora suponhamos que o primeiro tinha 2 pontos e o outro nenhum, e que jogavam para 1 ponto.
       As hipóteses são tais que, caso o primeiro ganhe, levará a totalidade da aposta, 64 pistolas. Se o outro ganhar, tenha em atenção de que eles voltarão à situação atrás descrita, na qual o primeiro tem 2 pontos e o segundo 1 ponto.
       Neste caso, já demonstrámos que 48 serão do que tem 2 pontos. Portanto, se eles não quiserem jogar este ponto ele deverá dizer: «Se eu ganhar fico com tudo, ou seja, com 64 pistolas. Se eu perder, 48 serão legitimamente minhas. Portanto, dê-me as 48 que me pertencem de certeza mesmo que eu perca e, vamos dividir as outras 16 ao meio pois temos as mesmas hipóteses de as ganhar». Então, ele terá 48 + 8 que são 56.
       Vamos agora imaginar que o primeiro tem apenas 1 ponto e o outro nenhum. Repare Sr., que se eles iniciarem uma nova jogada as hipóteses serão tais que, caso o primeiro ganhe, ele terá 2 pontos e o outro 0 e dividindo, como na situação anterior, 56 serão dele. Se ele perder, eles ficarão empatados e 32 serão dele. Ele deverá dizer então: «Se não quer jogar dê-me as 32 pistolas que são de certeza minhas e, vamos dividir o resto das 56 ao meio. De 56 tira 32 ficam 24. Depois, divida 24 ao meio dá 12 para si e 12 para mim, que com 32 dará 44». 

Posto isto, Pascal apresenta o seu método para o caso de 2 jogadores. Neste, Pascal foca três casos particulares  bem como aquilo que o jogador, que se encontra na posição de vencedor, deve dizer, no caso de ambos decidirem interromper o jogo.

       Como vê, por este meio, por simples subtracção, pela primeira jogada
ele terá 12 do outro, pela segunda mais 12 e pela terceira 8.
       Mas, para não tornar isto mais misterioso, uma vez que você deseja ver tudo a descoberto, e como não tenho outro objectivo que não seja o de ver se estou errado, o valor (quero dizer, apenas o valor da aposta do outro jogador) da última jogada de 2 é o dobro do da última jogada de 3 e quatro vezes o da última jogada de 4 e 8 vezes o da última jogada de 5, etc.

Temos pena de não conseguir acompanhar o raciocínio final de Pascal quando este diz quais os valores das jogadas. Mas aí ficam os elementos para o leitor acompanhar.

3.     Mas, o ratio das primeiras jogadas não é tão fácil de encontrar.
       Como não pretendo esconder nada, aqui fica o método e aqui está o problema que considerei em tantos casos, como tive o prazer de o fazer: «sendo considerado qualquer número de jogadas que alguém pretenda, encontrar o valor da primeira».

Neste ponto, Pascal apresenta um caso particular do problema inicial (caso particular esse que destacamos a Bold).

       Por exemplo, suponhamos que o número de jogadas é 8. Tomam-se os primeiros 8 números pares e os primeiros 8 números impares, assim:

2,4,6,8,10,12,14,16
e
1,3,5,7,9,11,13,15

       Multiplica-se os números pares desta forma: o primeiro pelo segundo, o seu produto pelo terceiro, o seu produto pelo quarto, o seu produto pelo quinto, etc.; multiplica-se os números ímpares da mesma forma: o primeiro pelo segundo, o seu produto pelo terceiro, etc.

De seguida, apresenta a sua resolução para o caso de 8 jogadas.

       O último produto dos números pares é o denominador e o último produto dos números ímpares é o numerador da fracção, que exprime o valor da primeira jogada de 8. Isto quer dizer que, se cada um joga o número de pistolas iguais ao produto dos números pares, pertencer-lhe-ão (quem perder a jogada) a quantia da aposta do outro, expressa pelo produto dos números impares. Isto pode ser provado mas, com muita dificuldade devido às combinações, tais como você imaginou, e eu não consegui prová-lo por este outro método que agora lhe vou explicar mas, apenas pelo das combinações. 

É nesta altura que Pascal dá a conhecer o seu primeiro teorema (ver sublinhado).

 

       Eis aqui os teoremas que conduzem a este, os quais são proposições aritméticas correctas, no que diz respeito às combinações nas quais eu encontrei tantas propriedades bonitas:

 Pascal, apresenta duas proposições aritméticas que conduzem ao teorema acima mencionado.

4.     Se de qualquer número de letras, como 8 por exemplo,

A,B,C.D.E.F.G.H,

você formar todas as combinações possíveis de 4 letras, depois todas as combinações de 5 letras, depois as de 6 depois as de 7, de 8, etc. e tomar todas as combinações possíveis, eu digo que, se você adicionar metade das combinações de 4 com cada uma das combinações mais altas, a soma será um número igual ao número da progressão quaternária começando com 2, o qual é metade do número total.
       Por exemplo, utilizarei o latim visto o Francês não servir para nada:
       Se qualquer número de letras, por exemplo 8,

A,B,C,D,E,F.G,H.

for somado em todas as combinações possíveis, de 4,5,6 até 8, eu afirmo que, se você somar metade das combinações de 4, que são 35 (metade de 70) a todas as combinações de 5, que são 56, e todas as combinações de 6, a saber 28, e todas as combinações de 7, a saber 8, e todas as combinações de 8, a saber 1, a soma é o quarto número da progressão quaternária cujo primeiro termo é 2. Eu digo que o quarto número para 4 é metade de 8.
       Os números da progressão quaternária cujo primeiro termo é 2 são

2, 8, 32, 128, 512,etc.,

dos quais 2 é o primeiro, 8 o segundo, 32 o terceiro, e 128 o quarto. Destes o 128 é igual:

+35 (metade das combinações de 4 letras)
+ 56 (as combinações de 5 letras)
+ 28 (as combinações de 6 letras)
+ 8 (as combinações de 7 letras)
+ 1 (a combinação de 8 letras)


Neste ponto (4), é apresentada a primeira proposição, puramente aritmética, que se encontra a sublinhado.

5.     Este é o primeiro teorema, o qual é puramente aritmético. O outro diz respeito à teoria dos pontos e é assim:
       É necessário dizer primeiro que: se um (jogador) tem um ponto de 5, por exemplo, apesar de perder 4, o jogo será definitivamente decidido em 8 jogadas, que são o dobro de 4.
       O valor da primeira jogada de 5, na aposta do outro, é a fracção que tem como numerador metade da combinação de 4 das 8 (tomei 4 porque é igual ao número de pontos que ele perdeu e 8 porque é o dobro de 4) e para denominador, o mesmo numerador somado a todas as mais altas combinações.
       Assim, se eu tiver 1 ponto de 5, 35/128 da aposta do meu opositor pertence-me. Isto quer dizer que, se ele tiver apostado 128 pistolas eu tirarei 35 e deixá-lo-ei com o resto, 93.
       Mas, esta fracção, 35/128, é a mesma que 105/384 que é o resultado da multiplicação dos números pares para o denominador e da multiplicação dos números ímpares para o numerador.
       O Sr. verá tudo isto sem qualquer dúvida se se der ao trabalho, por isso acho desnecessário discutir mais consigo acerca disto.

Aqui (ponto5), Pascal dá a conhecer uma outra proposição, que diz respeito à teoria dos pontos.

6.     Contudo, enviar-lhe-ei uma das minhas antigas tabelas; não tenho tempo para copiá-la mas mencioná-la-ei.

Pascal faz referência a uma tabela de sua autoria.

       Você verá aqui, como sempre, que o valor da primeira jogada é igual ao da segunda, algo que será facilmente provado pelas combinações.
       Verá também que os números da primeira linha estão sempre a crescer; os da segunda igualmente, bem como os da terceira.
       Mas, após isto, os da quarta linha diminuem, bem como os da quinta. Isto é ímpar.

 

 

Das 256 pistolas do meu adversário, depois de..., pertencem-me...

Se cada um apostar 256 pistolas

 

Primeiro lançamento

6 lançamentos

5 lançamentos

4 lançamentos

3 lançamentos

2 lançamentos

1 lançamento

63

70

80

96

128

256

Segundo lançamento

63

70

80

96

128

 

Terceiro lançamento

56

60

64

64

 

Quarto lançamento

42

40

32

 

Quinto lançamento

24

16

 

Sexto lançamento

8

 


 

 

 

 

De seguida, o matemático apresenta uma tabela (desconhecemos se esta é a mesma que Pascal refere anteriormente) e chama a atenção de Fermat para algumas regularidades existentes.

 

 

Das 256 pistolas do meu adversário, depois de..., pertencem-me...

Se cada um apostar 256 pistolas

 

Primeiro lançamento

6 lançamentos

5 lançamentos

4 lançamentos

3 lançamentos

2 lançamentos

1 lançamento

63

70

80

96

128

256

Segundo lançamento

126

140

160

192

256

 

Terceiro lançamento

182

200

224

256

 

Quarto lançamento

224

240

256

 

Quinto lançamento

248

256

 

Sexto lançamento

256

 


 

 

 

Não temos conhecimento da origem desta tabela, bem como da sua relação com a anterior. De qualquer forma, achamos que vem no seguimento da anterior. Deixamos esta relação ao cuidado do leitor.

7.     Não tenho tempo para lhe enviar a prova de um ponto difícil que muito espantou o Sr. De Mére, pois ele tem competência mas não é um geometra (o que é como sabe um grande defeito), e ele ainda não compreende que uma linha matemática é infinitamente divisível e está firmemente convencido que é composta por um número finito de pontos. Nunca consegui tirar-lhe essa ideia. Se você conseguisse isso torná-lo-ia perfeito.

Pascal tece  algumas considerações acerca dos conhecimentos matemáticos do Sr. De Mére.

       Ele diz-me, então, que encontrou um erro nos números, por esta razão:
       Se alguém aceitar jogar um 6 com um dado, a vantagem de aceitar fazer isso em 4, está como 671 para 625.
       Se alguém aceitar jogar um doble de 6 com 2 dados, a desvantagem de acertar é 24.
       Mas, contudo, 24 está para 36 (que é o número de faces de 2 dados)(2) como 4 está para 6 (que é o número de faces de um dado).

       Este foi o seu grande escândalo que o fez dizer, altivamente, que os teoremas não eram consistentes e que a aritmética era de loucos. Mas, o Sr. verá facilmente a razão, pelos princípios que possui.

Pelo que nos é dado a entender, o Sr. De Mére terá encontrado um erro. Contudo, não conseguimos perceber onde se encontra esse erro, bem como o raciocínio do Sr. De Mére para o justificar. 

 

       Devo pôr em ordem tudo o que já fiz, quando acabar o Tratado sobre Geometria(3), no qual tenho vindo a trabalhar à já algum tempo.

 

 

8.     Também fiz algo com aritmética e peço-lhe para me dar o seu conselho sobre tal assunto.

       Propus o seguinte lema, que toda a gente aceitou: a soma dos n primeiros termos da progressão contínua partindo da unidade, como

1,2,3,4,

 multiplicada por 2 é igual ao último termo, 4, multiplicado pelo termo seguinte, 5. Isto equivale a dizer que a soma dos inteiros até A, multiplicada por 2 é igual ao produto

A(A + 1).

       Chego agora ao meu teorema:

       «Se um for subtraído à diferença dos cubos de quaisquer dois números consecutivos, o resultado é seis vezes todos os números contidos na raiz do menor deles».

Em concordância com o que foi dito inicialmente, Pascal pede um conselho a Fermat, (julgamos nós) acerca do lema (a sublinhado) e do teorema (a Bold) que se seguem.

       Deixemos as duas raízes, R e S, diferirem por uma unidade. Digo que R3 - S3 - 1 é igual a seis vezes a soma dos números contidos em S.

       Tomemos S como A, então R é A + 1. Portanto, o cubo da raiz R ou A + 1 é

A3 + 3A2 + 3A + 13.

O cubo de S, ou A, é A3 e a diferença disto é R3 - S3; portanto, se subtrairmos uma unidade 3A2 + 3A é igual a R3 - S3 - 1. Mas, pelo lema, o dobro da soma dos números contidos em A ou S é igual a A(A + 1); isto é, A2 + A. Portanto, seis vezes a soma dos números em A é igual a 3A3 + 3A. Mas, 3A3 + 3A é igual a R3 - S3 - 1. Então, R3 - S3 - 1 é igual a seis vezes a soma dos números contidos em A ou S. Quod erat demonstradum(4).

Nos parágrafos que se seguem, Pascal demonstra o teorema acima referido.

 

       Ninguém me colocou nenhuma dificuldade em relação ao que foi dito atrás mas, disseram-me que ninguém o fez porque  todos estão acostumados a este método. Em relação a mim próprio, e digo isto sem estar a fazer nenhum favor a mim próprio, deveriam admitir isto como um excelente tipo de demonstração. Contudo, aguardo pelo seu comentário, com deferência. Tudo o que já provei em aritmética é desta natureza.

 

Neste breve parágrafo, Pascal fala do método que usou na demonstração que, segundo ele, é excelente. Há ainda que chamar a atenção para, mais uma vez, Pascal solicitar um comentário a Fermat.

9.     Aqui estão duas dificuldades (posteriores ou suplementares): provei um teorema simples fazendo uso do cubo de uma linha comparado com o cubo de outra. Com isto quero dizer, que isto é puramente geométrico e de grande rigor. Assim, resolvi o problema: «Dados quaisquer 4 planos, 4 pontos e 4 esferas, encontrar a esfera que, tocando nas esferas dadas, passa pelos pontos dados e deixa nos planos segmentos, nos quais podem ser inscritos certos ângulos» e este: «Dados quaisquer 3 círculos, 3 pontos e 3 rectas, encontrar o círculo que toca nos círculos dados e nos pontos, e que deixa nas rectas um arco onde um dado ângulo pode ser inscrito».

Por fim, Pascal confessa ter resolvido os dois problemas (a Bold).

       Resolvi estes problemas no plano, usando nada mais na sua construção a não ser círculos e rectas mas, na demonstração fiz uso de cónicas, parábolas e hipérboles. Contudo, uma vez que a construção é no plano, mantenho a minha solução no plano, e é assim que ela deve passar.

 Pascal faz referência aos entes matemáticos que usou na resolução dos problemas, fazendo questão de salientar que tal resolução foi feita no plano.

       Este é um pobre reconhecimento da honra que me deu ao apresentar o meu discurso, que o tem vindo a afligir à tanto tempo. Nunca pensei que lhe deveria ter dito duas palavras e, se eu lhe dissesse o que me predomina no meu coração - quanto melhor o conheço, mais o honro e o admiro - e, se quisesse ver a que grau corresponde isto, permitiria um lugar na sua amizade para aquele que é, Sr., o seu...

Pascal

Ao despedir-se, Pascal realça, mais uma vez, a honra e a admiração que sente na sua amizade com Fermat. 

 

 


Notas do editor:

(1) Os editores destas cartas fazem notar que a palavra parti significa a divisão da aposta entre dois jogadores no caso em que o jogo é interrompido antes de acabar. Parti des dés significa que o jogador que detém o dado concorda em lançar um certo número de lançamentos. Para clarificar, nesta tradução, o primeiro destes casos será denominado problema dos pontos, um termo que tem tido uma certa aceitação na História da Matemática, enquanto que o segundo pode ser analogamente denominado por problema do dado.

(2) Claramente, o número de combinações possíveis para os dois dados.

(3) Talvez o manuscrito que Leibniz viu, mas que já não existe.

(4) Está demonstrado.

                                                                                                                                                                  

Olga Pombo opombo@fc.ul.pt