Giordano Bruno

 

 

Giordano Bruno foi um filósofo renascentista cuja concepção do infinito visava a exaltação da consciência da dignidade do homem, isto é, dava particular ênfase à capacidade do homem transcender a sua condição de ser finito, tendendo para o ente infinito. Este autor estabelece uma estreita correlação entre Deus e a natureza, tomando como ponto de partida para a sua reflexão o tema do mundo e do universo - ao qual atribuía a infinitude real.  

Micheli (in Romano, 1997) refere que parte considerável dos escritos de Bruno são dedicados à exposição e análise da sua tese acerca da infinitude do mundo, criticando as argumentações de Aristóteles e elogiando as de Copérnico.  

 

Giordano via-se a si próprio como:

(...) alguém que tinha aberto o caminho, rasgado o céu, namorado as estrelas, ultrapassado os limites do mundo, feito desmoronar a enorme barreira da primeira, oitava, nona, décima e tantas quantas esferas se tivessem acrescentado por decisão de vãos matemáticos ou cegueira de filósofos vulgares; assim, tendo presente o sentido e a razão, abertas as portas da verdade (que por nós abrir se possam) com a chave de uma muito apurada inquirição, retirados os véus que cobrem a escondida natureza, iluminaram-se os ignorantes, ajudaram-se os cegos a fixar os olhos e a contemplar a sua imagem em espelhos que surgem de todos os lados, soltou-se a língua dos mudos que não sabiam nem ousavam exprimir os emaranhados sentimentos, os coxos voltaram a andar (...)

(Bruno, cit in Romano, 1997, p. 113)

   

 

Excertos do 1º Diálogo

 

Este diálogo tem como interlocutores: Filóteo, Elpino, Fracastório e Búrquio.  

 

Filóteo identifica-se com o próprio Giordano Bruno. Fracastorio é o nome latino de Girolamo Fracastoro, de Verona (1483?-1553), poeta e autor de um livro de astronomia, a Homocentrica, estudado por Bruno. Elpino e Búrquio são duas personagens criadas pelo filósofo. O primeiro faz de aluno, e o segundo representa o eruditismo tradicionalista de Oxford, imbuído de preconceitos aristotélicos.

   

O diálogo inicia-se entre Elpino e Filóteo:

ELP. Como é possível que o universo seja infinito?

FIL. Como é possível que o universo seja finito?

ELP. Julgam que se pode demonstrar essa infini­dade?

FIL. Julgam que se pode demonstrar essa finidade ?

ELP. De que extensão falas?

FIL.  E tu de que limites falas?

(Bruno, 1984, p. 27)

 

  Elpino argumenta que, se todo o conhecimento provém dos sentidos e não temos como chegar ao infinito através dos nossos sentidos, o seu conhecimento nos está interdito. A isto Filóteo responde que a própria inconstância dos sentidos demonstra que eles não podem ser tomados como principio de certeza, visto que só nos permitem comparar e percepcionar objectos sensíveis, donde se conclui que o conhecimento do infinito não pode ser obtido através deles.

FIL. Não existe sentido que veja o infinito, nem sentido a que se possa pedir esta conclusão, porque o infinito não pode ser objecto dos sentidos; por isso, quem procurar conhecê-lo por essa via, é como quem quisesse ver com os olhos a substância e a essência; e quem a negasse por não ser sensível, ou visível, viria a negar a própria substância e o ser. (...) Ao intelecto compete julgar e dar razão das coisas afastadas no tempo e no espaço.

(Bruno, 1984, p. 28)

 

 

De seguida, começa a defender-se a infinidade do universo a partir da crítica daqueles que, como Aristóteles, defendem a sua finitude sem conseguir apontar-lhe os limites.  

FIL. Assim farei. Se o mundo é finito, e fora do mundo está o nada, pergunto-te: onde está o mundo? Onde está o universo? Responde Aristóteles: está em si próprio. O convexo do primeiro céu é lugar universal; e ele, como primeiro continente, não está noutro conti­nente, porque o lugar não é senão superfície e extremi­dade de um corpo continente; daí, o que não tem corpo continente, não tem lugar. Ora, que queres tu dizer com isto, Aristóteles, que «o lugar está em si próprio?» Que queres tu concluir com essa «coisa existente fora do mundo?» Se dizes que está aí o nada: o céu, o mundo, não estarão certamente em parte alguma...

(...)

FIL. Em suma, indo directamente ao assunto, parece-me ridículo dizer-se que fora do céu está o nada, que o céu está em si próprio, localizado por acidente, e é lugar por acidente, idest com respeito às suas partes, E seja como for que se interprete o seu «por acidente», não se pode fugir a que se faça de um, dois; porque sempre é uma coisa o continente, e outra o conteúdo, e tanto assim é, que para ele próprio o continente é incorpóreo, e o conteúdo é corpo o continente é imóvel, o conteúdo móvel; o continente matemático, o conteúdo físico. Ora, seja essa superfície o que se quiser, nunca me cansarei de perguntar: o que é que está para além dela? Se se responde que está o nada, então direi ser o vácuo, o inane, e um tal vácuo, um tal inane que não tem limite nem qualquer termo ulterior, tendo porém limite e fim no lado de cá. É mais difícil imaginar isto que pensar ser o universo infinito e imenso, porque não podemos fugir ao vácuo se quisermos admitir o universo finito. Vejamos agora, se é possível que exista o tal espaço em que nada está. Neste espaço infinito encontra-se este universo (por acaso, ou por necessidade, ou providência, por enquanto não nos interessa). Pergunto se este espaço, que contém o mundo, tem maior faculdade de conter um mundo do que outro espaço qualquer, existente mais além.

(Bruno, 1984, p. 29-32)

 

 

De seguida, Filóteo leva Elpino a concluir que, assim como é bom que exista este mundo, é  igualmente bom que existam infinitos outros.

FIL. Portanto, assim como este espaço pode, tem podido, e é necessariamente perfeito pela continência deste corpo universal, como dizes, assim todo o outro espaço pode, e tem podido ser perfeito.

ELP. Concordo; e com isto? Pode existir e pode estar. Existe, portanto? Está?

FIL. Levar-te-ei, se estiveres disposto a confessá-lo francamente, a dizer que pode existir, que deve existir, e que existe. Porque, como seria mal que este espaço não fosse pleno, isto é, que este mundo não existisse, não o seria menos, se todo o espaço não fosse pleno, em virtude da sua igualdade; e por consequência, o universo será de dimensão infinita, e os mundos inumeráveis.

ELP. Qual a razão porque devem ser tantos, e não basta um?

FIL. Porque, se é mau que este mundo não exista, ou que este pleno não se encontre, sê-lo-á com respeito a este espaço, ou a outro igual a este?

(Bruno, 1984, p. 34)

 

 

A pedido de Elpino, Filóteo esclarece, mais adiante, o que entende por todo o infinito e totalmente infinito.

FIL. Digo que o universo é «todo infinito» porque não tem limite, termo ou superfície, mas não digo que é «totalmente infinito», porque cada parte que dele possamos tomar é finita, sendo também finito cada um dos mundos inumeráveis que contém. Digo que Deus é «todo infinito», porque exclui de si qualquer termo, e cada um dos seus atributos é uno e infinito; e digo Deus «totalmente infinito», porque está inteiramente em todo o mundo, e em cada uma das suas partes, infinita e totalmente; ao contrário da infinidade do universo, que existe totalmente no todo, e não nas partes (se se podem chamar «partes», referindo-se ao infinito) que nele podemos compreender.

(Bruno, 1984, p. 40)

 

 

Filóteo explica que se pode suprimir a razão da bondade e da grandeza divina sem que daí advenha algum prejuízo para a Teologia.

FIL. Estes silogismos, se não são simples, são demonstrativos. É, todavia, louvável, que alguns dignos teólogos não os "admitam; porque, considerando justa­mente, sabem que os povos rudes e ignorantes vêm, com esta necessidade, a não poder conceber como podem existir a eleição, a dignidade e os méritos de justiça; por isso, confiados ou desesperados, com respeito a certo destino, são necessariamente capazes de grandes crimes. Como às vezes certos corruptores de leis, crenças e religião, querendo parecer sábios, corromperam tantos povos, tornando-os mais bárbaros e criminosos do que eram, desprezando o bem fazer, peritos em todos os vícios e velhacarias, por causa das conclusões que tiram de tais premissas. Por isso, a afirmação contrária não é para os sábios tão escandalosa e detractora da grandeza e excelência divina, quanto a verdade é perniciosa à civil conversação e contrária ao fim das leis; não por ser a ver­dade, mas por ser mal compreendida, tanto por aqueles que malignamente a manejam, como por aqueles que não são capazes de a compreender, sem prejuízo dos costumes.

(Bruno, 1984, p. 42)

 

Finalmente Filóteo demonstra que o movimento dos mundos infinitos não é originado por um motor extrínseco mas sim pela sua própria alma, pelo que existe um motor infinito.

FIL. Para a solução do que procuras resolver, deves primeiro considerar que, se o universo é infinito e imóvel, não há necessidade de procurar o seu motor. Segundo, que sendo infinitos os mundos nele contidos, tais como as terras, os fogos e outras espécies de corpos chamados astros, todos se movem pelo principio interno que é a própria alma, como noutro lugar provámos; por isso é escusado andar a investigar o seu motor extrín­seco. Terceiro, que estes corpos mundanos se movem na região etérea e não estão pendurados ou pregados a qualquer corpo, assim como esta terra, que sendo um deles, não está fixa em parte alguma; a qual demons­trámos girar à volta do próprio centro e em torno do sol, movida pelo instinto animal interno. Enunciadas tais adver­tências, segundo os nossos princípios, não somos obri­gados a demonstrar o movimento activo, nem o passivo duma eficiência infinita, intensiva, pois que são infinitos o móvel e o motor, e a alma movente e o corpo movido concorrem num sujeito finito, isto é, em cada um dos ditos astros mundanos. Tanto assim, que o primeiro princípio não é o que move; mas, quieto e imóvel, proporciona o movimento a infinitos e inumeráveis mundos, grandes e pequenos animais postos na amplíssima região do universo, tendo cada um deles, segundo a condição da própria efi­ciência, a razão da mobilidade, mudança e outros acidentes.

(Bruno, 1984, p. 45-46)

 

 

Por fim Filóteo demonstra como o movimento intensivamente infinito se verifica em cada um dos mundos.

FIL. Neste assunto posso convencer-te facilmente. Digo-te, pois, que nas coisas há a contemplar, se assim o queres, dois princípios activos do movimento: um, finito, segundo a razão do sujeito finito; este move no tempo. O outro, infinito, segundo a razão da alma do mundo, ou seja da divindade, que é como alma da alma, que está toda em tudo, e faz que a alma exista toda em tudo; e este move no instante. Portanto, a terra tem dois movimentos. Assim, todos os corpos que se movem têm dois princípios de movimento, sendo o princípio infinito o que simultaneamente move e moveu; por essa razão, o corpo móvel não é menos estabilíssimo que mobilíssimo.

(...)

De forma que, em conclusão, serem estes corpos movidos por eficiência infinita é o mesmo que não serem movidos; porque num instante, mover e não mover, é uma e a mesma coisa. Permanece, portanto, o outro principio activo do movimento, que deriva da eficiência intrínseca, e por conseguinte existe no tempo, numa certa sucessão; e este movimento é distinto da quietude. Eis, pois, como podemos dizer que Deus move o todo, eis como devemos entender que dá a possibilidade de se mover a tudo o que se move.

(Bruno, 1984, p. 47-48)

 

 

 

Se apreciou estes excertos do 1º diálogo, convido-o a lê-lo na íntegra pois é um texto lindíssimo.