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          Quando alguém, desde muito jovem, se 
          dedica apaixonadamente à actividade da técnica da gravura artística, 
          pode acontecer que encare o domínio perfeito dessa técnica como o seu 
          maior ideal. Este atraente ofício toma todo o seu tempo e pede a sua 
          total atenção, de modo que subordina mesmo a escolha do objecto 
          ao desejo de experimentar uma determinada faceta da técnica. Na 
          verdade, dá grande satisfação adquirir um conhecimento artesanal, 
          desenvolver a 
          capacidade de conhecer profundamente o material que está à disposição, aprender a usar com mestria e convenientemente os utensílios de que 
          se dispõe em primeiro lugar: as próprias mãos.  
          Pessoalmente vivi, durante anos, num 
          tal estado de ilusão. Depois, veio o momento em que os meus olhos 
          puderam ver claro. Percebi que o domínio da técnica não era a minha 
          finalidade. Fui tomado de um outro anseio cuja existência 
          até então me era desconhecida. Vinham-me ideias que nada tinham que 
          ver com a arte da gravura, fantasias que me cativavam de tal maneira 
          que as queria absolutamente transmitir a outros. Isto não podia 
          acontecer com palavras, pois não eram pensamentos literários, mas sim 
          «imagens de pensamento» que só se poderiam tornar compreensíveis aos 
          outros quando as pudesse mostrar como imagens visuais. O método 
          pelo qual se poderia chegar a essa imagem perdeu de repente 
          significado. Naturalmente, não é em vão que alguém se ocupa durante 
          anos com as técnicas da gravura. O «ofício» não só se havia tornado na 
          minha segunda natureza, mas também me parecia necessário para 
          continuar a usar uma técnica de reprodução que possibilitasse fazer 
          compreender as minhas intenções a muita gente ao mesmo tempo. 
          Se comparo o processo de execução de 
          uma estampa do meu período técnico com o de uma gravura na qual foi 
          expressa uma determinada linha de pensamento, fico com a impressão de 
          estarem quase em contradição uma com a outra. Antes acontecia-me 
          frequentemente procurar, num monte de esboços, um que me parecesse 
          adaptado a uma determinada técnica que nesse momento prendesse 
          especialmente o meu interesse. Hoje, escolho entre as técnicas que 
          adquiri, aquela que, mais do que qualquer outra, oferece uma 
          melhor representação de um pensamento determinado que me absorva no 
          momento. 
          Desde então, a produção de uma 
          representação gráfica consta de duas fases, rigorosamente separadas 
          uma da outra. O processo de trabalho começa com a busca de uma norma 
          visual que transmita, da forma mais clara possível, a nossa linha de 
          pensamento. Na maior parte dos casos, leva muito tempo até que acreditemos 
          que ela se apresenta clara diante dos nossos olhos. Mas uma imagem 
          mental é algo bastante diferente de uma imagem visual. E por muito 
          esforço que se faça, nunca se consegue concretizar completamente 
          aquela perfeição que paira no nosso espírito e que incorrectamente 
          julgamos «ver». Depois de uma longa série de experiências, com a 
          sabedoria mais ou menos gasta, funde-se finalmente aquele lindo sonho na 
          forma, insuficientemente perceptível, de um esboço pormenorizado. Depois, como um recreio, 
          começa a segunda fase: a elaboração da impressão 
          gráfica, durante a qual o espírito descansa e as mãos fazem o 
          trabalho. Quando, em 1922, deixei a Escola de Arquitectura e Artes 
          Decorativas, onde S. Jessurun de Mesquita me tinha iniciado nas 
          técnicas da gravura artística, encontrava-me sob forte influência 
          deste mestre, cuja vincada personalidade marcou, de resto,  a maior 
          parte dos seus discípulos. Naquele tempo a gravura em madeira (o corte 
          com goiva em prancha de madeira, geralmente de pereira, cortada no 
          sentido longitudinal) estava mais em moda, entre os gravadores do 
          que hoje. Fiz minha a predilecção do meu mestre pela madeira de fibra 
          e uma das razões da minha permanente gratidão para com ele é 
          juntamente o facto de me ter ensinado a lidar com este material. Durante os primeiros sete 
          anos da minha estada em Itália, trabalhei exclusivamente com ela. 
          Adapta-se mais a grandes formatos do que a onerosa madeira de topo. Na exaltação da juventude, trabalhei  nessa altura com a 
          goiva em enormes pranchas de madeira de pereira, com mais de 70 cm de 
          comprimento e quase 50 cm de largura. Só em 1929 produzi a minha 
          primeira litografia e, em 1931, ousei pela primeira vez fazer uma 
          xilogravura (a gravação com buril em pranchas de madeira cortada no 
          sentido perpendicular ao eixo da árvore).   
          Mas o entalhe em madeira é ainda 
           
          hoje para mim um «medium» a que não posso renunciar. Logo que, 
          para realizar uma ideia, se pense serem necessárias várias cores e, 
          portanto, se tenha de produzir mais do que uma matriz, esse «medium» oferece muitas vantagens em relação à xilogravura. 
          Na verdade, eu não teria 
          podido realizar muitas das estampas dos últimos anos se não tivesse 
          conhecido basicamente as vantagens da madeira de fibra. Muitas vezes, 
          numa gravura a cores, combinei ambos os processos de impressão em 
          relevo, usando madeira de topo para os pormenores a preto e madeira de 
          fibra para as cores.  
          De 1922 até cerca de 1935 foi o 
          período em que me dediquei com entusiasmo à pesquisa das propriedades 
          do material para gravura e, ao mesmo tempo, tomei consciência das 
          limitações que se me impunham. Durante esta fase resultaram numerosas 
          estampas (cerca de 70 xilogravuras e entalhes e cerca de 40 
          litografias). A maior parte delas tem pouco ou mesmo nenhum valor 
          agora porque, na sua maioria, eram «exercícios de dedos» – pelo menos 
           
          é essa hoje a impressão que me dão. A razão pela qual, a partir de 1938, 
          me concentrei cada vez mais intensamente com a transmissão de ideias 
          pessoais foi o resultado, em primeiro lugar, da minha saída de 
          Itália. Na Suíça, na Bélgica e na Holanda, onde sucessivamente me 
          detive, o aspecto exterior da paisagem e da arquitectura 
          sensibilizaram-me menos do que havia sido o caso sobretudo no Sul da 
          Itália. Forçado pelas circunstâncias, tive de me afastar da reprodução 
          mais ou menos directa e exacta do ambiente à minha volta. Esta 
          circunstância estimulou, sem dúvida em grande medida, a criação 
          de imagens interiores.  
          Uma só vez ainda, se sobrepôs o meu 
          interesse pelo ofício. Aconteceu quando, em 1946, tive pela 
          primeira vez contacto com a antiga e respeitável técnica da raspagem. 
          A gravura à maneira negra («mezzotinto»), cujos tons aveludados de 
          cinzento-escuro e preto agradaram-me de tal maneira que dediquei 
          muito tempo à assimilação deste processo de gravura em encavo sobre 
          cobre, hoje praticamente fora de uso. Mas em breve percebi que a 
          minha paciência era com isso posta face a dura prova.  Até hoje, no conjunto, produzi só sete gravuras à 
          maneira negra, a última em 1951.  
          Nunca utilizei um outro processo de 
          gravura em encavo. Desde o primeiro momento da minha autonomia, pus 
          muito conscientemente de lado a água-forte e a calcografia. A razão 
          para isso está, provavelmente, no facto de preferir contornar uma 
          figura mais com contraste de cores do que com linhas de 
          contorno. A linha preta fina sobre uma base branca, que marca a 
          água-forte e a calcografia, só tinha interessa para mim como parte 
          de uma área sombreada. 
           Aquele que se 
          maravilha com a minha obra, tem ele mesmo a consciência da maravilha.  
          Embora não tenha 
          qualquer formação e conhecimento das ciências exactas, sinto-me 
          frequentemente mais ligado aos matemáticos do que aos meus próprios 
          colegas de profissão. 
          (Adaptado de Escher, 1994, p.5-6) 
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