UM ÓSCAR PARA A MATEMÁTICA
Em 1887, o rei Óscar II da Suécia ofereceu um prémio de dois mil e quinhentas coroas pela resposta a uma pergunta fundamental em astronomia. Será o sistema solar estável? Sabemos agora que este foi um ponto de viragem no desenvolvimento da física matemática. Naturalmente, Poincaré dedicou-se ao problema do rei Óscar. Não o resolveu. Isso veio a acontecer mais tarde. Todavia, fez tantos progressos que lhe foi concedido o prémio, criando, para o efeito, um novo ramo da Matemática: a topologia. A topologia tem sido caracterizada como "geometria de folha de borracha". Mais propriamente, é a matemática da continuidade. Continuidade é o estudo de mudanças graduais e suaves, a ciência do inquebrado. As descontinuidades são súbitas, dramáticas: situações em que uma minúscula mudança na causa produz uma mudança enorme no efeito. Um oleiro, moldando um pedaço de barro, deforma-o de um modo contínuo, mas, quando quebra esse pedaço de barro, a deformação torna-se descontínua. Apesar de a continuidade ser uma das propriedades matemáticas mais fundamentais, o seu papel básico só se tornou claro àcerca de cem anos. Embora muito poderoso, ao ponto de estar a transformar a matemática e a física, é um conceito tão esquivo que, mesmo as mais simples questões que coloca levaram décadas a ser seleccionadas. A topologia é assim a geometria da continuidade, uma geometria em que comprimentos, ângulos, áreas, formas, são infinitamente mutáveis. Um quadrado pode ser deformado continuamente num círculo, um círculo num triângulo, um triângulo num paralelogramo. Todas as diferentes formas geométricas que em criança nos ensinam com tanta insistência são para um topólogo uma só. A topologia estuda as propriedades das formas que permanecem inalteradas sob transformações contínuas reversíveis. Voltemos ao rei Óscar. Em relações humanas duas pessoas são companhia, três são divórcio. Do mesmo modo, em mecânica celeste, a interacção de dois corpos comporta-se bem, mas a de três está repleta de desastres. Quanto à dúzia ou mais de corpos importantes do sistema solar..., quem quisesse o dinheiro do rei Óscar teria de trabalhar a valer para o ganhar. O trabalho vencedor, da autoria de Poincaré, sob o título "Sur le problème des trois corps et les équations de la dynamique", foi publicado em 1890 (270 páginas no original). A primeira parte estabelece propriedades gerais das equações dinámicas; a segunda aplica os resultados ao problema de um número arbitrário de corpos que se movem sob o efeito da gravitação newtoniana. O movimento de dois corpos um universo constituído apenas pela terra e pelo o sol, digamos é periódico: repete-se vezes sem conta. Por tradição consagrada, o período o tempo necessário para o movimento se repetir corresponde a um ano. Isto prova imediatamente que a terra não pode cair no sol ou escapar-se para o infinito. Se assim fosse, isso teria de acontecer todos os anos. Ora, este tipo de acontecimento não pode ocorrer mais de uma vez, e, como não ocorreu no ano passado, nunca acontecerá. Por outras palavras, a periodicidade fornece uma maneira útil de considerar a estabilidade. Num universo real este cenário cómodo pode ser despedaçado por outros corpos, mas a periodicidade ou conceitos relacionados pode ainda ser aplicável. No capítulo 3, Poincaré trata da questão da existência de soluções periódicas para equações diferenciais. Iniciando esta secção em moldes clássicos, mostra como obter estas soluções, expandindo a variável em causa em série infinita, sendo cada termo uma função periódica do tempo. Daí resulta então que existem séries cujos coeficientes são periódicos e que satisfazem formalmente as equações. Poincaré usa a palavra "formalmente" por uma boa razão. Embora o processo parecesse fazer sentido, preocupava-o a possibilidade de as aparências iludirem. A soma de uma série infinita só terá significado se a soma de um grande número de termos estabiliza num valor único comportamento conhecido como convergência. Poincaré está bem consciente do facto de ficar por demonstrar a convergência desta série. Mas aqui a análise, inconstante como sempre, abandona-o. Afirma-se convicto da possibilidade de demonstração directa desse facto, mas recusa-se a tentar realizar esse cálculo, ou por saber que produzirá uma complicação inextricável, ou talvez por não saber como o efectuar. Seja como for, olhando de novo para a questão sobre outro ponto de vista, Poincaré demonstrou rigorosamente a existência de soluções periódicas, o que implicou a convergência das séries.
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Olga Pombo: opombo@fc.ul.pt
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