A Importância da Palavra | Péricles e o Patronato
a
O período que decorreu entre 450 a 400 a.C. constituiu o
período áureo da grande Atenas.
Foi um período de mudanças políticas e sociais profundas com uma actividade intelectual
e artística intensa.
No
séc. V a.C., Atenas
foi, na realidade, a maior das cidades-estados gregas. No auge do seu poderio e esplendor,
deve ter tido uma população total de aproximadamente 300 000 habitantes, dos quais 40
000 eram cidadãos, 110 000 escravos e os restantes gregos residentes na cidade,
embora não de ascendência ateniense.
Porque é que esta cidade deu ao mundo, no espaço de
poucas décadas, não só parte do que há de melhor no campo da arte - como as esculturas
de Fídias e o esplendor do Partenon
- mas também no campo
da produção intelectual? Eis aqui uma questão à qual nunca foi possível dar
uma resposta satisfatória. É o "milagre Grego".
Após
a crise da tirania, no séc. VI a.C., a maioria das cidades gregas e, sobretudo Atenas, animaram-se de
uma vida política extraordinariamente intensa. O exercício do poder e a gestão dos
negócios públicos tornaram-se, no dizer de Marrou (1966: pág.83) "a ocupação
fundamental, a actividade mais nobre e mais apreciada do homem grego, o supremo objectivo
da sua ambição".
Os
antigos atenienses eram pessoas muito práticas. Obtinham dinheiro com facilidade,
tinham bons engenheiros, estavam bem equipados em termos militares e navais. Para eles a
filosofia, a procura do conhecimento e da verdade como um fim em si mesmos, era vista como
uma actividade vã e desnecessária à existência humana.
Foi por este motivo que Anaxágoras
não terá sido muito bem aceite. |
a
|

|
a
|
No
entanto, com a vitória sobre os Persas, Atenas enriquece extraordinariamente e a
população começa a interessar-se por outros assuntos e a aproveitar os tempos de
verdadeira prosperidade que se viviam na altura. A arte, o teatro, a poesia, a música e a
filosofia começaram a ter lugar na vida dos atenienses.
Graças ao desenvolvimento económico, Atenas
estabelece cada vez mais contactos com outros povos, gentes e raças. |
Homens
de letras, artes e ciências provenientes de várias regiões vinham a Atenas e aí permaneciam
em intensa troca de saberes, numa animada circulação de ideias. Poetas, pintores,
escultores, arquitectos, cientistas, filósofos, advogados, políticos, etc., reuniam-se e
trocavam impressões entre eles e com a comunidade ateniense.
Foi neste ambiente de intenso cosmopolitismo que os
sofistas apareceram!
Numa altura em que a política era ocupação fundamental dos
cidadãos, em que era cada vez mais importante a escolha das pessoas adequadas para gerir
a cidade, em que, como adiante veremos com maior detalhe, a palavra se revela de decisiva
importância.
"argumentava-se muito
em Atenas, tanto em particular como em público: processos políticos, autos parlamentares
de exame da moralidade, prestações de contas(...). O homem eficaz é aquele que se
impõe ao adversário, diante de um júri ou perante os juizes. Os oradores hábeis -
declarará em casa de Platiranos o sofista Polo de Agrigento - podem, como os tiranos,
fazer com que se condene à morte, à confiscação ou ao exílio quem lhes desagrada"
(Marrou, 1966: pág.91).
Como sabemos, a velha constituição aristocrática
fora substituída pela constituição de Clístenes.
Todos os habitantes livres da Ática foram admitidos à cidadania pelo que passaram
a poder exercer funções nos tribunais populares ou na assembleia. Muitos funcionários
eram escolhidos por sorte e a assembleia popular tinha enormes poderes, entre os quais o
poder de ostracismo,
isto é, do banimento, por voto secreto, de qualquer cidadão considerado perigoso ao bem
estar público.
Foi neste contexto verdadeiramente democrático, onde o interesse público era
defendido pela palavra que os sofistas surgiram. Eles vinham colmatar uma
dificuldade sentida por aqueles que ambicionavam o poder...
A
época de Péricles
coincide com o apogeu da democracia ateniense. A
democracia adquiriu então uma forma harmoniosa e equilibrada. Segundo Mossé (1985:
pág.38), tal terá ficado a dever-se a vários factores: à
maturidade política dos atenienses, à conjuntura estável que se vivia na altura e à
própria personalidade de Péricles,
sem dúvida a figura politicamente mais determinante deste período. Um
dos mais importantes princípios da democracia consistia no facto de cada cidadão, mesmo
o mais modesto artesão, poder participar dos destinos da cidade. A política não era
negócio de um clã ou de uma minoria, mas de todo o demos.
"Provavelmente, é também na época de Péricles que as
diferentes instituições adquirem a sua fisionomia definitiva" (Mossé, 1985:
pág.40). Terá sido nesta altura que se atribuíram funções específicas aos estrategos,
à Ecclesia
e à Boulé e
que se organizaram os corpos de magistrados (Archai). Refira-se ainda que, para além destas importantes
instituições democráticas, existiam também tribunais,
encarregados de relevantes funções.
Contexto Político | Péricles e o Patronato
a
a
A Importância da Palavra na Atenas Democrática |
Por tudo o que temos vindo a referir, parece-nos ter
ficado claro o quão importante era a palavra neste contexto. No dizer de Kerferd (1981:
pág.17), "as instituições na cidade democrática grega pressupunham que todo o
cidadão tivesse facilidade de falar em público e, para aqueles que ambicionavam uma
carreira política, isso era indispensável. Se um homem entrasse numa discussão com os
seus inimigos políticos e se não fosse capaz de se defender por meio da palavra, era
considerado tal como um homem desarmado, atacado por soldados. O poder de expressar as
ideias de uma forma clara e susceptível de persuadir uma audiência era considerado uma
arte que precisava de ser aprendida e ensinada".
De facto, a faculdade oratória situa-se num plano
análogo ao da inspiração dos poetas pelas musas. Reside, antes de mais nada, na
capacidade de dizer o que se pretende de uma forma eloquente e bem fundamentada. No estado
democrático, as assembleias públicas e a liberdade da palavra tornaram indispensáveis
os dotes oratórios, convertendo-os até numa importante arma colocada nas mãos do homem
do Estado...
Era necessário aprender a argumentar, exercitar a
capacidade de reagir e desenvolver um método capaz de empolgar e confundir os
adversários em debates públicos...
Assim, a retórica não tinha o sentido formal que
acabou por adquirir mais tarde. Ela abrangia não apenas a forma mas também o conteúdo
do discurso.
Foi deste modo que os sofistas foram sendo cada vez
mais necessários. Aquilo que se propunham fazer foi, aos poucos, sendo visto como a
resolução dos problemas daqueles que queriam triunfar, ser ouvidos e adquirir
influência pública.
Contexto Político | A Importância da
Palavra
a
a
Os sofistas vieram
corresponder às necessidades sociais e políticas em que se vivia na altura. No entanto,
o seu aparecimento foi incentivado por algumas personalidades importantes. Para
além de favorecerem a sua implementação, sobretudo em Atenas, recrutaram os
seus serviços e recebiam-nos de "braços abertos". É neste contexto que se
pode mesmo falar em patronato.
a
|
De
uma maneira geral, podemos dizer que os sofistas foram aceites graças, também, ao
auxílio de determinadas individualidades da época. Péricles foi uma destas
ilustres personalidades a quem os sofistas devem muita da sua afirmação e protecção. |
A
escassez de fontes não permite conhecer, em todo o esplendor, a personalidade de Péricles. Mas não há
dúvida de que possuía enormes capacidades intelectuais e de que era dotado de uma
apurada inteligência.
Péricles esteve desde sempre rodeado de "pessoas do saber".
No seu círculo de amigos contava com artistas, intelectuais e filósofos. Um homem que
terá francamente merecido a consideração de Péricles foi Anaxágoras.
Terá sido com Anaxágoras
que Péricles
adquiriu a sua postura de racionalismo científico e de rejeição da superstição.
Para além de Anaxágoras,
existiam outros intelectuais que estabeleceram relações com Péricles. Protágoras foi, certamente, um deles. De facto,
elogiou Péricles
pela sua atitude filosófica logo após a morte dos seus dois filhos ilegítimos, vítimas
da praga, em 429 a.C.. Muito antes disto, Péricles terá recrutado Protágoras
para escrever as leis da recente cidade de Thurii, em 444 ou 443 a.C..
a
|
Em
conclusão, podemos pois dizer que a chegada dos sofistas a Atenas não ocorreu por
acaso. Ela ficou a dever-se, em primeiro lugar, à própria Atenas. Foco cultural e
artístico de toda a Grécia, ela oferecia excelentes oportunidades para os sofistas
enriquecerem e para se tornarem famosos e influentes. |
Em
segundo lugar, a extrema importância que o patronato exerceu na afirmação dos sofistas
por todo o mundo grego, em particular em Atenas. De facto, o famoso diálogo "Protágoras" de Platão oferece-nos, como cenário, a casa de
Cálias em Atenas.
Este pertencia a uma das mais ricas famílias da cidade e, segundo a "Apologia"
de Platão,
Cálias despendia mais dinheiro com os sofistas do que qualquer outro da sua época.
No entanto, sem dúvida que o mais importante
patronato foi oferecido por Péricles. Não se sabe se os sofistas também ficavam instalados em
sua casa, como acontecia com Cálias. Mas existem vários discursos com sofistas que foram
realizados em sua casa e em várias ocasiões.
Além disso, não podemos esquecer que ser sofista
envolvia sempre um certo perigo. Para nos apercebermos deste facto, basta recordar as
seguintes palavras de Protágoras no diálogo
de Platão com o seu nome:
"Realmente, é preciso que um estrangeiro que vai às
grandes cidades e nelas persuade os melhores dos seus jovens a abandonarem outras
companhias, de conterrâneos ou estrangeiros, de mais velhos ou mais novos, e se
associarem a ele para assim se tornarem melhores, tome precauções nas acções que
pratica. Com efeito, não são pequenas as invejas, outras hostilidades e chicanas e
processos de impiedade que daí advêm. Eu digo que a sofística é uma arte antiga mas
aqueles que de entre os vossos antepassados a praticaram temiam-na, porque ofensiva, e
disfarçavam-na e dissimulavam-na, uns sobre a forma de poesia, como Homero, Hesíodo e
Simónides, e outros sobre a forma de ritos iniciatórios e profecias, como os seguidores
de Orfeu e Museu. E ouvi dizer outros, ainda lhe chamam ginástica, como Ico de Tarento e
aquele que já é hoje o melhor dos sofistas, Heródico de Selímbria que antes era de
Mégara. E o vosso Agátocles, que é um sofista de categoria, tomou por máscara a
música, e o mesmo fizeram Pitoclides de Ceos e muitos outros. Estes, como digo, com
receio de más vontades, serviram-se destas artes como disfarce."
Protágoras (316c-316e) |
Protágoras
diz em seguida que ele não segue este caminho. Prefere reconhecer claramente que é um
sofista e que educa os jovens, considerando esta atitude melhor do que tentar negar a sua
ocupação.
O patronato de Péricles revela aqui
toda a sua importância. Atacar os filósofos em Atenas era como atacar
directamente Péricles.
No entanto, apesar dessa protecção, ocorreram
inúmeras perseguições aos pensadores que, de alguma forma, se davam a conhecer naquela
época. Era por esse motivo que muitos dos que iam assistir às palestras dadas pelos
sofistas recusavam ser considerados como sendo também sofista, procurando, a todo o
custo, manter uma certa distância com eles.
Entre as vítimas das perseguições, contam-se o
próprio Protágoras (que terá sido exilado
de Atenas e visto os
seus livros queimados), Anaxágoras,
Diágoras, Aspásia,
Eurípedes,
sem falar desse símbolo da liberdade de pensamento que é Sócrates.
Digamos que os sofistas suscitaram a admiração dos
que os procuravam e o ódio dos que se sentiam importunados com a sua presença. Ninguém
lhes foi indiferente. Eles traziam consigo a bandeira de uma mudança que estava a ocorrer
a vários níveis: social, político e intelectual. É que, como se sabe, a mudança nunca
é estanque. Ela faz parte de um relevante processo de alteração da sociedade.

|